Contribuidores

sábado, 8 de dezembro de 2012

Visões radicais sobre a crise

Se os anarquistas tivessem hoje mais influência social do que aquela mínima expressão de dissidência de que dão mostras alguns punhados de militantes veementes que persistem por esse mundo fora, como enfrentariam eles a conjuntura de crise económica e de desafeição pela classe política que estamos vivendo, particularmente no caso português? Imaginemos mesmo que tinham a força e o vigor que demonstravam há um século no quadro do nascente regime da República, não obviamente assente no mesmo tipo de recursos políticos (sindicatos, imprensa, etc.), mas na capacidade de polarizar descontentamentos populares alargados e de os mobilizar para um processo de mudança que, tendo de ser institucional, deveria necessariamente tocar em alguns dos fundamentos da vida social, económica e cultural contemporânea: o mais provável é que ficassem profundamente divididos entre alternativas contraditórias e entre sentidos divergentes passíveis de ser lidos através de uma mesma chave ideológica. Vejamos alguns tópicos significativos desta encruzilhada.

A referência patriótica à nação (em que cada um de nós “aterra”, sem a ter escolhido) só lhes é sensível na estrita medida em que aí esteja patente uma identidade cultural forte, modelada pela língua, a histórica ou práticas comunitárias vividas de maneira não-disruptiva (isto é, feliz); no resto, são essencialmente internacionalistas e assumidos “cidadãos do mundo”, para quem os nacionalismos trazem ainda bem frescas as memórias de guerras e de outros desvarios imperiais. Ora, os estados-nação estão hoje a ser fortemente erodidos (para não dizer atacados) por uma economia dominantemente global e por processos de homogeneização cultural igualmente mundializados. Mas são, ao mesmo tempo, um dos (ainda) mais eficazes lugares de resistência contra lógicas de domínio abstractas derivadas das trocas económicas ou de um “controlo remoto” da informação. Nestes termos, deveriam esses anarquistas favorecer as mundializações em curso, ou antes ajudar os estados nacionais a preservar a margem de autonomia que lhes resta?

Segundo tópico: após algumas décadas de rotativismo e oligopólio da representação popular (no parlamento, no governo, mas também nas autarquias), os partidos e o pessoal político são hoje vistos pela maioria da população como responsáveis do descalabro das finanças públicas em Portugal – quando não como beneficiários de práticas de legitimidade duvidosa – tendo consolidado o seu poder por via de fortes alianças e influências nos mundos da comunicação, da justiça e das empresas. Sabendo-se da desconfiança histórica anarquista para com o modelo do “cheque em branco” da democracia representativa (para já não falar do seu anti-parlamentarismo congénito), optariam eles, nesta circunstância, pelo aprofundar da crise da representação apelando à abstenção ou ao voto-em-branco à maneira de Saramago, ou, pelo contrário, tenderiam a organizar enfim o “partido libertário” (já sonhado e tentado por alguns, mesmo no auge do revolucionarismo espanhol) susceptível de poder conduzir pacificamente, por via de escrutínio maioritário, a formas de democracia participativa mais ousadas e eficazes que o nível educativo e cultural das novas gerações e as tecnologias actuais também tornam mais possíveis?

Na mesma linha de questionamento, avançariam esses anarquistas pela exigência de uma reforma da lei e da justiça que repusesse a sua independência e credibilidade – “em nome do povo”, como defendia o americano Benjamin Tucker  –, ou deixar-se-iam tentar pelo retorno da imagem da “abertura das prisões” e de fórmulas retóricas como a da “moral sem obrigação nem sanção” filosoficamente sustentada pelo francês Jean-Marc Guyau? 

Finalmente, como se posicionariam eles perante o actual desafio de repensar as funções do Estado existente ou sobre os desempenhos do “Estado social” que temos no Ocidente? Considerariam drasticamente que “tudo o que é Estado” deve desaparecer para que “a Sociedade se possa enfim realizar plenamente”, ou tenderiam a considerar que as funções de apoio social e serviço público deveriam ser defendidas (sendo menos relevante a forma como são hoje tuteladas) ou mesmo que a função redistribuidora (da riqueza) proporcionada pelo imposto devesse ser igualmente mantida? Ou optariam pela visão do “Estado mínimo” do yankee Robert Nozick que alguns qualificam de anarquista e outros de super-liberal?

As referências deixadas pelos doutrinadores históricos podem ser inspiradoras. Mas uma forma de acção regeneradora dos males de que enferma a actual dinâmica social deve, de novo, ser inventada.

JF / 7.Dez.2012

2 comentários:

  1. Observo, ainda que sem uma perceção da sua real dimensão, as ideias de matriz anarquista a (re)florescer um pouco por todo o mundo e com elas novas praxis de intervenção política, económica, social, cultural e ambiental, materializadas em projetos individuais e coletivos que têm talvez unicamente em comum a sua diversidade e crescentes níveis de conscienciosidade das formas de dominação milenarmente existentes e em contínuo travestismo.

    Do meu ponto de vista, numa vã tentativa de resposta à primeira questão, não é impossível de conciliar nesta matriz, com claros traços de inspiração anarquista mas porém, também, sem uma ideologia de contornos precisos e mais ou menos cristalizados, um conjunto de respostas aparentemente inconciliáveis.

    Uma das facetas que identifico nessas ideias a que chamo (talvez indevidamente) de matriz anarquista é que emergem precisamente de “cidadãos do mundo”, muitos deles experientes jovens adultos em programas do tipo “Erasmus”, o que lhes dá uma experiência cosmopolita real e de outros, com um cosmopolitismo virtual, muitas vezes a conhecerem pessoalmente poucos mais países que os da sua origem, mas em permanente contacto com outras ideias, em redes de interesses comuns que não conhecem fronteiras.

    Uma das constatações em que assento as minhas asserções é a emergência, entre um emaranhado de redes altamente dinâmicas, de grupos de interesse globais com níveis de organização, de coerência interna e de mundivisão holística. Relevo estas três características para além da matriz anarquista porque: a organização como forma de dar resposta à aparente falência das respostas das instituições/organizações oriundas do pensamento e sociedade industrial; a coerência interna assente em princípios universalistas em vez dos humanistas; a mundivisão holística, assente na complexidade sem contudo cair na panaceia da hiperespecialização. Concomitantemente (e decorrente destas características), alguns destes “cidadãos do mundo” centram a sua ação no indivíduo, na comunidade e no planeta. Posso dar alguns exemplos das redes que estou a falar: Transition Network, Occupy Movement, Zeitgeist Movement, Wiser.Org, entre outras.

    Ligados a estas redes glocais, de dimensão global e ação local, estão pensadores experientes anarquistas (re)conhecidos como Noam Chomsy . As suas raízes são, como acima referi, diversas, mas mostram uma surpreendente (pelo menos para mim) convergência de preocupações, entre outras a saber: a Ética, a Desigualdade, o Ambiente e as grandes questões globais de resolução obrigatoriamente global como as Alterações Climáticas.

    A hegemonia cultural é equilibrada com as raízes locais, comunitárias. A cleptocracia financeira, combatida de variadíssimas formas, na maioria das vezes de inspiração não violenta.

    FM

    ResponderEliminar
  2. (cont.) Em relação ao segundo ponto de reflexão, é visível uma clara pressão oriunda das mais diversas proveniências do tecido social, para formas de participação nas questões políticas. Estas formas de participação ainda não são claras mas são sem dúvida muitas e diversas as possibilidades que a tecnologia nos entrega. Circunscrevendo-me ao exemplo Português, existem desde Partidos (em fase de constituição) com objetivos claramente anti-partidários (ex: PDP-Plataforma Democrática do Povo) a participações individuais e coletivas nas ainda raras brechas que as instituições portuguesas abrem à participação cívica. Porém, a questão quanto a mim mais pertinente é saber se esta vontade popular se irá manter continuadamente no futuro. A matriz anarquista pode ser vislumbrada também aqui. Movimentos de cidadãos pululam desde os mais efémeros aos que identificaram um problema específico da sociedade a resolver, como por exemplo o Limpar Portugal, que baseando-se num projeto original da Estónia (que foi planeado com metodologias holísticas como o Dragon Dreaming, a título de curiosidade), se materializou dois anos depois em todo o território Português.

    São ainda apenas alguns poucos exemplos – inspiradores - que espero ver crescer exponencialmente no futuro.

    Repensar as funções do estado à luz do pensamento anarquista é um desafio que começa logo com o espectro alargado do anarquismo, desde a ausência de estado nas suas vertentes mais puristas à tolerância de um estado mínimo à maneira de Nozick. Existem exemplos históricos (na Catalunha, por exemplo), que estão a ser revisitados e reinventados por muitos, e novos exemplos locais (Tamera, no Alentejo, por exemplo), escaláveis e utilizáveis em todo o mundo. Mais do que a função do estado, penso que é inevitável a transição de uma democracia baseado na ideia de nação e de partidos para uma democracia assente na participação dos cidadãos no fortalecimento da resiliência das comunidades. Como isso se vai processar pertence aos domínios do futuro, essa entidade misteriosa que se materializa com as nossas ações do presente.
    FM

    ResponderEliminar

Arquivo do blogue