O regime democrático é provavelmente aquele que até
hoje melhor serviu os interesses-a-prazo dos povos mas não está isento de
defeitos e críticas.
A sua ideia-chave é a de que o governo é constituído
com base na vontade popular expressa em eleições livres e “justas” (fair), quer dizer, sem coacções físicas
exercidas sobre as pessoas nem artimanhas grosseiras para favorecer ou
prejudicar certas candidaturas, falsificar os seus resultados, etc.
Mas as eleições livres e justas (hoje sob vigilância
de observadores internacionais, autorizados, quando está em dúvida a
autenticidade do processo) têm alguns pressupostos que, com o tempo, foram
sendo aperfeiçoados e adquiriram o estatuto de condições sine qua non para a sua aceitável validação. Entram nesta
categoria: uma lei eleitoral que atribua a capacidade de voto de forma tão
abrangente quanto possível (com exclusão dos menores e dos inimputáveis, mas
tendo o “sufrágio universal” levado tempo a vingar e só então acabando as
exclusões das mulheres, dos pobres, iletrados ou condenados); a existência de
cadernos eleitorais credíveis; a diversidade de candidaturas (pessoas ou
partidos); condições de aproximada equidade no período da “campanha eleitoral”,
para a informação pública dos programas dos candidatos; boletins de voto e acto
do seu preenchimento assegurando o sigilo da escolha individual; escrutínio e
publicação dos resultados com a presença de delegados das candidaturas, com
instância de recurso imediato para reclamações, nas mesmas condições; e duração
dos mandatos electivos por períodos determinados (variando geralmente entre 3 e
7 anos), com previstas possibilidades da sua antecipação. Fora deste conjunto
de condições, falar de democracia é geralmente um exercício especulativo ou de
mera propaganda ideológica.
Não obstante isto, existem variadas maneiras de
influenciar os resultados de um processo eleitoral. A mais importante e
evidente é a desigualdade de recursos financeiros entre as várias candidaturas,
que pode permitir uma “massacrante” propaganda das propostas de uma candidatura
e da pessoa que as corporiza, por via dos mass
media. Outra é a utilização do aparelho administrativo do Estado, por parte
da força política que está exercendo o poder, coagindo subtilmente os seus
funcionários, utilizando os seus recursos materiais, etc. E outra ainda é a
daqueles que são capazes de mobilizar organizações não-políticas (sindicatos,
confissões religiosas, associações sociais ou culturais, lobbies de diversa natureza) em favor de tal ou tal candidatura.
Finalmente, há ainda a possibilidade de, aproveitando estados emocionais agudos
de certas categorias de população, pôr na rua manifestações imponentes de
protesto ou de apoio nas vésperas de eleições, impressionando os votantes num
ou noutro sentido. (E já nem falamos no clima de violência que, por vezes,
certas organizações minoritárias criam – com agressões, assassinatos, etc. –
com idêntico fim em vista.)
Compreensivelmente, a teoria política e os
instrumentos jurídicos por ela suscitados desenvolveram modos variados de
operacionalizar politicamente os resultados de um processo eleitoral, podendo
grosseiramente distinguir-se cinco modalidades de regimes democráticos mais ou
menos experimentados nos tempos modernos. No âmbito da chamada democracia representativa (porque elege
sempre representantes do povo que
corporizam a vontade colectiva do Estado-nação), referem-se geralmente os
regimes parlamentares (porque o
governo é formado a partir da representação parlamentar) e os presidencialistas (onde há uma clara
separação entre um Presidente eleito directamente e que forma o governo da sua
confiança, e o parlamento de onde depende a aprovação do orçamento e das leis
principais). Os regimes semi-presidenciais
(invenção francesa, por nós parcialmente copiada) mantêm o centro de poder no
parlamento (donde sai o governo) mas, porque têm um Presidente eleito por
sufrágio universal e que pode dissolver aquele, constituem um “parlamentarismo
mais mitigado ou moderado”.
Que o parlamento (sede principal do poder legislativo)
seja constituído por uma ou duas câmaras é já um “pormenor” que aqui podemos
negligenciar e que em parte se explica pela evolução histórica – caso das
“câmaras altas” –, pela experimentação político-institucional (as “câmaras
corporativas” ou os actuais “conselhos económicos e sociais”, apenas
consultivos) ou pela organização federal do Estado, em virtude da sua
diversidade cultural ou extensão territorial (com senados eleitos) – o que só
torna mais complexa a “ginástica parlamentar”, com a qual todo o governo tem de
contar, mesmo no “unicamaralismo”, desde que não disponha do voto de uma
maioria dos representantes eleitos.
Para o escrutínio dos resultados eleitorais usam-se
essencialmente dois métodos de apuramento. No método proporcional distribuem-se os mandatos a prover (num órgão de
representação colectiva) de acordo com uma distribuição aproximadamente
proporcional dos votos obtidos pelos vários concorrentes: é o que acontece em
grande número de parlamentos, ainda que o eleitorado tenha sido fraccionado em
“círculos” geográficos, geralmente talhados à medida dos interesses
particulares de certos partidos. No método uninominal
maioritário ganha o único lugar posto a concurso num determinado círculo
eleitoral quem obtiver o maior número de votos, e uma maneira de alargar a
legitimidade do vencedor é proceder a uma “2ª volta” a que só acedem os dois
melhores: isso garante que o vencedor final seja eleito com mais de 50% dos
votos expressos. Mas, obviamente, estes princípios foram muito aprofundados e
detalhados em mecanismos por vezes de elevada dificuldade de apreensão (método
dos “maiores restos”, “de Hondt”,
etc.).
Tendo falado acima em cinco modalidades de regime
democrático, falta-nos referir a democracia
directa, reivindicada por sectores muito minoritários da opinião política e
praticamente nunca praticada de maneira consistente, regularizada,
institucional e duradoura. Fundar-se-ia na eleição de representantes para os
órgãos de poder (local, nacional, etc.) com um mandato quase-imperativo e
facilmente revogável pelos eleitores, para constituírem assembleias
legislativas funcionando apenas temporariamente (tal como nos primeiros tempos
da democracia americana), as quais designariam os órgãos executivos (locais,
nacionais, etc.) que assegurariam a gestão corrente dos negócios públicos.
Simultaneamente, os processos referendários (com decisão directa do eleitorado,
votando sim ou não a uma lei proposta, ou escolhendo entre várias alternativas)
seriam activados com alguma frequência. Apenas na Suíça e no quadro confederal
da sua constituição política, se têm praticado com regularidade algumas formas
parciais de democracia directa, nomeadamente através de iniciativas
legislativas de cidadãos subscritores de determinadas propostas (geralmente à
escala cantonal) e de referendos nacionais, os quais vinculam parlamentares e
governantes.
Finalmente, pôde falar-se de democracia participativa quando, mais recentemente, se puseram em
marcha determinados procedimentos de participação (parcial e limitada) dos
cidadãos, no quadro institucional das democracias representativas, constituindo
nestas um acrescento de legitimação popular e uma forma de elementar “empoderamento”
dos simples cidadãos e (sobretudo) de algumas das suas minorias organizadas.
Queremos referir-nos a práticas como o direito de acção popular ou as petições
colectivas de cidadãos (forçando o parlamento à sua discussão ou mesmo levando
à convocação de uma consulta referendária) ou os “orçamentos participativos”
(em que os cidadãos podem determinar o destino de uma pequena parcela dos
impostos que pagam). Além disto, o recurso a “eleições primárias” e a
escrutínios de tipo maioritário têm vindo a ser desenvolvidos nos últimos anos
em vários países, podendo ser vistos segundo a mesma perspectiva
“participacionista”, embora se não se eliminem os conhecidos riscos do
eleitoralismo e da demagogia. Mas, é legítimo também inferir sobre o
significado da participação e da abstenção
eleitoral como indicadores da legitimação do sistema político existente
(que inclui as instituições do Estado, as formações partidárias e as elites
governantes) por parte do eleitorado e da população. Uma curiosa maneira de operacionalizar e dar
expressão a este fenómeno seria a de ficarem “lugares em branco” nos assentos
parlamentares correspondentes a esses não-votos, metodologia que já foi
proposta por alguns mas que nunca foi levada à prática, já se vê porque nada
interessaria aos partidos dominantes.
Uma palavra deve ainda ser
deixada sobre os regimes que foram chamados (pelos próprios) de democracia popular, no caso dos
comunistas e do bloco de Leste europeu no período 1945-1989, ou de democracia orgânica, na terminologia
“corporativista” de Marcelo Caetano e Oliveira Salazar, que a copiaram do
fascismo de Mussolini mas também inspiraram l’Etat
Français do marechal Pétain. Foram, obviamente, abusos de linguagem dos
seus promotores, essencialmente porque em todos os casos se tratava do sistema
de partido único (para já não falar
nas violências da polícia política e na censura), sem a liberdade de opinião,
expressão e organização das diferentes correntes de pensamento que tipificam
qualquer democracia e que a partir delas organizam o seu sistema de poder.
Eis, clarinho e simplificado como tem que ser, o
fundamental dos mecanismos de organização estatal dos regimes democráticos.
Da próxima, tentaremos ver como eles (e algumas das
suas fragilidades e contradições internas) se conjugam com o funcionamento das
economias modernas, ao ritmo dos interesses capitalistas e dos demais agentes
sociais envolvidos – em posições secundárias, mas não propriamente subordinadas
– gerando dinâmicas que muitos tentam controlar ou usar em seu proveito, mas
poucos ou nenhuns conseguirão realmente dominar.
JF / 2.Set.2017
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