Já vai mais de
um ano com a solução governativa arranjada na sequência das eleições de Outubro
de 2015 e o país parece ter-se habituado a uma tal situação, aceitando com
normalidade este governo PS com selectivo apoio parlamentar dos partidos à sua
esquerda. Além do júbilo pela vitória no campeonato europeu e as proezas do
futebolista Ronaldo – o português mais conhecido em todo o mundo! –, o país
“descrispou-se” (como se diz) e é certo que os sinais de descontentamento
público desceram visivelmente (ao menos na comunicação social), as greves e
manifestações de protesto são raras e a vida social segue com relativa
normalidade.
Todos
concordarão que o grande artífice desta mudança foi o dr. António Costa, o já
bem conhecido esperto negociador, agora também demagogo por obrigação.
Provavelmente já teriam existido contactos discretos entre emissários do PS,
PCP e BE, mas foi devido à habilidade negocial de Costa e à abertura
manifestada pelas direcções partidárias encabeçadas por Catarina Martins e
Jerónimo de Sousa que a “geringonça” pôde pôr-se de pé e iniciar o seu caminho,
deixando incrédulo o Presidente Cavaco e furibunda a liderança da anterior
coligação governamental que nas urnas e no parlamento obtivera o maior número
de votos.
Parte da
opinião pública portuguesa exultou: com o afastamento da “direita troikista”;
com a travagem da privatização de algumas grandes empresas; com o fim da
propalada subserviência à Europa; com a monocórdica “reposição de rendimentos e
direitos”. Na realidade, se o ministro das finanças Centeno parece ter
conseguido controlar a despesa pública apesar destas liberalidades – sem dúvida
um sucesso –, jogaram fundamentalmente a favor deste resultado factores
externos que foram favoráveis ao país: a “invasão” turística (com os seus
conhecidos riscos e inconvenientes); os empréstimos de favor do BCE; ou o
prosseguimento do baixo preço do petróleo. As “apostas estratégicas” de basear
o crescimento da economia no alargamento do consumo interno (salários e
pensões, descida do IVA, etc.) e no investimento, pouco ou nada terão contado: escassíssimo
capital nacional, e chegada a-conta-gotas do “20-20” ou do “plano Juncker”. Em
contrapartida, a receita do Estado teve de inchar através de várias fórmulas
sub-reptícias, nos impostos indirectos, com perdões fiscais, além das
“cativações”, atraso no pagamento dos débitos e na reposição das pensões mais
elevadas, retendo para o final do ano de 2017 parte do subsídio de Natal, etc. Apesar
de tudo, além da redução do défice orçamental, as exportações conseguiram
manter um ritmo aceitável e o desemprego desceu um pouco, sabe-se lá por que
artes perante o fraco crescimento económico registado. Mas os juros dos
empréstimos externos aumentaram (sinal de percepção de desconfiança) e os
níveis da dívida em Portugal – do Estado, das empresas e dos particulares –
continuam elevadíssimos e só algum tipo de reacerto global das contas (talvez
mundial, mas necessariamente europeu, por causa da moeda única) poderia alterar
para melhor as condições de desenvolvimento da economia. Certas intervenções do
Banco de Portugal também têm sido muito discutidas, por tardias,
contraproducentes, coniventes, etc., sem se perceber bem onde está a razão ou
mesmo se há culpas e culpados em tais matérias, que poucos dominam mas sobre as
quais todos falam. Neste quadro, a troca de palavras acusatórias entre “austeritários”
e “soberanistas” (ou, mais baixamente, entre “nordistas trabalhadores” e
“meridionais mandriões”) não passsa de reles palavreado polítiqueiro.
É certo que
houve casos inesperados que rebentaram nas mãos deste governo, como os enormes
fogos florestais e na ilha da Madeira. Mas, no plano económico, talvez não
fossem assim tão imprevistos: vejam-se os casos da falência do BANIF, da
inacreditável saga da CGD e do “invendável” Novo Banco – tudo na área
financeira (e veremos o que acontecerá ainda com o Montepio Geral…), que em
2012 se dizia ser um dos “pilares sólidos” da economia portuguesa, ao contrário
da Grécia ou de Chipre. Por tal razão o governo de Passos Coelho se dispensara
de aceitar metade dos 13 mil milhões de Euros qua a “Troika” havia destinado
para esse fim (julgando assim poupar o respectivo reembolso e seus juros).
Afinal, percebemos agora que, com a intervenção pessoal activa (e interessada)
de políticos, financeiros e gestores de primeiro plano, tudo estava ligado e a
ninguém convinha começar a destapar a manta que cobria os vários imbróglios:
investimentos fantasiosos em (e de) Angola e Brasil; recusa de Ricardo Salgado
perante a recapitalização oferecida; adiamento sucessivo de decisões para que
“os seguintes se desembrulhem”; possível laxismo (ou incompetência legal) dos
órgãos de supervisão; grossas comissões e pagamentos de serviços encomendados a
afamados gabinetes jurídicos e de consultoria financeira; uso e abuso (ao
máximo) das mobilidades de capitais hoje consentidas internacionalmente; e, last but not least (se os tribunais
forem capazes de o provar), práticas de corrupção e outros crimes financeiros
envolvendo um bom lote de importantes dirigentes estatais e empresariais.
No plano
político, o que mais surpreendeu e constituiu absoluta novidade no actual
regime democrático foi o apoio dado pelo PCP e pelo Bloco de Esquerda ao
governo de António Costa, que já conseguiu fazer aprovar dois orçamentos, pôr
em execução grande parte das medidas pontuais acordadas separadamente com cada
um deles (mais o PEV e a posição geralmente concordante do PAN), superar
pequenas crises (de pessoas, métodos ou normas legais não consensuais) e se
prepara agora para tentar ultrapassar sem maiores danos a conjuntura eleitoral
autárquica e a discussão do orçamento para 2018. O Bloco de Esquerda
(entretanto liberto de um sector interno mais “canhoto”) e sem concorrência
organizada na sua áera de recrutamento (dado o insucesso do partido Livre e de outros
“tacticamente trotskistas”) tem sabido negociar eficazmente o seu principal
trunfo face ao PS (sobretudo a ala esquerda deste): o peso do seu voto urbano,
jovem e adepto das “questões fracturantes”.
Diferentemente,
o PCP, com a experiência quase-centenária que é a sua e já algo rejuvenescido
nos seus quadros militantes, impõe-se a Costa sobretudo através das ameaças brandidas
pela ainda poderosa organização sindical que é a CGTP, a implantação municipal
que tem em certas regiões e os muitos “infiltrados” que possui em todas as
instituições do sector público.
Esta
“extrema-esquerda” algo sui generis
encontra-se na invejável posição de poder reinvindicar como obra sua tudo o que
na vida nacional possa ter melhorado em relação à governação PSD-CDS – que,
além de certos disparates, fez apenas o que se tinha tornado inevitável fazer –
e deixar para o PS todas as “insuficiências”, tentações “de direita” ou medidas
de “prosseguimento da austeridade” que o governo adopte e não calhem bem às
conveniências dos seus respectivos correligionários. Além disto, como mantêm
intacta a sua iniciativa de propositura legislativa, podem usá-la tanto para se
afirmar junto dos seus públicos como para embaraçar os seus aliados actuais. Quanto
às “questões ideológicas” (que ainda hoje levantam dúvidas nos areópagos
internacionais), essas não estão esquecidas, mas apenas mantidas em lume
brando, à espera de oportunidade (com algumas diferenças de prioridade ou
importância entre estes dois partidos à esquerda do PS): a “reestruturação da
dívida”; a saída do Euro; a crítica
da União Europeia; ou o abandono ou dissolução da NATO.
Questões como
estas que a conjuntura internacional venha porventura a trazer à superfície
poderão selar o fim desta experiência governativa, tal como a aproximação das
eleições (gerais) em que o interesse próprio poderá tender a sobrepor-se à
sobrevivência pela união, se os custos desta sobrelevarem as suas vantagens.
Por agora, tudo está em aberto e as sondagens ainda não contam. Tanto pode o PS
pressentir poder chegar à maioria absoluta, como tentar manter o mesmo tipo de
coligação (com acordos pré ou pós-eleitorais) e com ou sem a entrada dos
minoritários nas responsabilidades directas das pastas ministeriais. Mudando,
porém, a liderança do PSD (por um muito mau resultado nas próximas
autárquicas), todo um novo cenário se pode recompor – por exemplo, com governo
minoritário (PS ou PSD) mas a abstenção benevolente do “maior partido da
oposição”; e até, perante alguma crise excepcional (novo resgate externo ou em face
de ruptura europeia), sob a forma de alguma modalidade de “grande aliança”.
Em qualquer
caso, no decurso deste primeiro ano e no que pode vir a passar-se nos próximos,
agiganta-se sempre a novidade do papel altamente interventivo do novo PR, Marcelo
Rebelo de Sousa. Já se esperaria o seu estilo “popularucho e beijoqueiro”, na
continuidade dos longos anos de agente interventivo na comunicação social. Das
suas superiores capacidades pessoais (e sem “rabos-de-palha” excessivamente
incomodativos), logo se percebeu que a sua corrida solitária para Belém era a
condição probatória essencial da sua futura colocação “acima dos partidos”,
especialmente face ao PSD de que fora presidente. Mas a surpresa maior veio da
forma como, durante este primeiro ano (e com promessas de continuidade) o
Presidente apoiou o governo em funções (a aceitou com naturalidade o
entendimento partidário que o permite) e estabeleceu com o primeiro-ministro
uma colaboração institucional sem falhas, publicitou largamente esse
entendimento e, por vezes, complementou eficazmente o desempenho governativo
(interna e externamente), a despeito de pequenas intervenções rectificativas de
sua linha de actuação.
Perito na
matéria, o Presidente não beliscou qualquer regra constitucional sobre as
funções e competências dos órgãos de soberania mas trouxe uma dinâmica à vida
política do país inteiramente nova, que a maioria da população entendeu. O
regime não se tornou mais presidencialista com o seu desempenho, porque o seu
protagonista nem disso precisou para influir fortemente sobre a sua orientação
geral. Não governa – e, portanto, também não tem o ónus das decisões
desagradáveis –, mas sustenta e dirige “à distância” a governação nacional e o
relacionamento externo inter-estatal. Depois do exercício especial
(político-militar) de Eanes, do pragmatismo intuitivo de Soares, do relativo
rigorismo de Sampaio e (falhada a hipótese consistente de Jaime Gama) da
decepcionante presidência de Cavaco Silva (“certinho nas contas” mas sem
envergadura para as exigências do cargo), temos agora uma espécie de
“presidente-rei” (cognome dado a Sidónio Paes), mas obviamente feito à medida
deste início do século XXI. O seu sucessor é que não terá a vida facilitada...
Mas será mesmo necessário? (ou será este mais um dos nossos atavismos?)
Falando de
regências, é indispensável seguir com toda a atenção o processo que agora se
inicia com as negociações de saída do Reino Unido do seio da União Europeia. Há
muitas matérias em que a oposição de interesses é amplamente conhecida: o
contencioso contabilístico UK-UE, o papel da City financeira de Londres, os futuros regimes aduaneiros, a
liberdade de circulação das pessoas, etc. Os riscos de desagregação da UE são
grandes, tanto por previsíveis desacordos entre os vários países sobre os
termos do exit (incluindo entre
alguns dos estados mais determinantes) como por efeito de mudanças políticas
drásticas que possam ocorrer na sequência de próximos actos eleitorais
nacionais, já encarados com expressiva ansiedade e inquietação. Em todo o caso,
embora numa escala muito diferente, os riscos de desagregação do próprio Reino
Unido também não podem ser desprezados, pelo que isso representaria para as
ilhas britânicas e sobretudo pelo acréscimo de problemas que traria para toda a
Europa política.
Ora, para além
das suas indubitavelmente fortes tradições democráticas e parlamentares, convém
não esquecer que a rainha que habita Buckingham Palace é também raínha da
Escócia e a sua palavra pública não deixará de ter um peso considerável se uma
crise constitucional se instalar. Mas que discernimento poderá ter a este
propósito uma digna senhora de noventa e tantos anos que apenas foi treinada
para acenar da varanda, cerimónias protocolares e ler anualmente o “discurso da
coroa” escrito pelo primeiro-ministro em funções? E, se não for ela, que
preparação ou capacidade poderá ter para enfrentar tais circunstâncias o seu
substituto dinástico, seja ele qual for? (numa família em que os mais jovens
têm mostrado melhores aptidões para alimentar tablóides e revistas-cor-de-rosa do que propriamente para a
direcção política das suas nações?) Uma secessão da Escócia, mesmo legal e bem
organizada (“à inglesa”), não deixaria de fortalecer os sentimentos
autonomistas no principado de Gales e alimentar os sonhos dos católicos do
Ulster em se unirem a Dublin. Não haverá aqui guerras civis, mas as crises
políticas ou mesmo de regime nas “terras de Sua Majestade” não são hoje meras
congeminações lunáticas.
E se isto se
passar em simultâneo com uma eventual quase-dissolução da UE ou redefinição da
Europa das nações – a Catalunha? o caso da Ucrânia? – não serão apenas
problemas políticos e económico-financeiros que estarão em jogo mas
provavelmente também questões de
segurança e defesa, talvez face a uma Rússia rearmada, mas quase certamente
no flanco sul-e-sueste, perante ameaças vindas do islamismo político radical,
do terrorismo avulso, da gestão dos fluxos migrantes provenientes de África e
Médio-Oriente; e também porventura por força de conflitos civilizacionais internos
aos próprios países europeus, do exercício de poderes-de-Estado por partidos
nacionalistas-autoritários ou outros riscos hoje ainda mal definidos
(ambientais, sanitários, técnico-informáticos, etc.). Parece-me muito revelador
que um activista “meia-idade” como Rui Tavares se tenha espantado com a
quantidade de jovens acenando bandeiras federalistas europeias no último
domingo em Roma, aquando da celebração dos 60 anos da CEE. E conclui prevendo
que «nos próximos anos esta outra geração [que já não é a sua] chegará à
maioridade e desafiará a elite política não pela sua eurofobia mas pela sua
ousadia pró-europeia» (Público,
27.Mar.2017). O que revela a sua total descrença em relação aos actores
políticos actuais.
Para completar
este quadro desastroso, só faltaria que a América do Sr. Trump se metesse em
disparates que também quase certamente nos envolveriam, fossem eles de natureza
exclusivamente militar – mais mortíferos do que nunca, mas agora geralmente de
curta duração, para se passar à fase negocial e à reparação dos estragos – ou
de natureza comercial-financeira, que só nos poderiam deixar a todos mais
pobres, sem que os verdadeiramente pobres
melhorassem um pouco a sua situação.
JF /
31.Mar.2017
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