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terça-feira, 11 de abril de 2017

Algumas noções básicas a relembrar

Os animais têm um pequeno psiquismo. De alguns, com a massa encefálica mais desenvolvida, pode mesmo dizer-se que são inteligentes. Só não têm é capacidade reflexiva – no fundo, a enorme diferença que os separa dos humanos.

A sexualidade é uma das características fundamentais dos animais de constituição já complexa – como os mamíferos e outros – e, naturalmente, também do Homem. A atracção sexual existe para tornar aliciante (e por vezes mesmo irresistível) a procriação de novos seres da mesma espécie através da cópula entre macho e fêmea. Neste sentido, toda a exploração do prazer sexual fora destas condições (masturbação, homossexualidade, etc.) é objectivamente “não-natural”. Encontram-se múltiplos exemplos destes na natureza, mas como desvios aos padrões de comportamento estatisticamente (e funcionalmente) normais. São gestos animais incontrolados (que certos bichos também praticam); ou então acto de cultura (em sentido socio-antropológico), isto é, pura invenção humana. Este factor é muito (imensamente) atendível, mas não deve apagar tudo o resto.

A exploração lúdica da sensualidade é tão antiga como a nossa história. A sua valorização social é que tem variado imenso ao longo dos tempos. É que estas pulsões da natureza orientadas pela vontade entram em confronto ou combinação com outras características das sociabilidades dos colectivos humanos: por exemplo, é muito conhecido que a homossexualidade e a pedofilia foram aceites sem esforço entre as classes altas na antiga civilização grega; e que as orgias e bacanais eram um divertimento lícito entre os patrícios romanos (mas não sabemos tão bem o que se passaria entre os servos e os escravos). Até ao século XIX (em que viveram os avós de alguns de nós, de quem recordamos ainda o timbre do seu falar), admitia-se a existência dos eunucos nas cortes dos sultões otomanos ou dos imperadores chineses; e no século anterior as elites aristocráticas europeias deliciavam-se com a bela voz dos castrati, uma das mais maquiavélicas invenções do espírito humano.

Mas a sociocultura ocidental, marcada pelo judeo-cristianismo, veio progressivamente a esconjurar a libertinagem e a impor normas de conduta muito estritas de acordo com essas doutrinas religiosas. A família monogâmica ficou obrigatória e o catolicismo tentou reprimir toda a manifestação de sexualidade que excedesse o intuito procriativo. A vida moderna refreou estes intentos e a ciência, com Freud em primeiro lugar (mas também os antropólogos das sociedades primitivas e os historiadores), ajudou-nos a compreender um pouco melhor os tabus, os interditos, as liberalidades e os diferentes arranjos familiares que têm existido em tempos e locais distintos. Actualmente, nos países mais ricos e tolerantes (que dominam a comunicação e o comércio mundiais), desenvolvem-se fortes dinâmicas e mesmo políticas incentivadoras do direito-ao-prazer e da liberdade sexual, procurando contudo preservar a saúde pública e prevenir a procriação não-desejada. É uma tendência de época que pode vir a ser travada ou revertida, tal qual aconteceu já no passado. Mas por razões religiosas ou outras, o celibato, o ascetismo e a abdicação de quaisquer prazeres carnais também foram (e são) praticados por muitos (pense-se em budistas e na espiritualidade de certos santos), que são capazes de adoptar uma autodisciplina que provavelmente recusariam se lhes fosse imposta. Misticismo e sexualidade são áreas onde se espraiam os relativismos culturais. Tal como o são as normas sociais (impostas pelo direito costumeiro ou pelas leis de um Estado), que tanto podem considerar aceitável que a mulher esquimó largue o seu nascituro na banquisa porque a comunidade não consegue sustentar um incremento populacional, como condenar por homicídio quem, apiedado pelo sofrimento atroz de um ente querido, decide abreviar-lhe a vida. Temos (e devemos) lidar com a realidade que nos rodeia e impõe constrangimentos – ao mesmo tempo que nos permite usufruir de inúmeros bens e vantagens –, mas nada impede que a tentemos modificar e melhorar segundo o que a nossa racionalidade ou convicção nos recomenda.

Como em outras espécies animais, os humanos são fundamentalmente iguais, mas também diversos entre si, individualmente e colectivamente. A individualidade é sempre reconhecível (e “etiquetada” com o nome próprio que dão a cada um de nós), mas a sociedade envolvente e a época histórica permitem uma sua melhor ou pior afirmação e expressão pública. Quanto às diversidades colectivas, as mais evidentes são as de género, raciais – ou melhor, étnicas, desde que a palavra raça ficou interdita por mau uso de “racistas” e por pruridos “politicamente correctos” – e das diversas fases do desenvolvimento biológico da pessoa. Mas, em seguida, há muitas outras, que agora costumamos designar por identidades (colectivas): podem ser linguísticas, nacionais, regionalistas, tribais, profissionais, por via de integração em crenças religiosas ou partidos políticos, etc. Entre todas, a família (qualquer que seja a sua morfologia) é a que mais profunda e duradouramente integra as individualidades que a compõem. Daí talvez o facto de, além dos laços de afectividade e amor, aí se gerarem também, por vezes, agressividades e sentimentos de ódio de grande intensidade.

No capítulo da constituição familiar, muitas combinações e modalidades existiram e existem ainda. Nenhuma impediu a ocorrência, mais ou menos ocasional, de cenas e processos de violência interna sobre as pessoas mais frágeis. Mas, essencialmente, além de assegurar a criação dos filhos pequenos, todas procuraram regularizar e sustentar a relação amorosa, uma afectividade prolongada oferecendo segurança e previsibilidade, e disciplinando os meros instintos e apetites naturais. Do que os cientistas puderam já apurar, é possível que a chamada “família nuclear” seja aquela que melhores condições psicológicas e afectivas possa oferecer ao desenvolvimento das crianças. Em todo o caso, o princípio jurídico do “superior interesse da criança” representa, esse sim, um notabilíssimo progresso civilizacional, infelizmente ainda pouco efectivado nas práticas sociais, sejam tradicionais ou contemporâneas. 

Reconhecer na Vida humana (além de um fenómeno de intrigante origem e complexidade) um valor moral inestimável, é algo que várias religiões referiram, que todos devemos à Civilização e que as leis dos Homens reconheceram ao criminalizar o homicídio e prever excepções como o princípio da legítima defesa. Por isso se deve avançar com extrema cautela no tocante à codificação jurídica de “novos direitos” nesta área, como a inseminação artificial, a interrupção voluntária da gravidez (principal fardo que impende sobre a mulher) ou a despenalização da ajuda a morrer para alivar a dor insuportável e insanável de um ente querido, quando este quer e não o pode fazer: dir-se-á que “sim”, mas com grande precaução – e desconfiança quanto à intervenção dos actores políticos (indispensáveis, mas quase sempre com uma “agenda escondida”), do profissionalismo, do juridicismo e da burocracia.        

Reconhecer cada uma destas especificidades na vida em sociedade, exige estudo, ponderação e saber. Para o Homem moderno, este deveria ser um programa de vida, a par de outros. Mas para quem tem o poder de impor ou a obrigação de exemplificar (em contexto educativo ou em termos de comportamento pessoal), torna-se mesmo um imperativo.  


JF / 11.Abr.2017

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