Em análise meta-teórica, podem encontrar-se diversos
pontos de aproximação entre alguns fenómenos do funcionamento da economia
moderna e o “mercado eleitoral” que organiza o acesso ao poder político nos
estados democráticos.
Qualquer que seja a fórmula adoptada – movimento,
associação, frente, união, etc. – os partidos
políticos (“partidos” porque são sempre e apenas parte de uma totalidade inexpressável) são indispensáveis em
qualquer regime político democrático: porque isso implica pluralismo; e porque
a agregação funcional de interesses e ideias ou projectos comuns se realiza
através de formas mais ou menos estáveis, institucionalizadas, mas com plena
auto-determinação. De facto, essas formações partidárias podem criar-se,
transformar-se ou dissolver-se, regulamentar internamente o seu funcionamento e
definir os seus objectivos e meios de actuação apenas pela vontade dos seus
membros, sendo, neste sentido, mais uma plena emanação da sociedade civil, tal
como a Modernidade a formulou nos últimos dois ou três séculos. A Lei tem aqui
um papel perfeitamente secundário, de incentivo ou travão, que apenas
regulariza detalhes.
Temos então, desde já, uma primeira homologia entre
estes sistemas políticos democráticos e o funcionamento dos mercados nas
economias abertas e expansivas que conhecemos. Isto, num duplo sentido. Por um
lado, pode dizer-se que, perante o estímulo que constituirá a possibilidade de
governar impondo uma específica orientação a toda a sociedade (incluída no
âmbito da soberania estatal), apresenta-se uma panóplia de diversos arranjos
instrumentais aptos a serem testados para poderem vir a deter em exclusivo essa
prerrogativa. “Partidos de caciques”, “partidos de eleitores”, “partidos de
massas”, “caudilhismo” – eis algumas das modalidades que as sociedades modernas
têm experimentado para lograr o mesmo objectivo, além da eventual coexistência
com um chefe-de-Estado vitalício e hereditário, com acontece em certos países
europeus, devido aos ditames da história. Consoante as épocas, as culturas
nacionais e a sua experiência e memória colectivas, uma ou outra fórmula tem
demonstrado melhores aptidões para o fim em vista. Hoje, cansados de alguma
exaustão das práticas partidárias geralmente existentes, está-se talvez a
assistir aos ensaios de um novo veículo de acesso ao poder, através de uma
espécie de “populismo electrónico”
que age sobretudo por imagens, slogans
e ideias simples, as quais percutem os cérebros de indivíduos muito hábeis a
usar as “TIC’s” mas de memória e
conhecimento histórico extremamente rudimentares (e frequentemente
falsos).
Mas, com maior evidência, o “mercado eleitoral” surge
aos nossos olhos nas pugnas políticas contemporâneas sobretudo devido ao facto
da publicidade (designada
“propaganda” na primeira metade do século XX, sem receio nem sombra de
vergonha) ter – como na economia – um papel crucial no convencimento dos
anónimos destinatários, especialmente durante as campanhas que antecedem as
eleições, o que não acontecia anteriormente, pelo menos em grau sequer
aproximado. Vejamos em separado cada um destes dois tópicos.
De facto, já vimos como nas diversas modalidades de
processos eleitorais temos de um lado os “vendedores do produto” (os partidos
ou personalidades em concorrência) e do outro os “compradores ou consumidores”
(os cidadãos inscritos e aptos para votar). Os programas políticos, as
mensagens explícitas ou subliminares, a personalidade visível dos candidatos,
as imagens de apoio mobilizadas (em cartazes, encenações, etc.) correspondem à
exibição das mercadorias em locais de venda, à divulgação de serviços
prestáveis aos clientes ou às diversas formas da sua “promoção”. Nenhum
comprador/votante é coagido física ou juridicamente a escolher tal ou tal
“produto”, sendo formalmente livre a sua escolha, e mesmo a opção de recusar a
compra de qualquer deles. Só que, na realidade, o leque de opções do cidadão é
limitado à oferta que lhe é proposta, tal como o consumidor perante as
mercadorias exibidas numa feira medieval, nas prateiras do supermercado ou nos
produtos que consegue alcançar via Internet.
Eis então uma primeira máxima a reter, nos tempos actuais: o comprador está sempre dependente
da oferta (seja no tocante a orientações político-sociais ou perante
produtos de primeira ou segunda necessidade). E sabemos que, só no longo prazo
(por vezes, no longuíssimo prazo), a oferta é capaz de se adaptar ou
corresponder àquilo que percebe serem os interesses ou necessidades da
procura.
É verdade que, tal como ensinam os manuais básicos de
economia, a concorrência na oferta funciona a benefício teórico (e efectivo) do
comprador, mas existem as distorções que prejudicam essa mesma concorrência, nomeadamente
com os efeitos de concentração (empresarial/sectorial) que se vão aproximando
das situações de monopólio.
Segundo tópico: o da liberdade de escolha do consumidor/eleitor. Ela existe no plano
formal ou jurídico. Mas, ficando apenas por aí, estaremos a ignorar os
processos sociopsicológicos que condicionam os comportamentos de todo e qualquer
indivíduo. Ora, é justamente sobre estes processos que incide a “propaganda”
ou, actualmente, o marketing (embora
estas técnicas também se dotem do louvável propósito de “informar o consumidor”
e definam “linhas vermelhas” de deontologia própria). Esta área académica e
profissional cresceu enormemente nas últimas décadas, quer no âmbito da
actividade económica, quer no que toca ao “marketing
político”. Os “conselheiros de imagem” e os “adidos de imprensa” (ou de comunicação)
trabalham junto dos actores políticos de feição homóloga à dos “criativos” e psicólogos
dos departamentos comerciais das grandes empresas. O objectivo é sempre o
mesmo: induzir o comportamento do sujeito a optar pela alternativa pretendida. Mas
estes especialistas têm como alvo não somente os diversos segmentos de público
a quem se dirigem (com argumentos e “efeitos” particulares) mas igualmente, em
modo triangular, a forma como os seus concorrentes estão desenvolvendo as suas
respectivas campanhas, tentando aí evidenciar as diferenças valorativas do seu
“produto” e não hesitando em atacar qualquer ponto fraco do(s) adversário(s).
Embora no plano comercial (e até jurídico) existam regras éticas a cumprir que
deveriam travar tais dinâmicas, bem sabemos pela publicidade televisiva,
radiofónica, “painelística”, etc., como ela é frequentemente contornada. E no
terreno da competição política nem isso existe, com a legislação eleitoral a
referir-se apenas ao uso das imagens-símbolos dos concorrentes ou à igualdade
dos tempos de antena, à fiscalização do escrutínio e pouco mais.
Ora, neste tópico, de
novo a oferta se agiganta brutalmente relativamente à procura – tanto em
termos comerciais como na competição política. No primeiro caso, as pessoas
ainda dispõem de algumas associações de consumidores de razoável credibilidade,
que informam o público, realizam testes comparativos, influenciam e fazem
pressão sobre as autoridades ou as forças económicas (embora só muito raramente
apelem ao boicote, que equivaleria à greves nas disputas capital-trabalho). No
domínio do sistema político, nada existe de comparável. Os cidadãos
encontram-se desarmados, face ao sistema instalado de organização do poder
democrático; e ainda em pior situação psicológica quando não têm qualquer
convicção e estão fechados por breves instantes no “isoloir” onde devem marcar a sua cruzinha no boletim de voto.
Não há qualquer dúvida de que – estando finalmente em
jogo o destino de toda a comunidade – o voto
secreto individual é imensamente preferível a qualquer tipo de designação
por “braço no ar” ou “aclamação”, com acontece em alguns regimes populistas. O
voto secreto individual é o que mais se aproxima da escolha de um sujeito
comprador quando vai ao mercado: se não está convencido, nada compra. E, ao
menos, proporcionam-se as condições para um voto livre e em consciência. Mas
isto não deve ser transformado num dogma sagrado e indiscutível. Deve apenas
ser considerado por aquilo que é: um instrumento prático e simples – largamente
compreensível por multidões mesmo pouco instruídas (sensibilizou-me muito o
referendo que consagrou a independência política da Namíbia, com o dedo molhado
em tinta a substituir os cadernos eleitorais) – mas que também tem defeitos e
limitações.
Lembremo-nos que, diversamente, quando se trata de
tomar decisões de grande responsabilidade e impacto por um pequeno órgão de
poder colectivo – um governo, um conselho de administração, uma direcção
partidária ou de instituição científica, social, etc. – outras regras
específicas devem ser previamente estabelecidas, que responsabilizem
individualmente cada um dos membros mas simultaneamente moderem os efeitos
“miméticos” e “estratégicos” entre os participantes, e entre cada um deles e as
suas eventuais “clientelas” exteriores. As teorias
de decisão conhecem muito bem estes diversos “esquemas” e propõem
diferentes maneiras de minimizar os seus efeitos mais perversos.
Juntemos ainda uma terceira reflexão: a oferta pode ser mais ou menos
abundante ou variada. Mas também pode ser excessiva, como acontece nos grands magasins onde o cliente fica atordoado
perante a profusão de artigos, com os seus preços, qualidades e aspectos variegados
(apenas no pormenor), acabando muitas vezes por comprar “ao calhas” ou por sair
confundido, chateado e de mãos a abanar ou finalmente com uma aquisição que em
parte lhe desagrada. Um número excessivo de candidaturas políticas (arrisquemos
uma cifra: talvez superior à dezena), já ultrapassa a pluralidade de opções que
racionalmente deverão existir e tal pletora tem apenas por justificação as
“tricas” internas ao sistema partidário e como consequência principal confundir
o cidadão-eleitor. Mas, naturalmente, em sentido contrário, a escassez de bens
na prateleira ou a redução das candidaturas eleitorais a um mínimo inexpressivo
iludindo o verdadeiro exercício da escolha (ou com candidatos-fantoches, etc.),
podem cumprir os requisitos formais do mercado e da democracia eleitoral ao
mesmo tempo que subvertem substancialmente os seus principais fundamentos. Em
teoria económica, a penúria e o açambarcamento de bens são estudados como
perversões do mercado (e às vezes punidos por lei); mas as equivalentes
deturpações em matéria democrática ficam, em geral, apenas sujeitas às opiniões
dos comentadores, mais ou menos isentos (até que chegue a hora dos
historiadores), e às denúncias dos perdedores, sobre as quais há que ter também
a maior das cautelas por, obviamente, serem parte interessada.
A possibilidade de um conjunto alargado de peritos e
representações internacionais poderem finalmente qualificar umas quaisquer
eleições concretas de “livres e justas”
é o selo de garantia mínima que equivale à situação de um mercado económico em
estado de funcionamento regular, sem distorções forçadas ou acidentais entre
vendedores e compradores. Individualmente, uns ganharão, outros perderão; uns
mais, outros menos; outros ainda abandonarão a partida por falta de meios ou
desinteresse. Mas o “ajustamento espontâneo” de diferentes interesses terá sido
conseguido, sem extorsões, ameaças, coacções ou derramamento de sangue. Tal com
nas feiras e mercados é prudente que existam fiscais ou polícias para lembrar o
respeito à ordem vigente e instâncias de recurso para controlar os pesos e
medidas ou decidir de pequenos litígios porventura acontecidos, também nos
processos eleitorais se exigem meios de segurança preventiva, mecanismos de
fiscalização e controlo, e instâncias jurisdicionais de apelação.
Como se percebe, em todas estas homologias está também
presente um idêntico risco: na distorção da oferta económica, o monopólio; e na asfixia democrática, uma
real tirania – ainda que de forma
disfarçada e não explícita.
Para além da sua própria auto-regulação, o mercado é
constantemente corrigido pela intervenção estatal, que fixa condições legais de
produção e venda, exigências de qualidade dos produtos, etc. Pelo contrário,
nada nem ninguém, do exterior,
controla ou coage o funcionamento do sistema político, que funciona,
fiscaliza-se, etc., segundo as suas próprias regras, isto é: as ditadas pela
elite (em parte internamente conflituante, em parte comungante) que ocupa os
seus postos dirigentes. Se nas últimas décadas o comércio internacional
“disparou” (com efeitos maciços da escala, práticas de dumping, proteccionismos encapotados, etc.) e, em especial, os
mercados financeiros entraram em “roda livre”, foi justamente porque, tendo
ascendido a um nível supra-nacional, se conseguiram furtar a uma parte da
capacidade de intervenção dos governos ou jogaram com as rivalidades existentes
entre estes.
E subsiste um pecado menos visível mas nem por isso
menos destruidor, sob a forma de gangrena que progride e atinge mais e mais
partes e órgãos do “corpo social”: o conluio, a corrupção, o “arranjo
particular” entre agentes destas duas esferas distintas da acção humana. Dito
de outra forma: sob a protecção do “segredo de Estado” ou do “segredo dos
negócios”, combinarem-se operações vantajosas e exclusivas entre titulares de
cargos oficiais e detentores, promotores ou representantes de grandes (ou mais
modestos) interesses privados, para a obtenção de ilegítimas vantagens,
imediatas ou a mais longo prazo. Os casos concretos que vão sendo noticiados
dão-nos uma ideia (seja pálida ou carregada) do fenómeno. Esta é outra “doença”
que está afectando com gravidade crescente a credibilidade moral das nossas
instituições públicas.
Resta, por fim, a diferença abissal de, ao contrário
da multiplicidade de bens e produtos que caracterizam a troca económica e a
fixação dos respectivos preços, a competição eleitoral com o objectivo da
conquista do poder político se concretizar, em geral, pela ocupação absoluta e sem partilha da mais alta
instância do Estado e das prerrogativas que lhe estão associadas
(prerrogativas, note-se, que deveriam apenas defender os seus titulares do
assédio dos poderosos e não como benesses discricionárias à sua ordem). Ao
longo da História, quase sempre foi assim. E um tal desiderato justificou
ódios, envenenamentos, negócios matrimoniais, traições, tratados, guerras,
genocídios e outras atrocidades próprias da espécie humana. Neste aspecto, a
história do municipalismo – não sendo exemplar, longe disso – é bem mais
reconfortante e incentivadora para o futuro.
Quase sempre foi assim, mas não tem que continuar a
sê-lo. A cultura e a ciência dos dois últimos séculos, juntamente com a
economia, revolucionaram a face da Terra. Mais do que apelar à razão ou à
moral, ou esperar pelos resultados da crença liberal do “free minds and free markets”, uma leitura reflectida das oposições
internas (e externas) existentes em obras como Ideologia e Razão de Estado (Jaime Nogueira Pinto, 2013) e O Processo Civilizacional (Norbert Elias,
orig.1939), passe o ideário próprio do primeiro autor e apesar do descomunal
tamanho de cada uma delas, deveria constituir programa obrigatório para
qualquer indivíduo consciente que quisesse, de facto, interessar-se pela
regeneração das nossas sociedades.
JF / 9.Set.2017
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