Falo do que não conheço. Por isso, não afirmo;
pergunto (mesmo quando não grafo o ponto-de-interrogação).
Ao contrário do que muita gente pensava, os bancos
não são um sítio onde “há dinheiro”, onde guardamos as nossas poupanças e às
vezes pedimos emprestado. São, agora mais visivelmente, um “escritório contabilístico” onde existe
alguma moeda em circulação mas, sobretudo, onde se escrituram os créditos dos depositantes
(e de alguns “investidores”) de um lado, e os débitos concedidos em
empréstimos, por outro – tudo na observância de determinadas normas prudenciais
para salvaguardar riscos, com reservas monetárias ou outros “activos”
suficientes, garantir solvências e prever falências não-catastróficas, mediante
o cumprimento de certos rácios quantitativos, uns da iniciativa própria de cada
instituição, outros forçados por acordos estabelecidos entre os bancos-centrais
de vários estados, chamados “de Basileia” (sede do Banco de Compensações
Internacionais e de um Comité de Supervisão). Houve um acordo “Basileia I”,
assinado em 1988, que estabeleceu montantes mínimos de capital para cobrir os
riscos do crédito concedido em empréstimos e em investimentos próprios;
seguiu-se um “Basileia II”, em 2004, que aperfeiçoou os dispositivos anteriores
e procurou estabelecer uma supervisão mais eficiente por parte das entidades
reguladoras (fundamentalmente, os bancos-centrais); e, já por efeitos da crise
financeira internacional de 2008, fixou-se dois anos mais tarde um “Basileia
III”, que procurou precaver os funestos efeitos de uma “corrida aos bancos”,
passando a exigir uma qualidade mais comprovada dos activos de cada instituição
para se proteger contra tais riscos.
Além disto, o Banco Central Europeu, no quadro de um
caminho para a chamada União Bancária (no âmbito da moeda comum Euro), estabeleceu a partir de 2012
vários instrumentos para prevenir os efeitos que uma “bancarrota” – mesmo
singular, desde que se tratasse de uma instituição importante – teria sobre o
conjunto do sistema financeiro e sobre as próprias finanças públicas dos
estados (ou seja, os pagadores-de-impostos, que muitas vezes foram chamados a
intervir, por alegadas razões sociais). Foram, principalmente: o Mecanismo
Único de Supervisão (e devido a isso, por exemplo, a nomeação dos
administradores da nossa Caixa Geral de Depósitos tem agora de ter o agrément europeu); o Mecanismo Único de
Resolução (isto é, os procedimentos a cumprir em caso de falência); e o Sistema
Único de Garantia de Depósitos. Este último estabeleceu um fundo financeiro (que está ainda em vias de capitalização) para
socorrer os mais prejudicados em caso de falência bancária (os simples
depositantes, até ao montante de 100 mil Euros por pessoa), fixando
simultaneamente graus de responsabilização financeira diferenciados entre
outras várias categorias de credores: simplificadando ao máximo, digamos que
“perdem tudo” os accionistas da entidade falida e os detentores de “fundos de
investimento” e de “obrigações subordinadas”; perdem parte dos dinheiros
aplicados os simples detentores de obrigações (que emprestaram dinheiro ao
banco a juro fixo); e perdem ainda os meros depositantes em tudo o que exceda
os 100 mil garantidos (restando saber se o respectivo Fundo possuirá recursos
para tal, e em que prazos).
É justa esta distribuição de “resultados negativos”?
A mim, leigo na matéria e mero depositante de poupanças (porque nos “obrigam” a
isso, pois até para receber salários e pensões temos de ter conta aberta no
banco, não há hoje condições de segurança “debaixo do colchão” e só alguns
poucos podem comprar obras-de-arte ou propriedades fundiárias), parece-me que sim – comparativamente às operações de “resgate” que muitas vezes o
Estado faz, em que quem acaba por pagar são todos os contribuintes e, em geral,
a população, sem distinção de ricos, remediados e pobres, sendo estes os que
necessariamente mais sofrem.
Quando o Estado intervém para salvar algum banco no
actual contexto económico (por “nacionalização temporária” ou de outra forma,
com dinheiros ou activos públicos), afirmam geralmente ser por “razões
sistémicas”, quer dizer: para evitar uma derrocada em cascata de todo o sistema
financeiro. Eis uma justificação que só alguns poucos são capazes de entender
antes do tempo em que chegam e ficam à vista de todos as consequências de tais
decisões. Para o comum dos cidadãos, resta apenas a confiança nas afirmações dos responsáveis, ou a falta dela.
Por outro lado, como se viu com (parte d’) os
“lesados do BES”, a iliteracia financeira da maior parte das pessoas que
conseguem aforrar e as técnicas comerciais insidiosas usadas pelos empregados
bancários (que também ganham comissões nisso) levam muitos incautos a
subscrever títulos “de risco” pelo atractivo de uma melhor remuneração,
julgando tratar-se de uma mera “aplicação” garantida e sentindo-se depois
defraudados quando “rebenta o escândalo” e verificam que ali perderam o seu
dinheiro.
Portanto, duas orientações deviam ser tomadas com
urgência e rigor: travar (pelas inspecções e supervisões adequadas) aquelas
práticas comerciais; e incluir nos programas de estudos básicos da população
matérias esclarecedoras destes mecanismos da vida moderna.
Mas uma palavra deve ainda ser dita acerca das responsabilidades incorridas nestes
casos de falência (além da investigação e castigo de eventuais delitos
criminais). Julgamos necessário tornar muito mais rigoroso o apuramento de
responsabilidades numa instituição que chega ao ponto de falência, no que
respeita aos seus administradores e
quadros superiores envolvidos em decisões que se verificaram ser gravosas
para todos. Para uma “classe de decisores” que, nas últimas décadas, mais se
tem locupletado com o rendimento produzido nas suas empresas, não é pedir
demais.
Neste ponto é oportuno chamar a atenção para a
limitada incidência que hoje tem a acusação por todos os males sociais que desde
há século e meio as esquerdas socializantes (incluindo comunistas,
sociais-democratas, esquerdistas, anarquistas e mesmo mais recentes movimentos
católicos) atribuem à “classe proprietária” (ou burguesia), sobretudo quanto à
deficiente distribuição da riqueza no nosso mundo moderno. Se é verdade que,
citando casos concretos, uma distinta família de banqueiros (os Espírito Santo)
foi capaz de quase arruinar as finanças do país, mais verdade é o facto de parvenus ascendidos-a-pulso como José
Oliveira e Costa (Banco Português de Negócios) ou Tomás Correia (Montepio
Geral) terem sido autores de gestões delituosas ou de greve risco com dinheiros
que não eram seus, em instituições que não tinham herdado de família mas de que
apenas eram mandatários de investidores ou do crédito de confiança que os
depositantes lhes concediam. São este tipo de “trabalhadores que ascendem” (a
gestores e funcionários de alto nível das grandes empresas e instituições públicas),
que, como bem sabemos desde Galbraith, tomam actualmente decisões que vêm a afectar
seriamente a vida da generalidade dos povos. Mas, por não terem nomes
conhecidos, passam mais descercebidos do que os Rothschilds, os Rockefellers ou
os Melos. Só quando, apanhados nas redes da comunicação social (e mais
raramente da justiça), os seus arriscados negócios e complicadas manipulações
(que a globalização financeira hoje permite e estimula) vêm a público é que
damos conta da sua imagem, nos ecrãs de televisão ou nas “redes sociais”, com
foros de escândalo.
Paralelamente àquela necessária responsabilização (gestionária,
fiscal e criminal), deveria também ser incrementado o grau de
profissionalização dos empregados bancários (também de seguradoras e outras
entidades de intermediação financeira), que os torne aptos a poderem resistir a
eventuais pressões ilícitas das suas chefias para determinadas práticas e
operações menos legítimas para a confiança pública em geral, e para os clientes
em particular.
Há dias, num artigo de opinião (Público, 15.Mai.2017), o economista Ribeiro Mendes, que já foi
membro de governo socialista, reafirmava a sua fé nas «mutualidades, caixas
económicas, cooperativas de crédito mútuo e outras entidades afins» mas não
conseguia disfarçar a preocupação que o actual sistema financeiro constitui
para a sobrevivência destas instituições da economia social. Estando certamente
a pensar sobretudo no caso do Montepio Geral, não pôde dizer melhor do que recomendar
«uma oferta solidária responsável mais atractiva» procurando explorar os
«sectores da sociedade que os mercados mais tendem a excluir», perante a
inevitável necessidade de «concentração» e «intensa capitalização».
Verdadeiramente, o fulcro do negócio bancário
situa-se na fixação das taxas de juro. Certamente que, para o banco ser
sustentável e produzir lucros para os seus accionistas, os juros dos depósitos
têm de ser globalmente inferiores aos
juros dos empréstimos consentidos. O que parece ser traduzido no aforismo que
costuma afirmar que “os bancos ganham é nos empréstimos que concedem”. As taxas
de juros são determinadas por vários factores: a concorrência inter-bancária é
decerto um dos mais poderosos; mas também há a fixação das taxas de câmbio
entre as várias moedas (derivadas de negócios internacionais e que podem
constituir reservas bancárias), as inovações comerciais e técnicas
(tele-bancos, ATM’s, comunicações bolsistas, etc.) que alteram as condições da
actividade financeira e até certas normas ditadas pelos governos (vide a antiga
fixação do “juro de lei” para prevenir a usura). Ao lado disto, há outras
fontes de rendimento, já abusivas relativamente a alguma antiga ética bancária
que ainda possa subsistir, como é o caso das “comissões”, que quase sempre
excedem os custos do serviço que afirmam prestar (quando mesmo o justificam…).
Mas, dadas as diferenças de escala, parecem ao mero espectador serem hoje duas, as principais fontes de rendimento
onde as entidades bancárias procuram envolver-se e querem garantir para si: um volume tão grande quanto possível de
depositantes-aforradores (a quem podem depois tentar vender novos “produtos
bancários” sempre com roupagens apetecíveis); e enormes negócios de fundos financeiros e empresas gigantes
multinacionais, quase sempre com participação de governos nacionais (seja como
investidores, mutuários, accionistas, clientes, avalistas, etc.). Esta era, no
fundo, a diferenciação que em tempos existia entre “bancos comerciais” e “banques d’affaires” mas que talvez já
esteja obsoleta, tal a variedade e especialização financeira hoje existentes.
A actual experimentação da moeda virtual bitcoin, assente numa tecnologia de
informação inovadora, a blockchain,
ainda de uso muito restrito mas já praticada por algumas grandes empresas
multinacionais, irá revolucionar (dentro de cinquenta anos, digamos) o sistema
bancário mundial (de maneira paralela àquela com que a plataforma uber veio concorrenciar o tradicional
negócio dos taxis)? Ou será mais uma porta escancarada para vigarice e a
opacidade dos sistemas financeiros?
E, para terminar, tocamos aqui o papel do Estado na
economia mundial, mercantil e capitalista, que hoje conhecemos. Ao contrário do
que poderia parecer neste sistema de quase-livre-troca à escala global, os
governos (das nações e das principais cidades do planeta) não têm hoje menos
importância no funcionamento das economias do que o tiveram nos tempos em que
estavam na moda as “economias dirigidas”. Dependendo embora da força (ou da
fraqueza) do seu desempenho económico (produção, consumo, comércio externo,
endividamento, etc.), os estados ainda definem alguma coisa nas taxas de câmbio
das suas moedas, controlam a emissão monetária (e, por essa via, um pouco a
inflação), constituem um “centro de custos” muito significativo (que financiam
com os impostos cobrados, além da “venda de títulos de dívida”) e tutelam de
várias maneiras os respectivos bancos-centrais, além da sua capacidade soberana
de “ditar leis”. É por isso que o Banco Central Europeu constitui uma anomalia
(e talvez uma disfunção) na regulação económica do espaço europeu e da moeda Euro. Aquela instituição bancária
emissora terá sido pensada para ser complementada por outros progressos no
quadro da União Económica e Monetária, que não aconteceram e talvez já não
possam ser concretizados, ficando a política monetária muito isolada e lidando
com realidades político-económicas nacionais muito diferenciadas.
Se
assim é, que pena só agora compreendermos isso! E onde estavam os
filhos-dos-“pais-da-Europa” (incluindo o sr. Delors) que não nos alertaram para
o problema?
Mas,
não podendo “rebobinar a fita”, há talvez que aproveitar o já existente, travar
os nossos nacionalismos (mesmo os não-confessados) e procurar soluções que
salvaguardem as liberdades e as autonomias fundamentais mas incrementem as
melhores cooperações.
JF
/ 20.Mai.2017
Sem comentários:
Enviar um comentário