Com maiores ou menores sobressaltos, a governação
portuguesa lá tem conseguido acomodar as exigências externas de redução dos
nossos desequilíbrios económico-financeiros e o sistema político gerar
alternativas minimamente funcionais no quadro partidário existente. A aliança
PSD-CDS apanhou em cheio com o “programa de ajustamento” a que o persistente
défice orçamental havia conduzido. A “solução de esquerda” inventada pelo PS de
António Costa tem tentado relançar a economia e a esperança
“desenvolvimentista” que conforta as classes médias numa base diferente da
“modernização” impulsionada por José Sócrates. Porém, para além dos “simplex” e dos “cortes cegos” na
despesa, nem Paulo Portas nem qualquer outro governante avançou com
significativas mudanças no aparelho do Estado e nas instituições públicas.
Aliás, as relações entre os dois maiores partidos
portugueses andam tão tensas e desencontradas que não se prevêem para breve
alterações no texto constitucional ou de leis estruturantes do sistema
político. E, no entanto, várias das reformas do Estado que poderiam melhorar a
sociedade portuguesa dependem desse consenso e vão, por isso, ficando adiadas.
Muitas vezes as pessoas esquecem que a Constituição
(ou conjunto de “leis constitucionais”, o que vem a dar no mesmo) não é mais do
que uma lei contingente, fixada num
determinado momento por uma momentânea relação de forças políticas, apenas com
a diferença de ser “a mãe de todas as leis” no quadro do Estado-nação, pela sua
posição hierárquica superior a todos os outros normativos nacionais
(leis-quadro, leis-de-bases, leis ordinárias, decretos, etc.). É certo que os
tratados internacionais, assinados e devidamente ratificados por dois ou mais
estados, também se sobrepõem a toda aquela legislação interna mas têm de ser
concordantes com o estatuído na Constituição. A especificidade e importância da
Constituição deriva também do facto de ela conter – além de normas concretas
próprias, geralmente destinadas a regular o funcionamento das instituições do
Estado (governo, parlamento, tribunais, etc.) – uma definição única e exemplar
dos princípios de filosofia política que enformam toda a organização do
Estado-nação. É claro que há também constituições “regulamentadoras e
programáticas”, como a nossa de 1976 (que ainda nos rege, com certos alívios),
sendo essa a marca que foi deixada para o nosso próximo futuro por aquela
precisa conjuntura histórico-política. Mas o traço distintivo de uma
Constituição é, como referíamos, ela conter abreviados princípios acerca da
filosofia que uma dada comunidade política territorial, soberana, deseja que
sejam os reguladores e orientadores da sua vivência colectiva e da sua relação
com terceiros. Porém, isto não significa que tais princípios sejam critério
bastante (justamente pela generalidade das suas formulações) para julgar da
conformidade da legislação ordinária (e da sua aplicação pelos órgãos de
soberania e agentes do Estado) com o texto constitucional, na chamada função de
“verificação da constitucionalidade”, que é sempre entregue a um órgão
jurisdicional.
Os agentes políticos que fazem do “constitucionalismo”
uma bandeira de acção (partidária, como aconteceu no nosso século XIX pós-1820,
nos tempos da Ditadura Militar e depois de 1976), fazem-no com o mesmo uso
instrumental com que são capazes de afirmar que, em certos momentos, a
legitimidade supera a legalidade – o que é uma verdade, mas não com a leitura
estritamente jurídica que aqueles lhe atribuem. E algo de semelhante se pode
dizer do “soberanismo”, quando estão em causa os compromissos externos
assumidos pelo Estado num determinado momento e que o vinculam doravante,
apenas com as possibilidades de desobrigação neles próprios previstas. Aqui,
está em jogo, não a “ordem superior” fixada por uma divindade ou um ainda
inexistente (nem próximo) governo mundial, mas sim uma ordem jurídica internacional que, por muito que tenha sido
descaradamente violada e trapaceada em incontáveis oportunidades, não deixa de
ser uma das conquistas da Humanidade (a crédito do pensamento ocidental,
note-se) para regular e dar algumas perspectivas de estabilidade,
previsibilidade e segurança a toda a acção humana.
Apresentamos abaixo algumas das principais reformas do
Estado que, em nossa opinião (e repetindo ideias já expressas em outras
ocasiões), poderiam ajudar a melhorar sensivelmente o seu desempenho, a
benefício da colectividade (e não principalmente dos seus funcionários ou
decisores).
No plano constitucional ou de leis
exigindo maioria qualificada:
1 – Modificação da lei para a eleição de deputados da
Assembleia da República, com dois objectivos: o de manter ou aumentar a governabilidade do sistema e o de melhorar a representatividade dos
eleitos, certamente com redução do seu número, a introdução de alguma dose de
círculos uninominais e, para estes, a possibilidade de candidaturas
independentes.
2 – Supressão do Tribunal Constitucional e
reformulação do Conselho de Estado, o primeiro substituído pelo Supremo
Tribunal de Justiça na função de verificação da constitucionalidade da
legislação ordinária e o segundo com maior representatividade institucional (no
sentido de uma sugestão por mim apresentada em tempos, sob a designação de
Conselho da República).
3 – Aproveitamento do clima intervencionista
desencadeado pelo actual inquilino do palácio de Belém para fazer evoluir o
modo de designação, competências e funcionamento do órgão executivo da governação para o que se poderia designar por um
“presidencialismo de partido”, com o governo a ser atribuído ao partido votado
maioritariamente numa segunda volta a que só acederiam os dois primeiros, e uma
reconsideração das responsabilidades orçamentais do governo e do parlamento.
Julgamos este procedimento preferível ao “prémio parlamentar” que alguns países
agora atribuem ao partido mais votado em sistema proporcional. (O
desaparecimento da figura do Presidente da República eleito por sufrágio
universal ficaria implícito com o sucesso bem provado deste sistema, mas não
seria automático nem urgente.)
Sob a alçada da legislação
governamental/parlamentar:
4 – No que toca à Justiça, a despeito dos sucessivos
rearranjos do mapa das comarcas e juízos, o fundamental seria rever as leis
criminais e de processo. No código penal, tendo em conta que a sociedade actual
se rege essencialmente por valores materiais, a maioria das penas devia passar
a ser de natureza pecuniária (ou de trabalho obrigatório para os insolventes),
reservando-se a prisão para os casos de risco para a segurança pública, pois
este meio de punição não deixou de ser, essencialmente, uma “escola-do-crime”. E,
neste domínio, haveria que enfrentar com coragem o problema da droga, que será
responsável por mais de 50% das condenações dos reclusos que enchem as nossas
prisões. Mas, naturalmente, este é um domínio onde cada país tem a sua acção
limitada pelo contexto internacional. Poder-se-ão despenalizar os consumos e
circulação de drogas leves – desde que haja uma acção social eficaz de
recuperação das pessoas dependentes – mas não instaurar uma total liberdade
neste sector, pela quase certeza de o país se tornar rapidamente num “paraíso
do tráfico”. Por isso, haveria que empenhar esforços numa acção concertada, a
começar pela União Europeia mas projectando-se o mais possível para o quadro da
ONU. Quanto às leis processuais, o essencial era limitar as possibilidades de
recurso e adiamento, que são um prémio para os ricos e um maná para os
advogados (que deveriam perder o exclusivo de defesa judicial dos réus, em
favor dos próprios).
5 – Na administração autárquica, seria fundamental (e
muito simples) “des-simultaneizar” as eleições para os diversos municípios (e freguesias),
com a liberdade de elas próprias fixarem a duração dos seus mandatos entre 3 e
5 anos. Perderiam logo a carga de qualquer leitura política nacional que, de
facto, não lhes devia estar associada. Depois, seria conveniente a
simplificação dos órgãos municipais e da respectiva forma de provimento,
bastando para isso aprovar o entendimento a que PSD e PS já haviam chegado aqui
há uns anos. Finalmente instituir as regiões administrativas – as 5 já rotinadas,
ou apenas 4 mais as duas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, que lhes
ficariam equiparadas – sem novos órgãos eleitos, mas apenas por delegação
directa dos municípios de cada região. Quanto ao financiamento destas
estruturas, a lei deveria determinar quais os impostos e taxas que, em
exclusivo, lhes caberiam, fixando os seus limites quantitativos máximos e
mínimos, a sua capacidade de endividamento e a responsabilidade pessoal dos
autarcas em tais processos.
6 – Produção de leis para um mais rigoroso controlo
financeiro das administrações públicas com vista a conter o despesismo e o
endividamento-canga para as futuras gerações. Responsabilização criminal dos
agentes políticos em matéria de corrupção, descaminho e maus usos dos dinheiros
públicos, e de atentados aos direitos humanos e de cidadania. Dada a
predominância global da economia concorrencial de mercado, reservar para o
Estado, neste campo (incluindo as infraestruturas), apenas as funções de
enquadramento jurídico, regulatória e fiscalizadora das actividades,
sancionatória das violações ocorridas e, finalmente, de intervenção supletiva e
em último recurso para salvaguardar interesses essenciais da comunidade ou a
sua coesão social. Actuação reguladora também no que toca à qualidade do meio
ambiente, urbanismo e habitação. Quanto à chamada administração autónoma do
Estado, no caso das Ordens profissionais, estas deveriam ser (res)suscitadas
para a promoção da mais alta qualidade do serviço que prestam à comunidade, e
não para a protecção económica dos seus membros.
7 – Em concordância com uma indispensável revisão dos conceitos
estratégicos nacional e de defesa-e-segurança, as Forças Armadas deveriam ser
reorientadas para uma actuação mais autónoma mas disponível para cooperações
internacionais (nos quadros Europeu, da NATO, da CPLP e da ONU), reforçando-se
as componentes naval (em navios oceânicos e com um meio de projecção de forças
na área euro-atlântica) e aérea (em meios de vigilância, defesa, socorro e
transporte) e reduzindo-se a das forças terrestres, de três para duas brigadas
(de 4 a 5 mil homens), uma apta à defesa do território, a outra pronta para uma
intervenção além-fronteiras. As Forças Armadas deveriam efectivar uma especial
cooperação com as forças de segurança, nomeadamente nos capítulos das “informações” e da ciber-guerra, bem como
na articulação da acção da GNR com o Exército para o controlo do território e
com a Marinha (e a sua Policia Marítima) na segurança da costa. E actuar ainda,
quando necessário, no quadro da protecção civil.
8 – As forças de segurança – GNR e Polícia –, já hoje
as mais numerosas entre os braços armados do Estado, deveriam ver resolutamente
separadas as suas respectivas missões (sem quaisquer responsabilidades de
investigação criminal, que voltariam a caber inteiramente à Polícia Judiciária):
a PSP como única polícia urbana presente em todas as cidades e aglomerações
importantes do país; a GNR (com menores efectivos) como reserva territorial, especializada
no controlo dos espaços rurais mais ou menos desertificados (incluindo
montanhas, rios, florestas, planícies e fronteiras físicas), mantendo uma pequena
unidade de honras protocolares, em nome da República.
9 – As instituições de Protecção Civil têm vindo a
ganhar maior importância e deverão mantê-la, em prol da comunidade nacional. Este
sistema continuaria a articular judiciosamente os profissionais, os meios e as estruturas
da administração pública e o voluntariado que historicamente caracterizou o
socorro de emergência aos necessitados perante o fogo e outros acidentes ou
catástrofes; mas com fiscalização por entidade pública idónea para travar
abusos e a sustentação de interesses ilegítimos. E não seria mau que se instituísse
um serviço cívico universal (com prestação voluntária alternativa nas forças
armadas ou de segurança) para os jovens cidadãos, instruindo-os em tarefas de
utilidade pública desta natureza e contribuindo para a sua formação social e de
cidadania.
No tocante ao chamado Estado social:
10 – O Serviço Nacional de Saúde melhorou
consideravelmente a condição sanitária e qualidade de vida da generalidade dos
portugueses. Mas, com os enormes financiamentos necessários ao sector, já temos
hoje instalada uma oferta de saúde empresarial muito significativa. Esta
coexistência vai continuar e provavelmente aprofundar-se e, nestas condições,
exige-se do Estado que não deixe de assegurar “os mínimos” para o melhor-estar
e a dignidade dos que sofrem, e que seja compatível com o que a sociedade está
disposta a pagar em impostos, sem desperdícios nem favores aos “privados”. O
ideal da “saúde gratuita igual para todos” parece hoje uma quimera
social-democrata do pós-II guerra mundial.
11 – No que respeita à educação escolar o diagnóstico
não é tão claro, mas também aqui existe já a dualidade de prestadores e opções
entre “público” e “privado”, em concorrência. Mas se a saúde influi sobre a
demografia, a escolaridade afecta hoje a economia, sempre com efeitos dilatados
no tempo. Por isso, atento aos desvios da desigualdade e da discriminação
social, ao Estado competirá “pilotar o sistema”, sem necessariamente ter de arcar
com a prestação desse serviço e assegurar totalmente os respectivos custos e
desperdícios. Com as particularidades de a situação variar um tanto com o nível
de ensino e o mais elevado deles estar intrinsecamente ligado a produção de
ciência e tecnologia, que é hoje factor quase-imediatamente produtivo, e
decisivo, na economia mundializada. E não se podem esquecer as
responsabilidades públicas no domínio cultural (língua, história, património,
etc.).
12 – Algo de semelhante em relação aos dois pontos anteriores
acontece ainda no tocante à previdência ou segurança social. Assegurar
“mínimos” compatíveis com uma noção (sempre discutível) de dignidade humana,
parece ser o papel que as instituições públicas não poderão deixar de ter,
através de uma redistribuição de rendimentos e transferência de recursos por
via fiscal ou de quotização obrigatória, sem contudo ferir o incentivo ao
trabalho devidamente remunerado ou constituir chamariz ilusório para os mais
pobres do planeta.
Todos estes pontos serão arrasados por críticos de
diversas proveniências, com ou sem fundamentação aceitável. Não tenho a
presunção de estar certo nem estas soluções seriam as minhas preferidas, mas
apenas as que me parecem possíveis e desejáveis de imediato. São um misto de
“conservadorismo esclarecido” (que audácia!) com alguma dose de inovação e
ousadia para mudar práticas enraizadas e afrontar interesses instalados.
Nas suas memórias sobre a segunda guerra mundial, o
democrata Churchill critica sem complacência os efeitos perniciosos da política
partidária e dos seus vícios demogógicos sobre o destino dos povos, tanto no
plano interno como internacional. Dadas as suas raízes sociais, bom
conhecimento da história e pertencer a um dos países onde o parlamentarismo
ganhou maior institucionalização, compreende-se e louva-se a coragem da sua
afirmação de que a democracia era, afinal, o “menos mau” de todos os regimes
políticos conhecidos. Mas isso não impede que, nas circunstâncias actuais – uma
época quase totalmente nova em termos económicos, tecnológicos e culturais, que
reorganizou o mundo que ele ainda conhecera em meados do século XX –, se possam
fazer esforços para encontrar modelos de uma democracia racionalizada, mais apta a responder aos novos desafios.
JF / 26.Ago.2017
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