Volvamos à política, de novo.
O ex-primeiro-ministro Sócrates Pinto de Sousa tem
estado a fazer umas surtidas na vida política activa (no que causa embaraço ao
partido e ao governo de António Costa), sem perceber que, independentemente do
resultado final do processo judicial, ele não tem qualquer hipótese de
desempenhar de novo um papel político no país, em boa parte porque uma fracção
substancial da opinião pública já o condenou devido a todos os episódios
rocambolescos da “operação Marquês”-GES-PT, etc. (e em que as histórias da
Beira Interior, a licenciatura na Independente e o “caso Freeport” haviam sido
já prelúdios). É claro que ele sabe isso perfeitamente mas insiste neste
esforço de ressurgimento para: no mínimo, pôr de manifesto o que nesta
“condenação sumária” exista de ilegal; no máximo, dar vazão aos sentimentos de
vingança que o animarão contra todos aqueles que, antes e agora, se não puseram
claramente a seu lado: a imprensa, os adversários políticos, os camaradas que
promoveu ou ajudou, o próprio partido (hoje, na sua maioria, suponho), bref – quase o país todo.
De facto, Sócrates tem razão no plano estritamente
formal de um funcionamento democrático exemplar, que só existe nos discursos
dos ideólogos. Aí, ele consegue marcar pontos junto de figuras importantes do
PS ou mesmo do regime constitucional saído da revolução de Abril, que engolem
com dificuldade que um cidadão possa estar preso durante longos meses,
investigado (com as permanente fugas de informação para a imprensa) durante
mais de três anos pelo Ministério Público, sem que qualquer acusação seja
formulada contra si. Porém, é provável que essas personalidades dormissem de
consciência tranquila se os mesmos factos fossem vivenciados por um cidadão
anónimo e sem recursos perante a razão burocrática do Estado.
É verdade que a imprensa (e em particular certos “tabloides”) tem feito uma campanha desatada
de condenação na praça pública do ex-primeiro-ministro, que se queixa mesmo de
“assassínio moral”; que o Correio da
Manhã revela periodicamente dados da sua investigação que deveriam estar em
segredo-de-justiça, nunca se conhecendo a existência de castigos sobre os
autores de tais “indiscrições”. Mas também é certo que têm sido os mesmos
“jornalistas de investigação” a denunciar e a levantar pistas que os
procuradores exploram depois sobre determinadas personalidades dúbias ou factos
suspeitos, nomeadamente de natureza financeira. Sozinha, a Justiça nunca iria
tão longe.
Num quadro de liberdade de imprensa, multiplicada
pelos meios de comunicação de massas e pelas “redes sociais”, é inevitável que
estes atropelos aos formalismos democráticos aconteçam e haja riscos de
injustiça nestes “sumaríssimos processos” de julgamento popular. Porém, é
preciso ter em conta que só são deles potenciais vítimas o restrito número de
pessoas que integram a elite dirigente nacional. Disso estão isentos todos os
cidadãos comuns – e esta é a sua principal grande vantagem. Para o estatuto de
poder a que aqueles ascendem (de decisão política, económica, de influenciação,
etc.), o risco é talvez proporcionado. Tal como será equilibrado o trade off entre a exposição e exploração
de certas intimidades a que estão sujeitos os dirigentes políticos e as
vantagens pessoais que retiram essa notoriedade, durante e depois do exercício dos seus mandatos (e mesmo sem incluir aqui
os casos de corrupção). Não têm, pois, que se queixar nem justificar com isso
as altas remunerações a que se julgam com direito (embora estas possam ser
banais em comparação com as dos altos quadros das grandes empresas e
instituições financeiras ou dos intermediários dos grandes negócios).
É evidente que, tendo como objectivo este estatuto
privilegiado, não faltarão os candidatos que, a partir das “Jotas” ou das
autarquias, se disponibilizem para uma carreira política dentro das fileiras
partidárias. E que os melhores e mais qualificados elementos das novas gerações
desprezarão os cargos no Estado e na representação política se esses salários
forem inferiores aos que lhes oferecem no privado. Talvez que uma “justa
solução” para o caso dos deputados e ministros (e alguns outros cargos de
nomeação governamental) pudesse ser a de, dentro de certos limites (mínimo e,
sobretudo, máximo), serem pagos ao mesmo nível do que auferiam anteriormente.
Mas não ao nível do “trato” passado entre o governo e os administradores da
CGD: simplesmente porque o país continua “de tanga” e o que resta de moral
social não o consente.
A actual possibilidade de acumulação da função de
deputado à Assembleia da República com o exercício de actividades económicas
privadas (de juristas, administradores, etc.) surge como aberrante para quem
não se conformou já com outras formas de promiscuidade de interesses que se têm
manifestado na nossa sociedade. Por outro lado, estimular, por diversas
maneiras, carreiras políticas em exclusividade, decerto que eleva o nível de aptidões
técnicas específicas dos agentes desses processos, mas favorece as “vias
partidárias de realização profissional” e tende a constituir um grupo social
com interesses próprios, distanciado das populações que os políticos são supostos
servir e representar. Ao contrário dos sinceramente devotados ao bem público
que ainda felizmente subsistem – para quem as responsabilidades e os
sacrifícios superam de longe as benesses porventura usufruídas –, a satisfação
dos apetites pessoais de grande parte dos agentes políticos actuais deve ser
conseguida apenas pelo próprio facto de exercerem tais cargos, com a exibição
mediática e a capacidade decisória que lhes estão associados, além do
conhecimento prático e da notoriedade que adquirem e lhes serão úteis em outros
desempenhos futuros.
José Saramago imaginou literariamente um mundo de
cegos mas, mais provavelmente, iremos ter no futuro uma população de surdos,
tal o chinfrim que provocam as composições musicais dominantes e a maneira como
as pessoas as escutam nos seus auscultadores, enquanto não deixam de martelar
freneticamente as teclas de tablets e
smartphones, activando as “contas”
que possuem nas várias “redes sociais”. Reparei há tempos que, com estes novos
equipamentos portáteis que as pessoas “digitam”, até os polícias de vigilância
na rua se entretêm nesse passa-tempo: dantes, fixavam-nos o olhar, intimidando
o honesto cidadão (enquanto o meliante agia pela calada); agora, só quando o
acidente ou o incidente rebenta à sua volta é que ele largará a rede comunicativa
em que está embebido para soltar o grito de alerta ou agir repondo a “ordem
pública”.
De facto, estamos cada vez mais entrando numa
“sociedade comunicativa” onde a diferenciação entre “emissores” e “receptores”
perde relevância porque todas as pessoas são simultaneamente as duas coisas. O
complexo escritor que foi Ernst Jünger punha as personagens intemporais do seu
romance Eumeswil a comunicarem
privilegiadamente por via de um aparelho (o “fonóforo”) que não é hoje outra
coisa se não os nossos telemóveis, tablets
e smartphones. Antecipou assim a
época em que a intermediação técnica chegaria até ao plano das nossas trocas
orais inter-individuais!
A propósito da expressão redes sociais, diga-se que ela surgiu há mais de vinte anos na
teorização de alguns sociólogos, conscientes de que os consagrados conceitos de
estratificação e de classes sociais – este de inspiração
socialista e marxista mas ambos muito ligados à estrutura do sistema económico
– davam cada vez menos conta dos processos de interacção social vigentes nas
sociedades mais desenvolvidas, ao mesmo tempo que permitiu esclarecer melhor a
natureza e os mecanismos actuantes em certos fenómenos pré-existentes, mesmo
nas sociedades tradicionais, tais como os relacionamentos familiares,
afinitários e de vizinhança, ou a organização das correntes migratórias.
As companhias de telecomunicações e informática
apropriaram-se posteriormente da designação “redes sociais” para denominar os
circuitos “em linha” que as novas micro-máquinas comunicativas permitiam graças
a uma cobertura territorial cada vez mais extensa de antenas (e mesmo de
satélites) e à existência e (sua) posse de poderosos servers e infinitas bases-de-dados. Estas “redes sociais”
tecnológicas (Facebook, Twiter, etc.) tornaram-se notáveis em
2008 quando muito ajudaram a ascensão de Barack Obama à Casa Branca e já haviam
contribuído para o despejo de Aznar em Madrid. A partir daí, quer nas disputas
políticas quer como movimentos de opinião, as “redes sociais” conquistaram um
lugar quase tão importante como a imprensa (escrita e falada ou televisionada)
como expressões legítimas e consistentes da soit-disant
opinião pública. Qualquer campanha eleitoral ou publicitária que se preze
não dispensa hoje o uso destes instrumentos. E as pessoas cada vez menos se
imaginam sem esses pequenos artefactos comunicativos ao seu alcance, a todo o
momento. Graças à tecnologia, comunica-se
hoje mais do que se reflecte ou, simplesmente, pensa. É também por isso que
o silêncio, condição indispensável para a leitura e para os referidos
exercícios (intrinsecamente individuais), é cada vez menos possível na
sociedade contemporânea, face aos ruídos de fundo existentes, ao constante
apelo musical estético-vibratório e ao ininterrupto fluxo comunicativo, seja
ele interpessoal, “viral” ou “de massas”.
Por exemplo, a entrada em funções de Trump –
triunfal e contestadíssima – tem desencadeado uma genuína reacção de movimentos
espontâneos de repulsa mas também criado oportunidades para certos lobbies alcançarem projecção inusitada
para as causas que defendem, algumas delas bem discutíveis. A este propósito –
vindo de quem vem –, é bom e altamente significativo assinalar o texto
publicado no Público de 7 de
Fevereiro último por Esther Mucznik intitulado “O homem da melena amarela”, tal
como muitas das posições ultimamente assumidas por Clara Ferreira Alves (apesar
do toque petulante que lhe é próprio). E vale a pena referir o filme de Ada Ushpiz Vida
Activa: O Espírito de Hannah Arendt, que nos mostra imagens conhecidas (ou
menos) mas, sobretudo, que poderão ser abundante matéria de reflexão, ética e política,
para quem goste e o possa fazer (pena é que as frases sejam tão fugidias,
necessitando-se da sua suspensão sempre que a película seja usado para fins
pedagógicos). Eis o tipo de filme que um Rui Simões poderia perfeitamente
realizar, por exemplo sobre o itinerário de Jorge de Sena, se lhe dessem meios
para isso.
Os jornais têm mudado imenso. Há um século, num país
de iletrados como era então Portugal, publicavam-se dezenas de jornais diários
e ainda mais semanais. Há meio-século, vários deles mantinham páginas
literárias e espaço reservado para a publicação de artigos de história onde
colaboravam alguns dos nossos melhores especialistas. Hoje, temos de “gramar” a
esperteza-saloia de um rústico, Jorge Coelho, como comentador, ou as
coscuvilhices de um Marques Mendes amplificadas à escala nacional. Os jornais limitam-se
a reproduzir as pequenas informações já noticiadas na TV, rádio e on line, a algumas reportagens em que os
jornalistas procuram sobretudo evidenciar as suas capacidades criativas e a
espaços de comentário (ou propaganda?) reservados a uma elite de colaboradores
(sempre os mesmos), de quem já conhecemos as manhas discursivas, os apetites e
as preferências. Já não haverá espaço para jornais in, formativos? E, a propósito, porque anda o Público ultimamente tão pobre de bons artigos de opinião ou
comentário, a despeito de algumas corajosas tomadas de posição de jornalistas
como David Diniz ou Manuel Carvalho e tirando as estimulamtes crónicas de João
Miguel Tavares? É louvável que queira renovar o stock dos seus colaboradores e manter a pluralidade informativa,
mas parece-me que está com dificuldade em acertar num novo elenco sem passar
pelos inefáveis Louçã ou Bagão Félix (tal como a televisão o está, com as jovens
estrelas Adolfo Mesquita Nunes ou o super-convencido Ricardo Pais Mamede).
Mas talvez esta seja uma visão ultrapassada, de quem
está de saída (embora não aprecie que “nos empurrem”). Se assim for, como dizia
o humorista, façam o favor de ser felizes!
JF / 21.Mar.2017
(PS. Recebi
há pouco a triste notícia do felecimento do Manuel da Silva Pracana Martins, no
último dia 10. Foi um dos meus principais amigos da adolescência mas não nos
víamos talvez desde os 18 anos. Por iniciativa do seu também saudoso irmão Zé
(que nos deixou mais sós pelo Natal), tivemos um Setembro último uma longa e
interessantíssima conversa telefónica e, secretamente, planeava agora visitá-lo
em S. Miguel, onde nasceu e vivia. Espero que as últimas horas de ambos tenham
sido sem dor, tranquilas e em paz.)
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