A cidade de Raqa, capital proclamada do Estado
Islâmico do Iraque e do Levante (ISIL ou ISIS), parece já estar a ser assediada
por milicianos curdos apoiados (e orientados?) pelos Estados Unidos. O cerco de
Mossul por forças do exército do Iraque e milícias xiitas iraquianas e curdas,
com idêntico apoio aéreo de países ocidentais, vai prosseguindo, sem que se
consiga socorrer eficazmente a população civil refém dos cruéis combatentes do
Daesh nem, por outro lado, evitar pilhagens e vinganças sangrentas de xiitas
sobre sunitas. E na zona ocidental da Síria o poder militar do presidente
Assad, com os bombardeamentos aéreos dos seus aliados russos e a preciosa ajuda
das milícias xiitas do Hezbolah, vai pouco a pouco reassumindo o controlo da
maior parte do território e das principais vias de comunicação terrestres,
isolando as bolsas do ISIL em Palmira e outros lugares, e as dos rebeldes
anti-governamentais sírios em zonas cada vez mais restritas. Apenas na
fronteira norte os Curdos em armas não foram ainda afrontados, mas estes são de
vez em quando fustigados por retaliações e ataques das forças da Turquia (com o
material NATO de que dispõem). É legítimo reconhecer ao povo curdo a ambição de
vir a constituir uma entidade política nacional reconhecida pelos restantes
estados, mas o recurso ao bombismo e à guerra de guerrilhas dos seus peshmergas, colocando-os na dependência
de russos, americanos ou de quem lhes forneça armas, não augura nada de muito
interessante quanto ao regime que conseguirão porventura instalar na região
montanhosa que partilham com o Irão, o Iraque, a Turquia e a Síria. E talvez
que a natureza das relações que consigam manter com a minoria religiosa Iazidi
nos venha a indicar a futura tolerância do seu Estado, ou a sua ausência.
Temos, pois, nestes vastos territórios
maioritariamente desérticos, uma guerra
convencional de baixa intensidade
travada no terreno em torno de cidades (onde se apinham populações pobres), com
base em assaltos de infantaria e veículos armados com castigos de artilharia,
completados por bombardeamentos aéreos (e ocasionalmente navais de longa
distância, sempre de potências estranhas) sobre nós de comunicações, depósitos,
reservas e postos de comando dos insurgentes. Nestas condições, as discretas
operações de infiltração de tropas especiais ocidentais e russas (ou
autóctones, por estes treinadas) e a espionagem e contra-informação militar a
partir de satélites e no ciber-espaço têm um papel muito importante, a que se
liga a propaganda soltada para os mass
media e “redes sociais”. Estes meios
têm autonomia própria, que pode agir em sentidos diversos e opostos, mas não
são imunes àquelas penetrações.
Manobras de guerra de maior intensidade militar mas de
curta duração ocorreram na Ucrânia há
três anos, após o episódio da Crimeia e com mal-disfarçado envolvimento da
Rússia, seguindo-se uma rápida passagem para intermináveis e inconclusivas
negociações diplomáticas, que não livraram Putin de medidas de retaliação
ocidental gravosas para a sua economia e do isolamento de que ainda agora
padece, que só tem vindo a ser rompido pela surpreendente estratégia do novo
presidente Trump.
Assistiu-se também há pouco, na retaguarda, a manobras diplomáticas da mais alta importância
acerca das quais, nem nós nem a maioria dos comentadores foram capazes de
captar todo o entendimento, naquilo que traziam escondido e no que foi
revelado. Na viagem inaugural de Trump pelo mundo, focou-se sobretudo a venda
de armamento à Arábia Saudita mas menos o seu discurso a uma alargada
assembleia de chefes de estado do mundo árabe; e nas cimeiras da NATO e do G7
de Taormina, o quase completo desacordo com os outros ocidentais. Mas já se
percebe agora que a operação de isolamento diplomático do Qatar que ocorreu
dias depois foi uma decorrência directa de compromissos então tomados em Riad
para cercar os bastiões xiitas na Síria, no Iémen e sobretudo na potência
regional que é o Irão, ainda que sacrificando o Daesh e alguns dos seus
apoiantes do Golfo Pérsico. Irá o conflito religioso entre sunitas e xiitas
passar a uma nova fase protagonizada por um inédito realinhamento de estados na
região, e a um outro nível de confronto bélico? Ou terá sido mais um ímpeto
publicitário “à Trump” e no Golfo tudo voltará em breve ao que era antes,
enquanto entidades públicas ou privadas sauditas continuam a financiar os
sunitas armados do Levante ou a construção de mesquitas e a acção proselitista
dos seus imãs na Europa?
Enquanto esperamos pela decantação desta complexa
situação, as derrotas militares sofridas e a redução do espaço de manobra do
Estado Islâmico no seu califado levantino determinaram já há algum tempo uma
sua operação estratégica de retirada,
para outros objectivos e outros meios de actuação. É de crer que a aventura do
Estado Islâmico e a sua guerra impiedosa na Síria e no Iraque estejam
terminadas em breve, embora seja provável que prossiga o conflito entre os
curdos e o governo turco. As autoridades de Bagdad e Damasco (com ou sem a
presença de Assad) estarão sempre enfraquecidas e deverão resignar-se a ver os
curdos afirmarem-se mais autonomamente nas suas províncias setentrionais. E não
é crível que a Rússia se empenhe em tal caso, uma vez que o seu grande
objectivo nesse flanco é a saída para o Mediterrâneo e uma Turquia que não lhe
levante obstáculos. Em qualquer caso, acabando a guerra aberta na Síria e no
norte do Iraque, sobra para a União Europeia o problema das centenas de milhar
de refugiados que aqui se acolheram, e persistirá o êxodo de africanos e
asiáticos pela porta escancarada da Líbia e do Mediterrâneo cuja resposta
militar ou de segurança será sempre de muito pequeno efeito sobre as causas do
fenómeno.
Os dois instrumentos principais usados pelo ISIL na
sua campanha guerreira – a crueldade sangrenta sobre quaisquer alvos humanos e
a hábil adaptação e utilização da actual cultura informática global, sobretudo
por via das “redes sociais” – mantêm-se nos atentados ultimamente praticados na
Europa mas estes têm descido progressivamente de escala e grau de gravidade. Os
atentados bombistas ou tomadas de reféns colectivos têm-se tornado mais raros –
ao contrário do que continua a acontecer em África e sobretudo na Ásia – e as
violências com intenção terrorista são hoje cometidas por “amadores” com
instrumentos rudimentares: estamos a passar do uso de armas portáteis
automáticas para as facas de cozinha. Isto, sem que o alarme público deixe de
soar e que as pessoas se sintam menos ameaçadas, graças sobretudo ao efeito
multiplicador dos mass media. O livre
escrutínio dos acontecimentos por parte destes órgãos informativos é uma marca
constitutiva da nossa cultural ocidental, visível sobretudo no papel dos
comentaristas e no confronto de opiniões. Mas o apetite pelo “furo informativo”
torna estes meios quase-aliados do terrorismo quando eles contribuem para
instilar nas populações sentimentos de pânico e estes servem para virar os
cidadãos de ascendência nacional contra as comunidades imigradas mais recentes,
em especial as de religião islâmica. Esta é uma linha estratégica fundamental
do terrorismo contemporâneo.
Não somos capazes de escapar ao impacto mediático da
actualidade. Quase ao mesmo tempo em que se celebrava um espectáculo desportivo
de alto nível onde alguns europeus do sul davam cartas (com destaque para o
“nosso” Cristiano Ronaldo), 80 mil jovens alemães tinham de ser evacuados de um
local aberto de concerto rock por
alarme de bomba, centenas de tiffosi
ficavam feridos por pânico e atropelo em Turim quando assistiam à derrota da Juve em ecrãs gigantes e o mundo ficou
toda a noite suspenso das imagens de mais um atentado praticado em Londres
contra inocentes, com toda a marca de radicais islamitas.
O terrorismo – seja ele escrito com ou sem aspas – vem
cada vez mais fazendo parte do nosso quotidiano, como os desastres de
automóveis ou as incivilidades e violências urbanas. Provoca geralmente menos
vítimas nos países do Ocidente do que no Médio Oriente graças aos nossos
serviços de informação e de segurança, mas é muito mais amplificado do que
esses devido aos aparelhos mediáticos, à sensibilidade das populações a qualquer morte (ou ofensa física, por
hedonismo) e às prioridades de agenda dos actores políticos.
Há um século atrás, ainda havia quem conseguisse
concretizar atentados mortíferos sobre chefes de Estado ou outros altos responsáveis
políticos: em Portugal, por exemplo, assistimos ao regicídio de 1908, à morte
do presidente Sidónio em 1918 e ao assassínio do primeiro-ministro Granjo em
1921. Isso hoje já não é possível. Os estadistas, governantes e outras altas
patentes públicas – e as suas cimeiras ou encontros internacionais – estão
permanentemente rodeados de uma fortíssima cintura de segurança, dobrada por
uma outra cerca informativa gerada pelas televisões, rádios e imprensa escrita.
Apenas as “redes sociais” escapam a tal controlo mas, em contrapartida,
permitem e estimulam toda a sorte de insanidades e esvaziamento de frustrações,
para além das manipulações, grosseiras ou sofisticadas, de que estamos a tomar
agora mais consciência.
Os “mediadores de massas” – sejam eles chefes tribais,
párocos de aldeia, caciques locais, jornais, discursos de caudilhos
amplificados pela propaganda, mass media
ou agora as novas tecnologias de informação – quase sempre colocam os
indivíduos comuns numa tutela menorizada, como se não fossem capazes de pensar
por si mesmos. Talvez as ciências sociais e humanas, ou mesmo as biológicas e
médicas, confirmem isto mesmo, pelo menos em sociedades massificadas e onde a
escolarização se limitou a adaptar os indivíduos para a vida e a economia
modernas, enquanto consumidores. Porém, apesar disso, a difusão da ciência (e
dos seus resultados com aplicações práticas), por um lado, e uma mais cuidada
captação (do caos) da informação por parte dos públicos, por outro lado,
tornarão talvez possível uma real emancipação dos indivídios face àqueles aparelhos de poder – que no fundo são,
embora se apresentem hoje sob sofisticadas formas tecnológicas. É o que se nota
já entre as camadas mais jovens muito qualificadas pela formação escolar.
Nesta perspectiva, os efeitos paralisantes das acções
terroristas tenderão a desaparecer ou ser superados pelos comportamentos das
pessoas normais, num ambiente social de razoável convivência inter-identitária
(étnica, religiosa, cultural, partidária ou linguística, porque geralmente
pensamos com a língua). Veja-se o exemplo da actual cidade de Lisboa: metrópole
cosmopolita, multicultural e poliglota, onde se cruzam portugueses, europeus,
africanos, asiáticos e norte ou latinoamericanos, sem problemas de maior, à
parte o incómodo das suas bagagens de mão, o excesso de actividades comerciais
pró-turista e o número de garrafas de cerveja vazias nas mesas das esplanadas,
a discutível renovação habitacional dos centros históricos ou as deficiências
infraestruturais dos nossos transportes públicos. O mesmo se diria do Porto, a
“capital do norte”. Tudo isto é frágil e facilmente reversível, mas não deve
ser negado antes que aconteça.
Guerra convencional de baixa intensidade é também a
que se vive no Iémen, onde forças Houtis do norte, de tendência xiita, dominam
boa parte do território mas são combatidas pelo governo sunita de Áden que
beneficia do apoio, agora com reforço aéreo, de uma coligação internacional da
mesma tendência religiosa liderada pela Arábia, com pequeno envolvimento dos americanos.
A ver se, com o incentivo de Trump, este campo de batalhas não se transforma
numa guerra mais permanente, intensa e definida, como aquela que teima em não
acabar no Afeganistão entre os intratáveis taliban
(sunitas radicais) e a instável aliança tribal que sustenta o governo de Cabul,
a quem a NATO tem dado o principal músculo militar desde há década e meia,
apesar disso insuficiente para vencer a guerra.
Os casos de violência política no Paquistão, Indonésia
e Filipinas, no arco islâmico do sul do continente asiático; e na Líbia, Mali,
Nigéria, Sudão, Somália e outros territórios a sul do Sael, representam a mais
bem tipificada actividade guerrilheira levada a cabo por grupos islâmicos
radicais (Boko Haram, etc.) em conexão por vezes íntima com meros traficantes
de pessoas e mercadorias com as quais realizam lucros pecuniários, sem porém
hesitarem no recurso às armas, nas ameaças sobre reféns e outras formas de
pressão violenta. Já mais para sul, na África central, os intermitentes
conflitos que ali ocorrem derivam as mais das vezes de espoliações e vinganças
por gente às ordens de ditadores estatais ou então de animosidades étnicas ou
tribais, sob fundo de uma miséria e subdesenvolvimento de populações rurais ou
amontoadas em gigantescas periferias suburbanas.
Numa posição lateral em relação aos cenários de guerra
e de terrorismo ou luta subversiva, a contestação juvenil e popular contra o
governo da Venezuela evoca o que se passou há poucos anos com as “Primaveras
árabes”: embora com os traços típicos das ditaduras sul-americanas
(profundamente corruptas mas nem por isso menos sanguinárias, com “jagunços” e
esquadrões-da-morte, chefes “de opereta”, etc.), o seu deslizamento para
cenários mais graves não está afastado, até porque existe um antigo conflito
fronteiriço com a Colômbia e os exércitos de guerrilheiros têm tradição na
região. E, embora sem as características da violência estatal, a corrupção da
classe política e os protestos da baixa classe média urbana colocam o Brasil na
calha para evoluções pouco recomendáveis.
Por último, falando sempre de ameaças violentas que
impendem sobre as cabeças das pessoas, não podemos esquecer a situação no
Extremo-Oriente criada em torno do regime político agressivo e anacrónico da
Coreia do Norte. Decerto construída com “fugas” da China ou da União Soviética,
a capacidade nuclear de Pyongyang já não pode ser ignorada, apesar dos efeitos
de propaganda procurados. Os seus esforços parecem concentrar-se agora no
veículo técnico capaz de levar a ameaça a terras mais distantes, do outro lado
do oceano. Mas, desde já, são os vizinhos coreanos do sul e o Japão os mais
directamente ameaçados, desempenhando a China o principal papel de contenção
para dramáticas derrapagens na região. Se do lado dos dirigentes comunistas
coreanos se conhecem os limites essenciais da sua irracionalidade, o mesmo não
acontece agora com o líder eleito do gigante americano, que parece disposto a ensaiar
lances de “cheque-ao-rei” face ao seu pequeno desafiador, sempre com a pesada China
por perto. Trata-se de novos, inúteis e perigosos “jogos de guerra”.
Todas estas coisas mostram o contraste entre o
progresso científico, técnico, económico e cultural que tínhamos alcançado
neste início do século XXI e a persistência de formas de guerra e violência que
oscilam entre o bárbaro e pós-moderno. Isto parece recomendar-nos uma próxima
revisitação do que foi a Europa pré-moderna que nos antecedeu.
JF / 10.Jun.2017
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