Sic
transit gloria mundi! Assim se consolavam os antigos
perante a inevitável precariedade das glorificações humanas!... Hoje, o “transit” (ocidental-mundial) acelerou a
sua rotação e alargou a base de recrutamento, para o melhor e para o pior.
Como indivíduos “modernos”, só podemos fazer um
balanço finalmente positivo dos duzentos anos ultimamente percorridos pela Humanidade:
abolimos a escravatura e a servidão; implantámos quase por toda a parte
Estados-de-direito formalmente democráticos, em que a população elege os seus
governantes; criámos regras jurídicas e mecanismos judiciais para controlar os
comportamentos anti-sociais; a economia cresceu enormemente, tal como foram
notáveis os progressos da ciência e das aplicações tecnológicas, da saúde
pública e da educação popular; começamos a saber explorar o espaço sideral; desenvolvemos
uma “classe média” relativamente culta e abonada, donde se recrutam as novas
elites dirigentes; os “princípios revolucionários” de há dois séculos (a
liberdade e a igualdade) encontraram formas de concretização parcial mas
palpáveis; desencravou-se o operariado do ghetto
social em que tinha caído e activou-se finalmente o processo da emancipação da
mulher; e existem canais de comunicação fáceis entre os líderes nacionais para
tentarem entendimentos que salvaguardem os interesses que representam.
Mas, no outro prato da balança, o passivo é também
pesado: aumentou provavelmente a distância entre nações no que toca à
distribuição da riqueza gerada (ou apropriada), o mesmo acontecendo entre as
elites sociais e a multidão dos “deserdados”; as rivalidades “nacionais” e “de
blocos”, ou ideológicas, levaram a numerosos confrontos armados, incluindo duas
guerras mundiais devastadoras; e a industrialização e a exploração intensiva
dos recursos naturais produziram danos fortíssimos sobre o meio ambiente.
Outros processos contêm tensões internas e efeitos
mais contraditórios. Por exemplo: a colonização
ocidental de parte dos povos da Ásia e de quase toda a África destruiu pela
força as socioculturas e as economias locais impondo o seu domínio por largo
tempo mas, simultaneamente, abriu-lhes caminhos para uma modernização social
que de outro modo dificilmente alcançariam. Também: a economia de mercado capitalista (actualmente globalizada) produziu
muitos estragos, mas criou e distribuiu riqueza por muito mais gente, sem
qualquer comparação possível com os séculos anteriores. Igualmente: a actual
“sociedade da comunicação” abriu estrondosamente as portas da informação e do conhecimento às pessoas e às mais largas massas populares, mas
estarão estas culturalmente preparadas para esse salto-em-frente? (ou cairão
como patinhos em todas as armadilhas que os mais “espertalhões” lhes
proponham?) Ou ainda: a individualização
e a secularização ocorridas nas
sociedades modernas (com a laicização do Estado) constituíram um progresso
civilizacional inestimável mas, levadas ao extremo (como parece estar a
suceder), trazem consigo um confronto de egoísmos e, no fim, para os mais
frágeis, o desespero do “Homem só” (de que se estão aproveitando os fanáticos
religiosos de algumas confissões).
Há questões em que a tolerância, o excesso de
liberdade ou a indiferença acabam por agravar dificuldades de convivência ou
integração social. Num plano menor (mas ainda assim significativo), temos entre
nós as praxes académicas, sobretudo na humilhação que praticam sobre os
caloiros e que, de ano para ano, não dão mostras de abrandar na reprodução
clássica do processo praxado->praxista (=oprimido->opressor, em
miniatura) apesar do escândalo de alguns casos mediatizados. Os professores
(nós, em geral) olham para o lado, os reitores sentem-se incomodados mas
impotentes, todos têm receio de “afrontar os jovens” e a cretinice juvenil
vai-se reproduzindo, se não em escala, pelo menos em profundidade aumentada.
Proibir legalmente também não adianta, pois facilitaria o conhecido
encadeamento psicológico da provocação-repressão-vitimização-mobilização
alargada. Uma resposta eficaz terá de vir do próprio seio da comunidade
juvenil, mesmo porventura através de
processos conflituais que venham a desencadear-se entre “tradicionalistas”
(da capa preta) e “paisanos” (a “malta” mais liberta de preconceitos). Mas é
importante que a academia e os mais altos responsáveis dêem também sinais
encorajadores, como felizmente aconteceu no início do corrente ano lectivo com
o ministro Manuel Heitor ou com a tomada de posição opinativa do professor
Elísio Estanque, de Coimbra.
Mais sério é o caso dos sem-abrigo e da mendicidade,
que também podem entrar neste quadro. Bem sabemos como o Estado-repressor do
tempo dos nossos avós deportava para as Áfricas os vadios, misturados com
outros indesejados. E, há meio-século, como as pobres peixeiras sem licença
fugiam a bom fugir dos polícias de turno. Mas tolerar a permanência de
miseráveis, andrajosos e drogados (decerto, alguns doentes) a dormir pelas
entradas dos prédios (alguns com cães, numa patética comunhão de desgraças),
quando existem (ou seria fácil criar) dormitórios, balneários e refeitórios
onde essa gente poderia ser regularmente assistida, não é levar longe demais a
liberdade de circular ou permanecer, sem cuidar do ambiente de bem-estar
colectivo a que os cidadãos deviam ter direito, ou até da saúde pública? O
prestimoso serviço social de apoio que lhes prestam nas ruas diversas
associações de solidariedade não tende também ao prolongamento destas
situações, alijando por outro lado o Estado das suas responsabilidades? Na
verdade, a hipocrisia dos responsáveis políticos revela-se neste pormenor: na
zona que frequento em Lisboa, os sem-abrigo desapareceram das ruas durante a
semana do Web Summit (e as composições
do Metro foram duplicadas) mas, passado o “evento”, tudo voltou à primitiva
forma. Valem mais os turistas estrangeiros do que os cidadãos?
Algo de parecido se poderia dizer da autêntica promoção pública que hoje é feita dos
“comportamentos LGTB”, ao abrigo da lei e tentando sempre levá-la mais longe,
sem cuidar da sensibilidade da maioria. Passou-se da terrível repressão (legal
e social) que sobre os homossexuais se abatia para um pólo oposto, em que
qualquer observação crítica para certos comportamentos ou normas a este
respeito é logo tomada por “homofobia”, tal como o gosto da tauromaquia é
tomado como manifestação de ultramontanismo cavernícola e a rejeição de certas
práticas e concepções do islamismo tende a ser apostrofada de “islamofobia”.
Neste último caso, parece-nos que deveriam ser
feitas várias distinções: a aceitação como residentes (de todos, mas em
especial de pessoas de culturas muito diferentes, como a corânica ou a hindu,
etc.), ter como contrapartida a verificação de certas condições, entre as quais
um razoável domínio da língua e das leis e normas aqui vigentes; a prática
daquelas religiões ser livre, mas não subsidiada; a escolarização das crianças
ser obrigatória, como para as demais; a poligamia não ser legalmente
reconhecida (eventualmente subsistindo no âmbito de outras uniões de facto);
práticas de violência doméstica (como as excisões femininas) serem proibidas;
em contraposição, o uso de indumentárias tradicionais de certas culturas ou
religiões não deveria ser sancionado (para isso bastando a censura social que
possam suscitar), salvo para identificação por razões de segurança pública. Apesar
das evidentes dificuldades do dilema – simplificando: ignorar/tolerar ou
proibir legalmente as burcas ou burquinis nos nossos países ocidentais – tendo
a afastar-me das posições manifestadas pelo politólogo André Freire sobre estas
matérias (nas edições do jornal Público
de 6 e 28.Set.2016), e sobretudo no que toca à sua argumentação relativa a um
confronto entre liberdade religiosa e igualdade de género, que endossa um
“politicamente correcto” no qual não me reconheço. Neste ponto, vale a pena
relembrar o que escreveu Franz Fanon nos anos 50 sobre o papel simbólico do
retorno a estes comportamentos sociais arcaicos, em contexto de grande
conflitualidade política/civilizacional.
Mas a questão da educação familiar é mais lata e
complexa. Todos os espíritos livres e emancipados saudaram o fim legal da
indissolubilidade do casamento imposta pela religião católica, que soou o toque
de finados à manutenção de muitos lares infelizes e ao regime burguês do
“amantizato”. Muito bem: o casal deve manter-se apenas enquanto a mulher e o
homem nele livremente acreditarem! É certo que o direito civil procurou
acautelar os interesses dos filhos menores e a responsabilidade parental pelo
seu sustento e educação. Mas todos sabemos dos dramas que frequentemente se
geram nestas situações de desavença, quase sempre em prejuízo dos filhos, e
também das mulheres. Isto, para afirmar que não bastam regras de direito para
criar e manter um ambiente societal que seja entendido como justo para todos –
os casados e os descasados, os solteiros e os recasados – e sobretudo que seja
formativo e equilibrante para os filhos pequenos dessas ligações. Ora, é essa
“moral social” – premiadora dos exemplos bem-sucedidos e censuradora dos casos
traumatizantes – que hoje está terrivelmente ausente na nossa sociedade
pós-moderna onde todos os meios parecem lícitos para se atingir um qualquer
“estrelato”, seja em Hollywood ou na Reboleira, no mundo do espectáculo ou nas
páginas de abertura dos media. As
rupturas estéticas ocorridas no século passado na pintura ou na música (ou
mesmo na literatura) corresponderam aos traumatismos que abalaram a Humanidade
nesses tempos, mas deixaram-nos heranças muitas vezes pindéricas: por exemplo,
é muito compreensível que na estética do vestuário predomine agora geralmente o
prático, mas o leque alargou-se e integra hoje o feio, o repelente e o
desleixado.
Entre nós, fazendo honra ao “politicamente correcto”
– de que constitui modelo insuperável a escrita culta e de qualidade da
jornalista itinerante Alexandra Lucas Coelho –, as touradas vão rareando dos
programas da TV, já aparece na televisão do Estado um repórter brasileiro com o
melhor sotaque de Copacabana fazendo aqui
o “serviço de rua” (e objectivamente trabalhando contra a língua portuguesa falada em Portugal) e só talvez os
programas na rádio de David Ferreira nos recordem o extraordinário talento do
saudoso Zé Pracana e se lembrem do dedilhar de António Portugal e da genuína
voz nacional do Adriano cantando Trova do
vento que passa, o imortal poema de Alegre (que escreveu outras coisas
magníficas, mas apenas fez carreira de político de regime). Se, ao menos, este
se dispusesse ainda a encabeçar, com outros nomes de ressonância pública, um
movimento de opinião contra a avassaladora e estupidificante moda dos
comentários futebolísticos nos canais televisivos “de informação”!... (Mas para
responder às acusações de “só vermos o copo meio-vazio” que, com razão, nos
podem ser dirigidas, saudamos aqui as medidas de política florestal anunciadas
no Outono pelo governo em funções, que nos parecem ir no bom sentido e não
visarem só a próxima temporada. A ver como se concretizam tais intenções…)
Também o desporto está tornando quase iguais e mais
lisos os corpos das mulheres, sendo já poucas as que denotam seios salientes em
modalidades de alta competição. A alimentação, o exercício físico, o adiamento
da maternidade e aleitamento, e os estereótipos visuais devem estar
contribuindo para tal.
Mas como na sociedade-do-efémero quase tudo se
sujeita às leis da moda, é reconfortante manter a esperança de que também
amanhã irá passar a actual moda corporal e vestimentária “do diferente e do
bizarro”. Os industriais e vendedores hão-de inventar novos produtos de sucesso
para continuar a alimentar as suas “máquinas de lucros” e a economia em geral. Talvez
que então as mulheres desgostem das botifarras-à-tropa, dos pés mal cheirosos
enfiados em chanatos com as unhas grosseiramente pintalgadas! Que os rapazes se
libertem dos cortes de cabelo “à tijela” e da transpiração das sovaqueiras
pouco lavadas, como se estivessem sempre a praticar desporto! E que proliferem
os estaminés especializados em limpar tatuagens, antes que um Big Brother tenha montado um registo
mundial dessas marcas identitárias pessoais!
Mas chega, por agora, de lamentações e maus presságios!
JF / 10.Mar.2017
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