Mesmo num
mundo já em grande medida comandado pela ciência, as crenças estão longe de ter desaparecido, sejam elas religiosas,
político-ideológicas, nacionalistas ou de fé em qualquer outro tipo de verdades
– indemonstráveis racionalmente mas sempre plausíveis, face à inesgotável
imaginação dos humanos. Elas (as crenças), quando partilhadas por muitos,
também proporcionam integração comunitária, segurança e satisfação pessoal para
os indivíduos assim integrados. Mas quase sempre vêem com desconfiança, ou por
vezes mesmo com animosidade, aqueles que não pertencem à sua “fratria”, em
especial quando ambas concorrem pela apropriação de certo tipo de recursos,
materiais ou simbólicos. As guerras religiosas e as guerras inter-nacionais
foram fenómenos extremos destas tensões, mas nem por isso raras nem menos
significativas – e também sempre produtoras de sofrimento e destruição. Neste
sentido, deve ser saudado o esforço ocorrido na modernidade para, por meio de
negociações, tratados e organizações supra-nacionais, superar os antagonismos
entre poderes estatais, a benefício de uma ordem mundial mais pacífica e, se
possível, mais justa. E devem igualmente ser saudados os passos dados por
algumas das grandes religiões instituídas em direcção a um maior ecumenismo,
tolerância ou fraternização inter-religiosa.
Hoje, podemos
constatar em nossa própria casa o caminho percorrido por confissões religiosas
dominantes desde o tempo em que ocorriam matanças anti-judaicas (como o progrom de Lisboa de 1506) até às
pacíficas manifestações de fé religiosa como Fátima agora exibiu; e
confrontá-lo, em outros lugares, com os morticínios acidentais que que não raro
acontecem em Meca, sem hereje por perto, apenas devido ao descontrolo de massas
fanatizadas, ou a indignidade dos conflitos inter-religiosos que mesmo agora
têm ocorrido em Jerusalém pela apropriação simbólica dos “lugares santos”.
Estes são factos que interpelam sobretudo as lideranças dos movimentos
religiosos, onde se situam os seus mais altos chefes, os teólogos e os
organizadores da cadeia ou estrutura clerical que, no conjunto, funcionam como intermediários entre os crentes e a
divindade (e amiúde mereciam ser criticados). Mas isto não explica nem resolve
o fenómeno da crença religiosa com que a humanidade se tem confrontado, a
partir da dúvida existencial que subsiste em cada ser, enquadrada pelo meio
social em que se encontra inserido. A confissão de um “retorno à fé” por parte
de uma personalidade culta, inteligente e afirmativa como Clara Ferreira Alves (ver
o Expresso de 13.Maio.2017 e também a
entrevista já aí publicada a 21.Novembro.2015) tem, nestas circunstâncias, um
valor intrínseco que, independentemente de argumentos, críticas ou louvores,
deve ser respeitado e suscitar a reflexão de terceiros.
Todo o poder
político moderno, particularmente no caso do Estado-nação, coloca em termos
semelhantes a relação da “classe dirigente” com os seus cidadãos. O governo
democrático – do povo e para o povo – exige necessariamente esse mesmo papel de
intermediação, e daí os inevitáveis instrumentos que são os partidos políticos
e as consultas eleitorais ou referendárias. Mas, como diria alguém, não há
intermediações grátis: não somenta elas têm um custo quantificável mas também
desenvolvem interesses e estratégias próprias, que lhes importa conservar e
alargar.
Voltemos,
porém, à questão da crença para afirmar que nenhuma crença colectiva ou
partilhada consegue marcar duradouramente o meio social onde existe se não se
dotar dos instrumentos de acção colectiva
indispensáveis para alargar a sua influência, subsistir face à evolução dos
tempos ou às agressões de que possa ser alvo. E não se pode falar de acção,
nesta escala já grandiosa, sem a ela juntar os dispositivos de organização capazes de lhe permitir a
continuidade, a regularidade e a normatividade convenientes – isto é: capazes
de actuar durante, e permanecer para além, das meras conjunturas. Nestas
últimas, imperam a criatividade, as lideranças carismáticas, a resiliência e
capacidade de reacção. Para além delas, tem de salientar-se o papel das instituições, que têm tanto de efeitos
de congelação dos impulsos e gestas emocionais como, simultaneamente, garantem
o papel de regularizadores da vida colectiva e de provedores da previsibilidade
de que cada ser humano necessita para sustentar a sua existência e os laços que
o unem a terceiros.
O espírito de
seita e o antagonismo doutrinário manifestam-se frequentemente nas formações
voluntárias de cidadãos. Estas, representam interesses, identidades e visões de
futuro diferentes (quer sejam movimentos, sindicatos, partidos ou lobbies), todas legítimas, é certo, mas
que se encontram quase sempre submetidas à lógica da luta pelo poder de Estado
(ou procuram influir na sua actuação) e por isso se deixam cegar, a ponto de
perderem totalmente a noção de bem-comum
na sociedade de que fazem parte, seja ela de enraizamento local, nacional ou
(hoje) mundial. Pior, claro, é quando no território de um Estado-nação as
partes desavindas pegam em armas e instauram uma situação de guerra civil.
Laboriosamente,
os estados ocidentais curaram desde há mais de um século de introduzir normas
jurídicas regularizadoras dos conflitos guerreiros, para travar ou limitar o
potencial de barbárie aí existente e tão conhecida no passado mais longínquo.
Porém, parece ter acontecido que as partes beligerantes mais fracas se sentiram
impelidas a ignorar as referidas regras, seja violando-as grosseiramente e
ridicularizando o seu alcance, seja contornando-as por via da “guerra
subversiva”, do “terrorismo” ou actualmente por meio da “ciber-guerra”. É certo
que factores como a capacidade económica, os jogos diplomáticos ou as
chantagens sobre populações civis sempre estiveram presentes nos conflitos
entre poderes soberanos ou fácticos. Contudo, no último meio século foram raras
as guerras “regulares” mas inúmeros os conflitos não-declarados, o que poderá
dar alguma consistência a esta tese da contemporânea “desregulação da guerra” e
da sua nova “mercenarização” e “barbarização”, coexistindo aliás (não por
acaso) com o maior e mais completo dispositivo jurídico de protecção da vida
humana que alguma vez existiu à face da Terra.
Ao contrário
da crença (ou da fé verdadeira), a hipocrisia
comanda muitas vezes expressões verbais e comportamentos gestuais dos
indivíduos apenas ditados pelo interesse, a pusilanimidade ou a cobardia.
Acontecem também formas de oportunismo colectivo por vezes bem intrincadas com
crenças ideológicas. Um exemplo, sem intuitos de melindre pessoal: ouvir o
socialista dr. Jorge Coelho, em espaço de grande audiência televisiva e com
aquela convicção que lhe é habitual, dizer que a única maneira de um país como
Portugal se realizar, para corresponder aos anseios do seu povo, é (cito de
memória) “lograr um crescimento económico significativo e de forma sustentada”
será apenas um exercício de realismo? ou antes a proclamação de uma condenação
sem remissão das doutrinas socialistas (que, se eu não ainda não “endoidei”, se
construíram na crítica do regime económico do capitalismo)? ou ainda uma
demonstração da hipocrisia a que me referia acima?
A ciência e a
reflexão filosófica resultaram essencialmente da inquietação e vontade de
saber. O método científico moderno constituiu a base axiológica sobre a qual se
desenvolveu, a um ritmo inusitado, todo o progresso técnico contemporâneo, a
economia de mercado capitalista e, por último, o recente (há pouco mais de um
século) desabrochamento das ciências humanas. Nessa plataforma epistemológica
definitiva (até quando?), a possibilidade de repetição de prova empírica passou
a desempenhar um papel crucial, substituível em certos casos por uma acumulação
de dados captados na empiria que constituissem indícios convincentes de que uma
nova “lei” (regularidade objectiva, não dependente das preferências do
cientista) podia ser tomada como verdadeira, porém somente enquanto alguma nova
formulação não viesse, pelos mesmos métodos, infirmar aquela verdade.
Este derivação
serve-nos aqui apenas para colocar a disposição-de-espírito do cepticismo, não tanto como uma atitude
filosófica – cujas origens radicam, como outras, nos Antigos Gregos –, mas
antes como uma precaução metodológica acessória ao pensamento moderno que, em
última análise, se fundará sobre os pressupostos epistemológicos da ciência que
conhecemos e sobre as ilações que podemos eventualmente retirar de uma análise
atenta do desenvolvimento técnico-científico-económico-cultural dos últimos
dois ou três séculos. Mesmo homens de pensamento e acção como o conservador
Churchill ou o anarquista Malatesta (da maturidade) deixaram-nos escritos
avisando para a prudência a observar na gestão das resistências ou das mudanças
sociais que só podem decorrer da presença nos seus espíritos de uma determinada
componente de cepticismo, que diríamos ser de natureza epistemo-metodológica.
Esta, a origem
e fundamentação da atitude céptica contemporânea. Mas ela sempre esteve
impregnada em muitas circunstâncias da vida dos povos e das relações entre as
pessoas, das suas próprias mundividências. Nem no primeiro caso temos de a
reverenciar como algo de transcendente ou só ao alcance de uns poucos, nem no
segundo se deve desvalorizar excessivamente essa sua difusão entre as largas
massas de população. No Ocidente, a esmagadora influência das crenças
religiosas cristãs (e judaicas, embora amarfanhadas por aquelas) começou a ser
desafiada pelo pensamento iluminista e em seguida pelo desenvolvimento da
ciência moderna. O cepticismo, em relação à existência de um Ser Supremo
criador do universo e definidor das grandes linhas da sua existência, foi-se
naturalmente instalando no espírito dos Homens com apoio nos progressos da
ciência mas, sobretudo, devido às comodidades facilitadas pelo progresso
técnico e a abundância de produtos a que as sociedades contemporâneas se foram
cada vez mais acostumando. Para quem tem hábitos alimentares, a fome é
geralmente insuportável e supri-la é a prioridade. Mas quem já está saciado
arranja sempre outras formas de focalizar a sua capacidade de inteligência e
acção, para o bem como para o mal, podendo então desafiar com mais à-vontade as
verdades e as regras estabelecidas.
Mesmo nas
regiões do mundo mais arcaicas, a racionalidade instrumental do capitalismo
moderno, através da exploração do trabalho ou da apropriação das riquezas
naturais ou produzidas, minou a estrutura de crenças religiosas ou animistas de
muitos desses povos, ao mesmo tempo que a cultura ocidental percutia de modo
mais ou menos frontal as formas mais chocantemente desiguais da sua organização
social (submissão feminina, poder tribal, escravização, etc.). Deixou muitas
vezes o deserto e o desamparo – e talvez as raízes de uma atitude céptica –,
mas não se pode dizer que se tratou de uma mera operação de expropriação
imperialista dos mais fracos: ao lado da vantagem económica, seguiu a
missionação evangélica para “a salvação das almas”, que foi de par com a
difusão iluminista de algum saber erudito, com a alfabetização e com a
higienização dos corpos e dos espaços habitacionais. As ideias emancipalistas
também brotaram deste back ground.
O verdadeiro
cepticismo não pode ser confundido com um cepticismo trapaceiro, maneira
popular de referir a atitude tipológica do cinismo
– não a defendida por certos filósofos Gregos amantes da virtude, mas antes a
propugnada por analistas e teóricos do poder como foi o notável renascentista Maquiavel.
Tocamos aqui,
ao de leve, a terceira posição que procuraríamos explorar, a da lucidez.
Não ser
crente, mas ser capaz de compreender e interpretar as razões das crenças, pode
ser um passo na direcção da lucidez. Controlar o cepticismo inerente ao
espírito científico sem cair no cinismo ou na depressão psicológica ajudará
decerto à aquisição de um estado de lucidez que só poderá enriquecer-se com
quantos maiores contributos puderem ser apropriados no âmbito do conhecimento
da história e nos domínios da cultura. Neste ponto, é também muito instrutiva a
leitura de um sintético mas felicíssimo artigo de opinião da autoria do
universitário João Paiva, enganadoramente intitulado “A apologia da ciência e a
inutilidade das artes e das humanidades”, que foi ontem divulgado (Público, 1.Junho.2017).
Mas não se
iluda o lúcido, nem aqueles que o queiram admirar ou imitar. A lucidez não traz
felicidade e talvez aproxime do inferno. Sobretudo, para que possa com mais
impacto transmitir-se a terceiros, faltam-lhe as armas decisivas da acção e da
organização. E geralmente, como se diz em linguagem corrente, sobra-lhe o
defeito de, porventura, “ter razão antes do tempo”.
JF / 2.Jun.2017
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