Na sequência de reiteradas afirmações no mesmo sentido, Jorge Almeida Fernandes
comenta as movimentações dos ‘acampas’ nas praças de Espanha e a ambiguidade da palavra-de-ordem “Democracia real, já!”, perguntando se esta “designa a vontade de participação dos cidadãos, um factor de renovação do sistema político ou uma utopia anarquista?” (Público, 16.6.2011).
Eu próprio percorri há semanas uma parte do país vizinho e observei algumas dessas manifestações. Escrevi então a um amigo, confessando: “Não me entusiasmaram nada. É uma acção que está a esgotar-se e talvez a degradar-se, descambando para o marginal. A inspiração veio certamente da praça Tahrir do Cairo, mas numa versão ‘imitativa’, com pouca consistência. […] Julgo que os partidos políticos estão, em geral, muito desgastados, ainda prisioneiros de ideologias serôdias e afectados pela corrupção e as negociatas. Mas será preciso dar passos significativos para passar das manifestações de protesto ou revolta à emergência de forças alternativas.”
Também José Manuel Fernandes, referindo-se aos ‘acampados’ e admitindo a existência de um ‘hiato entre a rua e o Parlamento’, julga que aqueles pensam que “esse hiato daria direitos especiais ‘à rua’, um mito que alimenta certos blogues extremistas que vale a pena ler por estes dias” (Público, 17.6.2011).
Concordo com grande parte das apreciações destes articulistas. De resto, noutra circunstância recente, eu próprio publiquei um texto intitulado “A rua não tem sempre razão” (Público, 6.3.2008), que me valeu algumas críticas contundentes (era a propósito dos professores, lembram-se?). Além disso, partilho do mesmo modo a rejeição da violência (urbana e sem sentido) que sempre tende hoje a associar-se e a aproveitar as manifestações de protesto popular na praça pública, seja dos black block em Seatle ou Génova, seja dos supostos “anarquistas” de Atenas (que alguns dos ditos qualificam de “oklarkistas”, isto é, de meros desordeiros).
Contudo, há outras coisas que me separam de JAF e de JMF (e das opiniões dominantes). Uma delas tem carácter histórico e refere-se ao continuado uso do tema ‘anarquista’ para designar tanto os adeptos da violência como os críticos mais ousados da organização estatal actual. É certo que, há um século atrás, os anarquistas se evidenciaram por alguns deles terem enveredado pelo uso de meios de acção violentos (tiranicídios, bombismo, etc.). Foi uma deriva, que lhes custou caro. Mas, tirando isso, o movimento anarquista não foi mais violento que muitos outros movimentos revolucionários (nacionalistas, republicanos, socialistas, religiosos, etc.). E contou também com uma componente não-violenta, de que quase ninguém fala.
É igualmente verdade que o anarquismo histórico fez grande confiança na espontaneidade e criatividade dos movimentos populares de transformação social (na Rússia, no México, em Espanha, etc.) e lutou desde 1921 contra o poder dos bolcheviks (tal como lutou contra o nazi-fascismo), alertando sempre contra os projectos de poder (em proveito próprio) de todas as vanguardas e líderes revolucionários. De facto, a ilusão “espontaneista” deve ser mais assacada a outros – e talvez sobretudo à revolta juvenil/estudantil dos anos 60 – do que propriamente aos anarquistas. A historiografia pode mostrar que o anarquismo social de base operária foi um movimento extremamente organizado, e organizativo, que procurava – com o auxílio da estatística e de outros conhecimentos científicos disponíveis – prever e planear uma sociedade mais racional e mais eficiente (em todos os sentidos) do que aquela que conheciam nesse tempo.
Falando da actualidade e do desgaste que os mecanismos da representação democrática vêm sofrendo, agora agudizado pela crise económica e financeira, suponho que os sistemas políticos europeus – não o princípio e os valores democráticos em que assentam – vão estar sujeitos nos próximos anos a fortes exigências, para as quais têm mostrado não estar à altura. As jovens gerações qualificadas que emergem quererão certamente ter oportunidades de trabalho adequadas à sua formação e um futuro mais previsível mas também uma maior participação nas decisões que afectam toda a colectividade. A sua capacidade de mobilização vai provavelmente aumentar com estas sucessivas crises parciais, embora o sentido das respostas e das saídas das mesmas sejam ainda uma incógnita. Porém, admito que este novo movimento social – possivelmente trans-europeu – possa ser a base de partida para a construção de organizações políticas inovadoras nas suas propostas e modos de acção, um pouco como, em sentido geral, os movimentos “verdes” o foram há 30 anos atrás. E que daí poderá vir uma renovação de paradigmas que supere as actuais ideologias partidárias.
É desejável que isso se faça dentro dos limites da legalidade, da ordem pública e dos meios de acção pacíficos e não-coercivos. Por exemplo, o voto secreto universal não-obrigatório é uma metodologia de consulta popular de inestimável merecimento, não só porque salvaguarda a liberdade individual das pressões envolventes e apela à razão e à consciência de cada um, como também permite perceber até que ponto as populações se identificam com os seus representantes políticos. Mas isto não obsta a que possam ser frutuosas novas propostas de envolvimento e participação cidadã.
A aparente repulsa de JAF e JMF perante qualquer ideia de democracia directa ou participativa (o primeiro cita o “populismo” de Perot; o segundo relembra a “democracia popular” do nosso PREC) pode equivaler-se à minha desconfiança em relação à democracia representativa partidária (que sempre tende à supremacia dos intermediários). Mas, sobretudo, eu não coloco uma ideia contra a outra, pois julgo que poderão existir combinações e fórmulas intermédias interessantes e não ainda exploradas, devido à predominância de determinados interesses.
JF / 25.Jun.2011
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sexta-feira, 24 de junho de 2011
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João
ResponderEliminarCopiar Tahrir foi uma pura manifestação de falta de cultura. Tahrir não teve qq sopro de avanço civilizacional, como sabemos (ou teve ?).
Quanto a poderem existir "combinações e fórmulas intermédias interessantes e não ainda exploradas" é uma boa esperança, mas não para quem seguiu (os videos apareceram no facebook)o que se desenrolava no Rossio - que era deprimente de 'déjà vu', confuso e vazio.Triste.
Por fim, nunca estes grupos disseram o que queriam, que modelo de sociedade ? Veremos se neste verão eles começam a encher os jardins e deixam a frequência dos Centros Comerciais.
Que alguém que passou pelo anarquismo, e é um dos maiores conhecedores da história do anarquismo em Portugal, seja capaz de escrever algo do tipo: «É desejável que isso se faça dentro dos limites da legalidade, da ordem pública...» diz muito sobre a sua adesão à Ordem dominante!
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