Arrumando e destruindo papelada acumulada sem mais
préstimo, dei há tempos com uma pequena pasta onde estavam guardados já há anos
apontamentos, recortes de jornais e notas soltas, a propósito de isto ou de
aquilo. Deu-me a curiosidade de voltar a percorrer com o olhar esses escritos e
tentar perceber se me poderiam ainda suscitar o interesse de alguma reflexão ou
aprofundamento. Assim, aqui ficam, para que eventualmente ainda possam servir
para alguém.
- O socialista espanhol Javier Solana, que foi
secretário-geral da NATO e o primeiro “ministro dos negócios estrangeiros” da
União Europeia, no auge da primeira crise financeira da Grécia em que os países
vizinhos a ajudaram financeiramente sob
condições (drásticas, embora ineficazes), escreveu muito adequadamente (ver
Público, 21.Mar.2012) que a questão da soberania nacional (neste caso, segundo alguns, violentada pelas
referidas condições) se assemelhava à da liberdade
individual, referindo o marco histórico do Tratado de Vestefália de 1648,
que geralmente articulamos com o primeiro daqueles conceitos, e uma obra
clássica do liberal John Stuart Mill para o segundo. Segundo Solana, estes dois
conceitos apenas definem princípios,
mas não modos estruturados de actuação dos agentes políticos ou sociais.
Fixando-se sobre o caso dos Estados-nação, enfatiza que, se nunca a soberania
foi total (por ameaças ou necessidades só satisfeitas pelo exterior), ela hoje
está muitíssimo diminuída pela «globalização [que] tornou as fronteiras mais
porosas» e a «interdependência [que] é ainda mais evidente no desempenho
económico dos países», dando o exemplo concreto de que nesse ano o crescimento
do PIB da China descera dois pontos percentuais devido ao abrandamento da
economia nos Estados Unidos e na União Europeia. Tudo isto para afirmar que, no
presente cenário mundial, os governos nacionais têm o dever de considerar os
interesses globais (interdependentes uns dos outros) na definição das suas
próprias políticas, e de o explicar devidamente aos seus concidadãos-eleitores
– em vez de se desculparem com as malandrices alheias, gostaríamos nós de
acrescentar.
- A França tem a sua cultura política particular onde
se inclui, de tempos a tempos, o rebentamento de crises que trazem muitos
milhares de pessoas para a rua em protestos, reivindicações ou afirmações de
vontade colectiva. Em tais ocasiões, a liberdade de expressão assume formas e
dimensões inusitadas, os movimentos inorgânico/“espontaneístas” sobrepõem-se às
organizações formais (partidos, sindicatos, igrejas, etc.) e geralmente emerge
um actor social desempenhando um papel central de mobilização das massas:
camponeses, operários, estudantes, jovens, etc. Porém, o “populismo de direita”
que impulsiona o voto na Frente Nacional, além de ser interclassista, parece
definir mais o seu “nacionalismo” contra
alguns sujeitos bem especificados: as populações islamizadas onde situam a
ameaça terrorista; as instituições decisórias e regulamentares da União
Europeia; e a “classe política” que tem governado o país nas últimas décadas, a
quem atribui a culpa de não ter sabido manter o estatuto de grande potência a
que os franceses se sentiam naturalmente com direito.
-
Anotações escritas num saco higiénico em viagem aérea para Lille cerca de 2004:
Écueils à éviter ou à circonscrire,
s’ils doivent quand même se présenter: - les guerres militaires ouvertes; - les
dérives violentes du terrorisme, la répression à large échelle, l’auto-défense
armée de chacun, la loi des gangs ou des milices, les dictatures ou les états
policiers; - les exodes massifs ou les courants d’immigration fuyant leur pays
ou région d’origine et la pauvreté, sauf cas de massacres ou génocide; - les
inégalitées économiques trop marquées, combattues par voie de fiscalité, sur le
revenu et sur la consommation, et par des prelèvements ou transferts
obligatoires des plus riches aux plus necessités; - les excès de consommation
et des facteurs qui provoquent des méfaits sur l’environnement et la santé des
gens, par l’éducation, la taxation et l’interdiction.
- Creio que escrevi
um dia, sobre mim-próprio, que podia legitimamente ser visto como um “traidor
em potência de cada uma das minhas pátrias”. De facto, olhando para a
trajectória passada, o facto de me ter entregado “a fundo” a várias das minhas
“pertenças” (ideológicas, afectivas, profissionais, etc.) ter-me-á obrigado a
posteriores actos de “renegação” (pagando por isso um preço elevado, moral e
socialmente), cada vez que a minha evolução posterior (melhor dizendo: a minha
relação com o mundo) me levou com igual empenhamento a criticar (talvez
radicalmente, ou em excesso) coisas que antes afirmara.
Destes
comportamentos, retirei talvez o proveito de granjear o respeito e a
credibilidade junto de alguns. Mas, simultaneamente, um tal ascendente foi
também capaz de influenciar outros, que passaram a seguir-me (como modelo), sem
que eu o procurasse ou desejasse, e que vêm depois a sentir-se perplexos,
desorientados, quiçá atraiçoados, por causa da minha própria evolução. E eu
mais angustiado, por esse facto.
De
onde me virá afinal esta capacidade de influência sobre terceiros, suave e
meramente pelo exemplo? Eu que detesto ser líder formal – já fui, sei que sou
capaz, mas não gostei e recusei –, de arrastar gente atrás de mim (embora saiba
ser cooperador e gostar de trabalhar em boas equipas) e sou incapaz de seduzir,
mulheres ou auditórios?! Que, quando distribuía panfletos na rua, nunca os
“impingia” aos passantes, apenas os exibindo e oferecendo a quem me estendia a
mão?!
Francamente, não sei, e desconfio que não tenha muito
a ver com a genética. Inclino-me mais para a educação original (família, meio
militar, religião), e para uma “cultura da responsabilidade e do épico” que fui
aprendendo com meu pai e meu avô, e porventura indo além das suas mensagens explícitas
por excesso de imaginação infantil. Talvez tenha aí adquirido a ideia (nunca
formulada) de que cada missão é uma batalha (onde se pode ganhar mas alguns
morrem pela certa), cada decisão difícil uma prova sacrificial, um “cerco de
Diu” como o que obrigou o Castro a empenhar as próprias barbas!
-Sobre
a competição desportiva e a ética, julgo ser capaz de alinhavar três tipos de
considerações. Primeiro, sobre a sua
essência como fenómeno dos tempos modernos: nesta perspectiva, podemos ver
a competição como estando no cerne do
seu sucesso mundializado: mas, diferentemente do comércio (onde, em teoria,
todos deviam ganhar na troca), é talvez melhor considerá-la como um sucedâneo ou sublimação da guerra, onde
o objectivo é sempre a vitória (com a derrota dos adversários); mas é preciso
juntar-lhe também outras características como sejam o comum benefício da
actividade física, o aspecto lúdico, o espectáculo por vezes emocionante (pela
incerteza do resultado) e a motivação para a superação individual do atleta.
Neste sentido, é bastante limitada a comparação que muitos fazem com outras
actividades de lazer antigas ou tradicionais (como as que envolvem confrontos
com ou entre animais, os duelos e, no limite, as lutas de gladiadores romanos).
Em
segundo lugar, podemos considerar os riscos
e os aspectos negativos presentes em tais actividades: a tentação da fraude
ou da deslealdade (os subornos ou corrupção desportiva, a violação das regras,
etc.); a exaltação do sobre-humano (com os excessos prejudiciais à saúde física
ou mental, a dopagem, etc.); a violência física e o risco inerentes a certas
modalidades (como o boxe, o alpinismo, as corridas motorizadas, etc.); a
exacerbação das rivalidades e do fanatismo clubístico, nacional ou pessoal; e
ainda os grandes interesses financeiros hoje presentes em tudo o que são
espectáculos desportivos de massas.
No
terceiro plano de considerações podemos referir a lógica da regulamentação que organiza as competições, desde logo
entre provas individuais e provas por equipas, bem como as diversas
especialidades que têm sido criadas dentro de cada desporto para atender a
diferenciações naturais entre os competidores (sexo, idade, compleição física,
etc.) ou devidas a equipamentos diferentes (em potência ou performances), ou ainda para pôr à prova capacidades específicas e
diferenciadas detidas pelos competidores (somando largas centenas as provas
diferentes hoje praticadas nos quatro cantos do planeta). Mas o ponto que aqui
mais nos interessaria relevar é, como dizíamos acima, o das lógicas de organização das competições,
onde podemos destacar as seis mais significativas, a saber: a da corrida simultânea onde todos os
competidores se confrontam directamente (a maratona ou uma volta ao mundo à
vela sem escala, por exemplo), cujos resultados se apresentam sob a forma
inequívoca de um ranking ou
ordenação; a da corrida ou competição por
etapas ou por adição de
sucessivos resultados parciais, que tende a premiar a regularidade, geralmente
medida ao longo de um período relativamente extenso (p. ex., um mês, um ano);
as provas chamadas de poules, de
confronto entre dois adversários, em
que todos competem contra todos mas sucessivamente,
apurando-se o somatório final dos resultados obtidos; as provas de eliminação directa, também de confronto
entre dois adversários mas em que uma derrota provoca inexoravelmente a
exclusão da competição e o vencedor derradeiro só se decide num encontro
“final”; a lógica do chalange round
(hoje bastante caído em desuso), em que o campeão em título pode ser desafiado
por adversários que o mereçam, seja pela ousadia do desafio, seja por terem
vencido todos os encontros prévios em sistema de eliminação directa;
finalmente, o mais leal e isento de todos estes tipos de organização
competitiva é o da performance
individual em que cada qual executa o seu exercício sozinho, tentando o melhor
resultado medido em unidades de tempo ou outras, quantificadas (em uso, por
exemplo, nas corridas “contra-relógio”, nas pontuações atribuídas por um júri a
exercícios ginásticos ou no tiro desportivo).
Todas estas variedades têm vantagens e inconvenientes.
Mas mais do que os esquemas técnicos organizativos, conta para a “verdade
desportiva” e o benefício geral que as sociedades disso podem tirar a ética ou espírito desportivo revelados
pelo comportamento dos participantes, que era o que tinham em vista os
fundadores do desporto moderno: competir leal e desinteressadamente, em que o
vencedor pode ser aplaudido mas deve simultaneamente estender o braço fraterno
aos restantes competidores.
-
O anarquismo foi uma doutrina com alguma atractividade e divulgação há um
século atrás mas que parece ter perdido todo o impacto social a partir da
Segunda Guerra Mundial. Perdeu a disputa ideológica com o marxismo e as
correntes sociais-democráticas, mostrando debilidades teóricas perante essas
escolas de pensamento e acção política, por exemplo quanto à economia e ao
direito, mas não necessariamente nos planos político-filosóficos e
ético-humanistas. Por isso, em conjunturas de crise ou grave desorientação dos
comportamentos sociais, sempre alguém se lembra de recorrer a algumas das suas
“ideias” ou inspirações mais libertadoras ou emancipadoras: as revoltas
estudantis e juvenis dos anos 60 e 70; o feminismo e o desabrochar da
sexualidade; as mobilizações ecologistas e pacifistas; os movimentos urbanos
que levaram à implosão dos regimes socialistas do Leste europeu; ou as
manifestações do tipo “Occupy Wall Street”
ou dos “99%”. Nesta base, trata-se mais de um libertarismo do que propriamente do anarquismo formulado no século
XIX. Este, perdeu-se com a “ignorância” do processo de descolonização, talvez
pelo menosprezo demonstrado pelos processos democráticos de representação,
muito provavelmente pela desagregação do tecido social produtivo (artesanal-industrial)
onde havia encontrado os melhores terrenos de implantação e sobretudo com a
“guerra fria” travada entre o Ocidente livre mas capitalista (que não se
importou de sustentar várias ditaduras) e o “comunismo” (que realmente era
apenas colectivista e ditatorial) que estruturou as relações internacionais
durante décadas e onde já não havia lugar para “terceiras vias”.
O
anarquismo desapareceu do mapa político mas o socialismo estatal-autoritário
fez muito, muito pior, desacreditando com os seus insucessos, crimes e mentiras
os melhores ideais que brotaram inicialmente do movimento operário
internacional.
Mas
se a democracia e o capitalismo saíram vencedores dessa contenda do século XX,
não o fizeram sem “danos colaterais” e insuficiências congénitas ou adquiridas,
que me proponho agora enumerar, sem qualquer aprofundamento:
1º
tópico: Capitalismo e Democracia: dois sistemas, a mesma lógica.
A) O
Capitalismo, como regime socioeconómico (propriedade privada, mercado e
concorrência) mostrou-se, em dois séculos, imbatível e o mais dinâmico de todos
os sistemas até agora experimentados, apesar dos defeitos que lhe podem ser
apontados: antagonismos, desigualdades, materialismo consumista, uniformizador
de práticas e culturas. Porém, as alternativas ensaiadas ao longo do mesmo
período, ou se revelaram “curtas” (caso da chamada economia social:
cooperativismo, etc.) ou soçobraram estrondosamente (com as economias
estatizadas e planificadas centralmente, ou mesmo sob formas guiadas pelos
princípios da “autogestão” que foram tentadas na Jugoslávia socialista ou na
Argélia libertada do colonialismo francês). Assim, a economia de mercado,
capitalista, tornou-se o único e o menos mau de todos os modelos aparentemente
possíveis. Num plano mais filosófico, também se poderá dizer das suas vantagens
e inconvenientes: liberdade, modernização e universalidade; mas também uma
racionalidade normativa que esmaga as diversidades e particularismos locais,
empobrecendo o conjunto das culturas humanas e não se importando muito com os
estragos que pratica sobre a natureza.
B) Por
seu lado, a Democracia verificou-se também como o menos mau dos sistemas
políticos praticados até agora, nomeadamente face às ditaduras, às autocracias
e mesmo face às monarquias hereditárias (sendo que as ainda subsistentes o são
por se terem tornado meros adornos simbólicos da unidade nacional). Diz-se que
o poder estatal democrático é o único instrumento capaz de controlar o
capitalismo, impondo-lhe regras e certas outras opções não-económicas mas de
interesse social evidente. É em parte verdade. Mas o que também se esconde é
que a natureza lógica da Democracia é, em boa medida, idêntica à do capitalismo
desenvolvido e pós-industrial: à lógica do consumidor, corresponde a lógica do
eleitor; a empresa persegue o maior lucro possível; o partido político, o
melhor resultado eleitoral, capaz de o alçar ao controlo do poder. Daí que a
“publicidade” e a “propaganda” sejam técnicas tão afins. E não deve ser
esquecido o papel das Organizações Internacionais desenvolvidas sobretudo no
último século, incluindo as de iniciativas dos estados nacionais, mas
enfatizando especialmente as organizações não-governamentais.
C) Quer
o Capitalismo, quer a Democracia têm imensas vantagens (sobretudo a liberdade e
a tolerância). Por isso devem ser respeitados. Mas também apresentam aspectos
negativos que não devem ser ocultados. A crítica continua a ser indispensável.
2º
tópico: A crítica: radicalidade e moderação [pontos não
desenvolvidos]
A) O
globalismo crítico e os seus limites.
-As experiências do passado.
-As alternativas e os seus protagonistas.
-Os limites e os inconvenientes.
B) Para
um progresso racional, lúcido e humanista.
-A desmoralização do reformismo
tradicional.
-É viável uma prática política
radical-reformista?
-Uma economia de mercado (prescindindo de
uma regulação estatal-autoritária) será possível sem a acumulação capitalista?
-Contar com o conservadorismo: resiste mas
também preserva.
-Liberdade e justiça como critérios
fundamentais.
-Uma ideologia para todos os povos e comunidades
do globo.
-Os indivíduos e os sistemas.
[Escrito cerca de 2003]
-Nos inícios de 2015 publiquei neste Blogue umas
“anotações críticas sobre a sociologia que eu conheci”. Agora, no meio de
papéis mais antigos (certamente da década anterior, pelo menos), encontrei
outras notas dispersas e não desenvolvidas sobre o mesmo tema. Foram
provavelmente tomadas em vista de um debate académico, ou sugeridas na
sequência de alguma aula ou arguição. Eis o que é possível recuperar de
compreensível dessas notas, que apenas indicam o foco das minhas preocupações
de então.
O que faz o sociólogo?
Metodologias de quê? Investigar o quê? – equívocos a desfazer.
Pertinência
da velha distinção entre investigação
fundamental e investigação aplicada
(ou aplicação do conhecimento científico, como se disse durante um tempo).
Em
qualquer dos casos, há passos sucessivos a dar, tais como: a) identifica-se uma
questão; b) constrói-se uma problemática; c) discutem-se as teorias e os
conceitos pertinentes; d) recolhe-se a informação empírica de base; e)
define-se a estratégia do processo de investigação; f) criam-se os instrumentos
de recolha de dados, devidamente testados; g) procede-se ao levantamento
organizado da informação empírica; h) procede-se à análise dessa informação
recorrendo-se às técnicas de análise convenientes; i) apuram-se os resultados e
conclusões da análise anterior; j) confrontam-se estes resultados com a
problemática de partida e formulam-se eventuais generalizações, propostas
teóricas ou novas hipóteses de pesquisa.
No que respeita mais especialmente à investigação
aplicada, destinada a responder às necessidades de uma qualquer entidade
exterior, ter atenção: α) formulação clara do “pedido”; β) enquadramento
teórico-problemático; γ) recolha da informação; δ) análise da informação; ε)
resposta ao “pedido”.
Teorias sociológicas.
Fazer referências a:
“Complexidade” – afirmação retórica frequente do
sociólogo, usada para: enaltecer a dificuldade do seu pensar: desculpar-se pela
falta de resultados “positivos”, práticos. Devia, antes, ser mais empregue para
alertar para a provável modéstia de eficácia social dos contributos da
sociologia para a resolução de problemas imediatos da vida colectiva. A
declaração da “extrema complexidade da vida social” deve ser enunciada, sim,
mas logo à partida de toda a aventura de pensar cientificamente a actividade
dos seres humanos entre si e não necessitar de ser sistematicamente repetida,
ritualmente, em cada ensaio de aproximação analítica, ao jeito do “desculpem
qualquer coisinha!…”.
“Estática
– Dinâmica” – são antigas noções bebidas da Física clássica e da Mecânica
(também utilizadas em sociologia sob a influência de Comte). Mantêm-se todavia
úteis, heurística e analiticamente, pois permitem distinguir e compreender
melhor as “estruturas”, a importância das instituições e das “situações” (no
trabalho, família, etc.) e os dinamismos, ou seja, os processos sociais que, a partir daquelas, as animam e dão vida,
actuando através da variável “tempo”. Mas convém aqui distinguir desde logo
entre o dinamismo dos actores sociais e as mudanças ou transformações sociais,
de mais ou menos de largo espectro. No primeiro caso, há processos específicos,
susceptíveis de serem analisados, que são da ordem do “jogo”, das interacções,
do inter-pessoal-grupal. Exemplificações: indivíduos – grupos – instituições; e
acção individual – acção colectiva – legislação ou regulamentação.
A
mudança social insinua-se e combina-se com as estruturas e as dinâmicas em
simultâneo. Usando uma analogia com a Mecânica da Física clássica – que nada
prova aqui, mas serve apenas como auxiliar útil de ilustração – pode dizer-se
que a dinâmica corresponde à velocidade, enquanto a mudança corresponde à
aceleração do movimento. Isto é, a mudança apoia-se sobre os dinamismos, mas
altera-os nas suas características e intensidade, o que facilita ou conduz às
mudanças.
Embora a mudança possa ser planeada – e a isto se liga
a noção de estratégia, o médio e longo prazo –, os seus resultados são
largamente indeterminados.
Sobre esta indeterminação
ocorre acentuar dois pontos. Enquanto a indeterminação (imprevisibilidade) das
dinâmicas sociais resulta sobretudo de factores como: capacidade de percepção
dos sujeitos; qualidade e tratamento da informação circulando entre os agentes;
recursos disponíveis; capacidade para definir objectivos e articulá-los com os
meios disponíveis no sentido um melhor rendimento da acção (input-output) – a indeterminação (imprevisibilidade) da mudança social
provém mais de factores como: a incapacidade dos actores (de maior grau de
complexidade e de agregação das suas variedades internas do que no plano
anterior) em equacionarem todas as principais variáveis e condicionantes que
estão em jogo e, por isso, em desencadearem elaboradas estratégias de eficácia
assegurada; ou então da grande diferença de escala e dos recursos disponíveis,
fazendo com que certos actores sejam imunes às estratégias (pobres) de outros
actores, e estes últimos praticamente não consigam libertar-se do peso dos constrangimentos
que os primeiros exercem sobre eles.
Sobre a Crítica.
Depois da “crítica da razão pura” (do filósofo Kant), que inaugurou o conceito
de criticismo no discurso doutrinário, distinguindo a experiência e o empirismo
(razão prática) da razão que deles é independente (razão pura). Depois da
“crítica da razão dialéctica” em que Sartre põe em discussão a dialéctica de
Hegel e, de certo modo, a dicotomia entre materialismo e idealismo, não
deixando de pensar na escola de Marx que sobre aquelas bases estruturara a sua
nova conceptualização filosófica. Depois da “crítica da razão indolente” de
Boaventura de Sousa Santos, que propõe uma mudança paradigmática nas chamadas
ciências humanas, atacando de entrada o que se vem passando nos campos do
poder, da ciência e do direito, analisando os pontos de contraste entre
modernidade e pós-modernidade, e procurando desenhar uma estratégia de
pensamento e acção emancipatória que vá “contra o desperdício da experiência”
(2000). Depois destes complexos compêndios de autores consagrados, vem a
inevitável pergunta: será que poderemos esperar para amanhã o surgimento de uma
“crítica da razão crítica”, onde eventualmente seja possível confrontar o
contributo das ciências sociais e humanas com a sua pretensão hegemónica e talvez
excesso de auto-estima, na relação que vêm mantendo com as ciências exactas e
experimentais, de que talvez tenha sido exemplo antecipatório a polémica
pública havida entre Boaventura de Sousa Santos, António Manuel Baptista e
Jorge Dias de Deus?
“Ideias” e sociedade.
Para além das pessoas que, pelo seu trabalho e pela acção de entreajuda
desenvolvida no seio das suas comunidades, são imediatamente úteis a todos os
seus concidadãos, nenhuma sociedade com densidade humana pode dispensar:
-cientistas; -poetas; -artistas; -espiritualistas (religiosos, deístas ou não);
-filósofos; -utopistas (onde se incluem muitos criadores e alguns anarquistas);
e certamente ainda outros do mesmo jaez. Não pode prescindir deles mas também
não deve sacralizá-los, dar-lhes poder institucional ou instrumentalizá-los
(pela funcionarização, subsidiação ou de outra forma). Não é excepção o caso
dos sociólogos. Estes são cientistas sociais, desejavelmente autónomos, que
pensam, analisam e criticam as intervenções da sociedade sobre si própria. Não
são doutrinadores ou reformadores sociais, como se pensava há um século atrás,
nem “conselheiros do príncipe”, mas também não são ideólogos ou promotores das
estratégias dos próximos aspirantes ao poder.
É absolutamente essencial para quem procure ter uma
actividade reflexiva, crítica, sobre o mundo em que vive – e muito mais para um
“intelectual” – que regularmente converse e dialogue (e não apenas se cruze no
seu caminho) com pessoas comuns, que
são as porta-vozes do “senso comum” e geralmente actuam e pensam de acordo com
a racionalidade do “bom senso”. Para além da argumentação aprofundada que só
pode ser esgrimida entre especialistas e das mensagens estereotipadas típicas
dos discursos na rádio e na televisão, tal confronto com o mundo corrente
constitui um aferidor da plausibilidade, verosimilhança e capacidade
transformadora das ideias. É também um dispositivo anti-autoritário (ou
anti-elitista ou meramente relativista) benéfico para a atitude reflexiva do
pensador, desde que não seja por ele utilizado com o desprezo ou a sobranceria
tão comuns em certas elites.
A
relação com as linguagens. Três
exemplos de encruzilhadas da semântica e da sintaxe do discurso sociológico,
referindo “pontos fracos” que podem ser sinais de insuficiências, aproximações
grosseiras ou formulações “passe-partout”:
1º
O uso recorrente da palavra “importante” (adjectivo comummente usado na
linguagem quotidiana mas que deveria ser empregue com enorme precaução na
análise sociológica: Quanto importante?
Importante em relação a quê? Etc.).
2º
O mesmo para o termo “interessante” (quererá dizer curioso? Eis uma palavra
omnipresente no discurso oral típico dos sociólogos franceses).
3º
E ainda podemos juntar a esta pequena lista a expressão “significativo”
(rigorosamente, o que é que isto quer dizer? Será para assinalar que existe uma
relação – “un rapport” como também
dizem frequentemente os mesmos franceses – entre dois fenómenos, processos ou
entidades?).
Explorar e exemplificar esta perspectiva de entendimento
crítico.
Cuidado
com as leituras. Devemos ter presente
que as há verdadeiras, falsas e aproximadas. Atenção a: a paixão de ler; o
hábito de ler; a necessidade de ler; ler e “tresler”; os efeitos da “opinião
pública” e da “opinião publicada”; vantagens e problemas do uso das novas
tecnologias de informação e comunicação; as crescentes dificuldades da
actualização nas actividades profissionais científicas.
Modalidades
técnicas de leitura:
a) Ler
com atenção: -reter; -esquecer; -anotar; -reflectir; -criticar; - transformar.
b) Ler
“à peine” (passe o galicismo): -em
diagonal; -pelas badanas; -pelas sínteses de terceiros; -pelas críticas de
terceiros; -por impregnação cultural (ouvir dizer, ouvir discutir, etc.).
c) Ignorar:
-por escolha selectiva; -por impossibilidade ou probabilidade de menor
interesse; -por adiamento; -por não encontro físico; -fingindo conhecer, por
facilidade (evitar desvios do tema em debate), em contexto comunicativo;
fingindo conhecer, mas agora com dolo (no limiar da fraude, por pressa ou
preguiça).
Hipótese de questionamento sobre as relações entre os
processos de socialização primária dos indivíduos (família, meio social,
escola, idioma de comunicação, etc.), a expressividade (facial, gestual) e a
linguagem empregue por eles na vida adulta. Tentar registar o enfraquecimento
ou perda (ou, pelo contrário, a sua persistência ou reforço) dessa
expressividade corporal em relação com o estilo habitual do discurso oral
praticado, em particular sobre: -a contenção; -a subtileza; -o refinamento
(sobre a elaboração de sentidos significantes).
Por
último, podem copiar-se, tal qual ficaram, as notas tomadas no decurso de um
debate realizado já neste século na Universidade de Lille após o visionamento
de um filme sobre o corpo, no qual, aos referidos jogos de linguagem, se
acrescentava le jeu des immages: sur le
corps, le soi et les modèles.
Foi então acentuado que “ça ce discute”: la fille aux poils; la fille aux dents; la bonne; le
gars de 13 ans; etc. Outro ponto de discussão centrou-se sobre le malheur et la souffrance dûe au décalage
entre l’immage et la perception de son corps. Enfim, ficou anotado ter
havido consenso sobre o facto de que as imagens e as palavras punham la sexualité “au centre” et dévoilée e
que havia juízos já mais dubitativos sobre les
différences entre l’intime, le privé, l’inter-personnel et le public, tant en
termes de la localisation dans l’espace et le temps, que dûes aux attitudes
sociales.
JF / 14.Ago.2017
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