Uma em cada três ou quatro semanas, surgem novidades
capazes de nos surpreender ou obrigar a olhar para trás. Foi ainda há poucos
dias e todos estaremos recordados da “inacção voluntária” dos elementos da
Polícia Militar do estado do Espírito Santo, no Brasil, uma invulgar forma de
luta reivindicativa em que as mulheres dos polícias bloquearam as saídas dos
quartéis durante uma semana reclamando aumentos de 40% dos salários dos seus
maridos para compensar o agravamento do custo de vida. Felizmente, já não
estamos nos tempos em que a ordem pública chegava a ter de ser assegurada pelo
exército que, quando necessário, espingardeava manifestações populares de
protesto. Porém, devido a razões antigas e já de si significativas, as
principais forças de polícia brasileiras funcionam sob regime militar, onde a
greve é infracção criminal severamente punida, mas são pagas e dependem
operacionalmente dos governos estaduais, uns mais ricos do que outros, uns com
as contas equilibradas mas outros em quase-descalabro financeiro e com os
salários dos funcionários em atraso. Resultado prático: a ausência de
policiamento traduziu-se num aumento em flecha da criminalidade nas cidades de
Espírito Santo, com mais de cem mortos numa semana. O conflito lá se resolveu
por negociação informal mas o caso merece reflexão, se a ele juntarmos vários
outros, como as práticas, habituais em muitos países africanos, de os polícias
e outras autoridades menores do Estado usarem dessa qualidade (ou da arma que
trazem à cintura) para extorquir dinheiro de quem lhes está ao alcance, ainda
por cima à la tête du client.
No curto prazo, isto resultará do facto de grandes
massas de funcionários, trabalhadores, camponeses e lúmpen-proletariado urbano
terem acesso às imagens do mundo rico e poderem agora confrontá-las com a sua
estagnada pobreza. Mas os processos são de longo prazo e superior complexidade,
envolvendo as dinâmicas do desenvolvimento técnico-económico e social, a actual
“globalização”, bem como o sistema de relações internacionais gerado após a
segunda guerra mundial, a descolonização e a queda do “império soviético”.
O “equilíbrio do terror” atómico e o cálculo
racional dos líderes dos dois blocos evitou o colapso da humanidade e há
setenta anos que praticamente não se fazem guerras entre estados nacionais. Mas
os conflitos armados não diminuíram por isso, apenas tomaram outras formas:
guerras subversivas, civis, religiosas, sectárias, civilizacionais, terrorismo,
no ciber-espaço, etc. E, contra estas, o Conselho de Segurança da ONU tem tido
pouca eficácia.
Um segundo dado de enorme relevância é o facto –
também novo, no presente contexto de mundialização – de, nos territórios onde o
Estado se dissolveu (geralmente após a queda de regimes ditatoriais) se ter
entrado numa situação de descontrolo, de poderes-de-facto exercidos à força das
armas, com toda a sorte de arbitrariedades, exploração dos mais desmunidos,
tráficos ilegais, exílios forçados e bandos à solta de senhores-da-guerra: são
os chamados “Estados falhados” (como a Somália, o Sudão, o Iémen, a Líbia ou a
Síria). Aqui, nem as ajudas das instituições de socorro e solidariedade das
Nações Unidas têm sido suficientes.
Mesmo noutros contextos, são muitas as situações
relatadas em que a ausência de forças policiais instaura uma espécie de
perigosa “lei da selva” e bem mais raros os exemplos de comunidades capazes de,
nessas circunstâncias, assegurarem a sua auto-defesa de forma controlada, sem
deixar que tal vazio seja ocupado por um qualquer gang de fanáticos ou traficantes.
Por outro lado ainda, as pressões económicas
agigantaram a capacidade de as grandes potências e os impérios empresariais
multinacionais coagirem os países mais fracos, aumentando a distância entre o
nível de vida médio das suas populações. Isto, no exacto período em que a
mobilidade dos factores (mercadorias, pessoas e capitais) mais se acentuava, o
mesmo acontecendo com a informação e o conhecimento científico.
Quem são os responsáveis deste estado de coisas?
Para além da resposta óbvia e verdadeira mas largamente inconsequente – ou
seja, “o sistema” –, se é preciso apontar o dedo a alguém, esses terão de ser
os dirigentes políticos e os grandes empresários que tomam as decisões
essenciais e se atribuem rendimentos milionários, bem acima das médias dos seus
países.
Mas, ao contrário do que em tempos alguns pensaram,
não basta – e será mesmo geralmente perigoso – desbancar do poder essas elites,
sem que exista uma ideia-directriz
alternativa ao modelo vigente de organização do Estado-nação e de correcção
do funcionamento da economia mundializada que existe. E, com base nessa nova ideologia (que tem de ser plural,
embora assente em alguns pilares firmes), se constitua um movimento político (igualmente plural) capaz de prosseguir
duradouramente com estruturas organizativas e capacidade de acção para
finalmente lograr os seus propósitos
reformadores mais decisivos. Mas, desde já uma observação fundamental deve
ser feita: apesar da extrema diversidade sociocultural do nosso mundo presente
(que hoje está unificado pela economia e pela comunicação), é indispensável que
tal ideologia e movimento integrem totalmente todos os povos e nações do mundo,
e não sejam um novo produto feito à medida da intelligentsia dos países mais desenvolvidos. É também óbvio que
deverão aproveitar da herança democrática
o melhor que esta pôde oferecer à humanidade (liberdade, igualdade cidadã e
civil, renovação do mandato dos governantes eleitos, observância de regras
impessoais, decisão pela maioria com respeito pelas minorias, etc.), mas
rejeitem sem tibiezas ou compromissos os aspectos mais nefastos que a sua longa
prática proporcionou: partidos-gémeos irremediavelmente desavindos,
oligarquização partidária, eleitoralismo, populismo, caudilhismo, compadrio e
corrupção.
Há trinta ou quarenta anos atrás, nós próprios
partilhámos a convicção daqueles que achavam que, afastados os poderosos dos
seus lugares de mando, o bom-senso, a nociva experiência vivida e a
“sociabilidade natural” das gentes apoiariam maioritariamente uma nova
organização do poder político e de auto-controlo da liberdade económica,
sustentáveis e de qualidade humana bem superior ao antecedente. E que, na ordem
externa, o banimento do militarismo e um esforço significativo de desarmamento
– mesmo unilateral, capaz de desencorajar moralmente um potencial agressor –
pudessem ser suficientes para inaugurar uma era de relações internacionais
baseada na cooperação, em vez da competição agressiva ou da dominação. Os
efeitos perversos da auspiciosa estratégia de acção não-violenta de Gandhi –
com os conflitos intercomunitários, a partilha da “grande Índia”, a disputa do
Pundjab, o seu próprio assassinato, o apetite da China sobre o Tibete, a
escalada nuclear, o intratável Afeganistão, etc. – deviam logo ter-nos feito
compreender que não bastava o alto valor moral daquele tipo de luta.
O lema “si vis
pacem, para bellum” foi quase sempre usado para mascarar ânsias de poder
nacionalista ou imperial e para alimentar os lucros dos negociantes de
armamento, sejam empresas ou estados. Mas (embora possamos estar com uma visão
perturbada por acontecimentos que oxalá possam vir a ser superados por
negociações ponderadas e razoáveis) tudo nos leva a crer que a paz universal
continuará a ser uma bela miragem – pela qual é bom que alguns se batam, para
que não o esqueçamos – e que, entretanto, seja preciso que as armas existentes
estejam em mãos confiáveis e sirvam para controlar a violência e manter a paz,
civil e mundial, e não para o inverso.
Hoje, parece evidente que – devendo ser afirmados os
mesmos valores de liberdade e equidade social – actores políticos como os
islamitas radicais, os senhores Putin e Trump, o governo chinês e o
norte-coreano ou o neo-fascismo à espreita em alguns países europeus, embora
muito diferentes entre si, exigem respostas mais ousadas e eficazes que, porém,
nem a moderação liberal ou conservadora nem “as esquerdas” (em geral) estão em
condições de protagonizar – pela razão simples de que também são
co-responsáveis pela animação do sistema que nos governa. (Apesar de tudo, a
leitura de uma biografia de Churchill como a escrita por Sebastian Haffner
ajuda-nos a compreender melhor as subtilezas da relação que existe entre a
política convencional e os grandes fenómenos da vida mundial. Em contrapartida,
o Estaline de Sebag Montefiore só nos
pode deixar emporcalhados pela criminosa orgia de sangue, álcool, mentira e
loucura que ressaltam dos factos e pela técnica pessoalizada, humana até, da
sua narração.)
Aos pensadores do futuro e aos homens e mulheres
práticos das gerações actuais (libertos dos vícios da “política politiqueira”)
cumpre, portanto, a ingente tarefa de reinventar um destino plausível e mais
risonho que afugente as sérias ameaças que nos rodeiam.
JF / 24.Fev.2017
(Julgo que esta é a minha declaração política mais
importante dos últimos anos, certamente fruto de frustração e pessimismo.)
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