Conheço uma senhora aldeã que é um desses casos
ilustrativos ainda existentes no nosso país (e em muitos outros) em que se
combinam na mesma pessoa as velhas tradições camponesas e algumas das nossas
modernidades. É um caso singular, mas também típico da adaptação que os indivíduos
são capazes de fazer perante as mudanças das condições de vida que,
inexoravelmente, os ultrapassam.
Esta camponesa passou há pouco os sessenta anos, nunca
conheceu homem, é atarracada, forte e muito morena, tanto por herança genética
como por força de uma vida passada essencialmente ao ar livre, sujeita às
intempéries. Os irmãos casaram, abandonaram o casal e foram para as bandas das
respectivas, têm filhos e empregaram-se em modestos ofícios industriais. Esta, por ser mulher (ainda por cima pouco
bafejada pela sorte da beleza), ficou sempre na casa dos pais, como
indispensável mão-de-obra complementar e, a partir de certa altura, como a
verdadeira “segurança social” dos velhotes, cujas terras agrícolas ou
florestais são dispersas e alcançam poucos hectares.
Da agricultura e pecuária tradicionais, sabe de tudo:
cavar, adubar, plantar, mondar, empar, desbastar, podar, colher e mais o resto.
Só acha que não sabe enxertar e não limpa oliveiras e outras árvores grandes
porque delas caiu uma vez e considerou que era mais tarefa para homens, ou
talvez para não lhe espreitarem as pernas. Não domina qualquer maquinaria
agrícola (salvo o accionar do motor electro-bomba que lhe aspira a água de um
poço para um tanque de rega superior), mas a pá, a forquilha, a enxada, a foice
e o foição, o malho, o serrote, a enchó, a sachola, a tesoura de poda, as
peneiras, o forno de lenha e todo o resto da ferramentaria antiga do trabalho
da terra não têm para ela qualquer segredo ou dificuldade. Maneja-os com
(quase) a mesma potência de um masculino e decerto com mais acerto do que a
maioria deles. Já não guia carroças (que apodrecem nas lojas) mas transporta em
carros-de-mão qualquer carga de abudos, excrementos, palhas, grãos ou frutos.
A sua inexperiência de afectos carnais foi
transferida, há muito, para a lida com os animais de trabalho e criação: os
burros e muares já desapareceram, substituídos por máquinas manobradas por
vizinhos e pagos à hora. Mas os currais de ovelhas e cabras, os porcos e coelhos,
os gatos e cães das redondezas, têm nela uma guardadora reponsável, conhecedora
e amorosa. Acaricía os animais, trata-os pelos nomes, faz-lhes a cama e
serve-lhes o pasto ou a ração, apalpa-lhes as partes para diagnosticar alguma
anomalia, faz o papel de parteira (às vezes, bem difícil), afoga prontamente os
excedentes de uma ninhada e só em último caso corre a chamar o veterinário.
É que esta nossa camponesa é uma mulher inteligente
que, com outra origem e educação, poderia ter chegado longe. Mais e melhor do
que muitos “doutores”. Raciocina com lógica e facilidade. Sustenta longas
conversas com propriedade e a-propósito. Exprime-se bastante bem. E tem
convicções fortes que se não vergam à argumentação do primeiro letrado que
apareça. Até porque, sempre que as canseiras rústicas lho permitem, ela lê tudo
o que lhe cai à mão: folhas paroquiais, jornais locais ou mesmo a “imprensa de
referência” que lhe seja deixada por algum conhecido da cidade; ouve e fica a
matutar sobre os noticiários da rádio e da televisão; segue mesmo alguns dos
debates televisivos menos rebarbativos e não raro formula as suas próprias
opiniões acerca deles.
Mas volta a ser a camponesa tradicional no que toca ao
apego à família próxima, à propriedade fundiária, às celebrações religiosas.
Esses, são valores sagrados dos quais nenhuma argumentação a demoverá – salvo
em caso de conflito interno entre eles: desavenças em processos de partilhas;
algum “acto vergonhoso” oriundo de sacerdote ou de familiar; o tesoureiro da
“comissão fabriqueira” que fugisse com o cofre; ou qualquer outro gesto de
natureza semelhante. Também são por ela herdadas e assumidas as reputações
rasteiras e as malvadezes que por vezes dividem irremediavelmente alguns dos
grupos (incluindo do mesmo sangue) que coabitam na aldeia. As
histórias-à-lareira ouvidas desde pequenina das bocas dos anciãos familiares
são o seu verdadeiro Livro, onde se construiram os valores de referência que
orientaram todo o desenrolar da sua vida, nas suas cíclicas repetições, acontecimentos
inesperados e definitivos desenlaces. Até que Deus “seja servido” chamá-la à
sua presença.
JF / 5.Ago.2017
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