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quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Leituras

Como tantos outros, venho aproveitando o tempo livre para me deleitar com obras literárias, modernas ou clássicas, mas sobretudo estas últimas, algumas das que sempre haviam sido postergadas para melhor ocasião, ou apenas lera pela rama.
Shakspeare deu-me algum gozo, sobretudo pela conjugação da linguagem tardo-medieval do seu tempo (o da rainha Isabel I, de Inglaterra, em finais do século XVI) com a agilidade mental de uma oralidade (e teatralidade) onde o inesperado e o a-propósito garantem a sua perene vigência ou actualidade. Estão em causa os mais fortes e poderosos sentimentos humanos, como a ira, a volúpia, a traição, a vingança ou a ambição. Mas também as congeminações inteligentes que exploram cacafonias, lapsos de linguagem ou segundos-sentidos surpreendentemente modernos, com a surpresa adicional do emprego inusitado de palavras ou expressões como a fórmula latina ergo (lembram-se do cogito, ergo sum cartesiano?), ou o termo portulano (os mapas geográficos medievais pré-científicos). Talvez que a tradução francesa (clássica e riquíssima) o tivesse aqui favorecido, mas fiquei estarrecido com a rigorosa utilização de diversos substantivos e gestos do duelo esgrimístico na cena final de Hamlet, comparando-os com o vocabulário hoje empregue nessa actividade lúdico-desportiva: “fleuret”; “En garde!”; “Touché”; “Arbitre?”; “Touché, je l’avoue”; etc.
Também Calderón de la Barca, ou Cervantes, deixaram escritos que os aproximam do grande épico lusitano, não fosse a versatilidade literária deste e a sua vida errante de poeta, guerreiro e transgressor lhe assegurarem um lugar muito especial no nosso imaginário colectivo, não só lusitano, mas igualmente de toda a época Renascentista que fez renascer as civilizações Clássicas e, de alguma maneira, as mitificou.
Stendhal ressurgiu-me como um exímio contador de enredos e explorador de fios narrativos, onde a ironia está muitas vezes presente. E também com a acutilância de observação do gaulês perante a adorável frivolidade dos transalpinos.  Em La chartreuse de Parme, por exemplo, o jovem encantador Fabrice é-nos apresentado como o ingénuo e inocente adorador de Napoleão a quem a “boa vivandeira” salva de um precoce desastre nos subúrbios (da batalha) de Waterloo e, depois, como o amante já mais amadurecido da duquesa sua tia (viúva, com apenas mais 17 anos do que ele) que desperta mal-contidos ciúmes no conde de Mosca, sagaz primeiro-ministro do principado de Parma mas finalmente de bom coração, o qual urde teias e armadilhas que levam o jovem à tonsura eclesiástica, às rocambolescas aventuras amorosas com a actriz  Marieta, a Fausta cantora lírica e a Clélia filha do general, bem como a duelos, crimes, emboscadas e outras cenas do mais descabelado romantismo. Tudo isto, a par da implacável descrição dos actos e intenções dos detentores do poder despótico de então, bem como daqueles “vermes” que à sua sombra se davam largas a todo o género de patifarias.
Céline ou Joyce tiveram continuadores realistas à altura como Steinbeck, Heminguay ou Henry Miller, todos necessariamente vindos no Novo Mundo. Mas Gide, por exemplo, daquela mesma época, furou alguns tabus ao investir nos redutos da intimidade. Em O Imoralista, ele expõe-nos num francês belíssimo que já só raramente se fala (veja-se o constante uso do tempo verbal do participe passé) as atribulações de um ser – talvez nós próprios – a contas com a doença, a perspectiva de uma morte precoce e a exploração das relações da mente, dos impulsos e das ideias com o próprio corpo e os seus avatares. A interacção conjugal entre duas pessoas de tão diferente temperamento, as constantes viagens, o sortilégio dos ambientes magrebinos e as rotinas da vida camponesa numa França intermédia são também estruturantes neste curto relato de vida, ainda e sempre marcado pela ameaça e o flagelo do que era então a tuberculose.
Há um século, porém, começou a dar-se na literatura uma verdadeira revolução, como aliás em outras artes. Para além do génio multímodo de Pessoa, o fio narrativo das novelas e romances sofreu fortes ímpetos transgressivos em autores como Jack London (ver a sua vivência animal em O Apelo da Selva) ou Joseph Conrad (em O Coração das Trevas) que, ultrapassando o universo da literatura de viagens e do desconhecido, anunciam o que virão a fazer sistematicamente escritores contemporâneos como Saramago ou Umberto Eco, que tornearam os escolhos perigosos das literaturas pós-guerra de Camus ou dos malditos da beat generation. Eco, por exemplo, em O Cemitério de Praga baralha-nos a leitura com saltos na temporalidade e na linearidade do relato, na identidade das personagens (e do próprio narrador) e diálogos formalizados ou apenas pensados (passados à escrita de diversas formas), como o fazem também actualmente autores como Gonçalo M. Tavares na sua perturbante Uma Menina Está Perdida no seu Século à Procura do Pai.
É compreensível que num mundo tão desnorteado como o deste início do século XXI a literatura não se possa eximir deste ambiente cultural. Não é por acaso que os comentadores estejam a afirmar que no festival de cinema de Veneza deste ano dominaram as realizações descrentes sobre o futuro da Humanidade, algumas anunciando mesmo uma tragédia final. 
Aquelas são leituras que vale a pena fazer, tanto quanto as dos consagrados lusitanos Vieira, Garrett ou Camilo. Com a diferença que, tirando o Eça, o Pessoa e o Saramago, os nossos apenas foram conhecidos por aqui e um pouco no Brasil, enquanto aqueles se tornaram autores universais, graças à maior projecção da sua língua materna, à boleia de outros desígnios mais declaradamente imperiais.
Porém, outra coisa é tentarmos nós próprios aventurar-nos na ambição de escrever, hoje, qualquer coisa de original, que não seja uma paupérrima cópia do muito que os nossos olhos haviam já percorrido. Primeiro, a ideia, o enredo, a matriz de uma historieta que se possa contar e ser lida; neste caso, a “deformação profissional” do analista dos processos sociais mais a sua racionalidade terão tué dans l’oeuf a imaginação necessária à escrita ficcional. Depois, a arte (que se tem ou não, embora pelo esforço possa ser aperfeiçoada) do relato, da descrição dos ambientes, dos diálogos, dos pensamentos e sentimentos das personagens: a história pode não valer grande coisa, mas a escrita torná-la sublime (como fazem os génios literários – apesar de muitos vezes estarem longe de ser “boas pessoas”). Finalmente, há ainda o ritmo próprio com que as frases vão passando da cabeça do escrevinhador para o papel, quantas vezes traindo a sua intenção inicial e como que “escrevendo-se sozinhas”, embora e sempre retocadas pelas exigências externas e posteriores da gramática e da ortografia. Enfim, numa palavra, obras (tentadas) de fraca qualidade por quem não foi fadado para tal e que só a amizade ou o amor podem valorizar de outro modo. Assim seja.

JF / 16.Set.2017

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