Os animais têm um pequeno psiquismo. De alguns, com
a massa encefálica mais desenvolvida, pode mesmo dizer-se que são inteligentes.
Só não têm é capacidade reflexiva – no fundo, a enorme diferença que os separa
dos humanos.
A sexualidade é uma das características fundamentais
dos animais de constituição já complexa – como os mamíferos e outros – e,
naturalmente, também do Homem. A atracção sexual existe para tornar aliciante
(e por vezes mesmo irresistível) a procriação de novos seres da mesma espécie
através da cópula entre macho e fêmea. Neste sentido, toda a exploração do
prazer sexual fora destas condições (masturbação, homossexualidade, etc.) é
objectivamente “não-natural”. Encontram-se múltiplos exemplos destes na
natureza, mas como desvios aos padrões de comportamento estatisticamente (e
funcionalmente) normais. São gestos animais incontrolados (que certos bichos
também praticam); ou então acto de
cultura (em sentido socio-antropológico), isto é, pura invenção humana. Este
factor é muito (imensamente) atendível, mas não deve apagar tudo o resto.
A exploração lúdica da sensualidade é tão antiga
como a nossa história. A sua valorização social é que tem variado imenso ao
longo dos tempos. É que estas pulsões da
natureza orientadas pela vontade
entram em confronto ou combinação com outras características das sociabilidades
dos colectivos humanos: por exemplo, é muito conhecido que a homossexualidade e
a pedofilia foram aceites sem esforço entre as classes altas na antiga
civilização grega; e que as orgias e bacanais eram um divertimento lícito entre
os patrícios romanos (mas não sabemos tão bem o que se passaria entre os servos
e os escravos). Até ao século XIX (em que viveram os avós de alguns de nós, de
quem recordamos ainda o timbre do seu falar), admitia-se a existência dos
eunucos nas cortes dos sultões otomanos ou dos imperadores chineses; e no
século anterior as elites aristocráticas europeias deliciavam-se com a bela voz
dos castrati, uma das mais
maquiavélicas invenções do espírito humano.
Mas a sociocultura ocidental, marcada pelo
judeo-cristianismo, veio progressivamente a esconjurar a libertinagem e a impor
normas de conduta muito estritas de acordo com essas doutrinas religiosas. A
família monogâmica ficou obrigatória e o catolicismo tentou reprimir toda a
manifestação de sexualidade que excedesse o intuito procriativo. A vida moderna
refreou estes intentos e a ciência, com Freud em primeiro lugar (mas também os
antropólogos das sociedades primitivas e os historiadores), ajudou-nos a compreender
um pouco melhor os tabus, os interditos, as liberalidades e os diferentes
arranjos familiares que têm existido em tempos e locais distintos. Actualmente,
nos países mais ricos e tolerantes (que dominam a comunicação e o comércio
mundiais), desenvolvem-se fortes dinâmicas e mesmo políticas incentivadoras do
direito-ao-prazer e da liberdade sexual, procurando contudo preservar a saúde
pública e prevenir a procriação não-desejada. É uma tendência de época que pode
vir a ser travada ou revertida, tal qual aconteceu já no passado. Mas por
razões religiosas ou outras, o celibato, o ascetismo e a abdicação de quaisquer
prazeres carnais também foram (e são) praticados por muitos (pense-se em
budistas e na espiritualidade de certos santos), que são capazes de adoptar uma
autodisciplina que provavelmente recusariam se lhes fosse imposta. Misticismo e
sexualidade são áreas onde se espraiam os relativismos culturais. Tal como o
são as normas sociais (impostas pelo direito costumeiro ou pelas leis de um
Estado), que tanto podem considerar aceitável que a mulher esquimó largue o seu
nascituro na banquisa porque a comunidade não consegue sustentar um incremento
populacional, como condenar por homicídio quem, apiedado pelo sofrimento atroz
de um ente querido, decide abreviar-lhe a vida. Temos (e devemos) lidar com a
realidade que nos rodeia e impõe constrangimentos – ao mesmo tempo que nos
permite usufruir de inúmeros bens e vantagens –, mas nada impede que a tentemos
modificar e melhorar segundo o que a nossa racionalidade ou convicção nos
recomenda.
Como em outras espécies animais, os humanos são
fundamentalmente iguais, mas também diversos entre si, individualmente e
colectivamente. A individualidade é sempre reconhecível (e “etiquetada” com o
nome próprio que dão a cada um de nós), mas a sociedade envolvente e a época
histórica permitem uma sua melhor ou pior afirmação e expressão pública. Quanto
às diversidades colectivas, as mais evidentes são as de género, raciais – ou
melhor, étnicas, desde que a palavra raça ficou interdita por mau uso de
“racistas” e por pruridos “politicamente correctos” – e das diversas fases do
desenvolvimento biológico da pessoa. Mas, em seguida, há muitas outras, que
agora costumamos designar por identidades
(colectivas): podem ser linguísticas, nacionais, regionalistas, tribais,
profissionais, por via de integração em crenças religiosas ou partidos
políticos, etc. Entre todas, a família (qualquer que seja a sua morfologia) é a
que mais profunda e duradouramente integra as individualidades que a compõem.
Daí talvez o facto de, além dos laços de afectividade e amor, aí se gerarem
também, por vezes, agressividades e sentimentos de ódio de grande intensidade.
No capítulo da constituição familiar, muitas
combinações e modalidades existiram e existem ainda. Nenhuma impediu a
ocorrência, mais ou menos ocasional, de cenas e processos de violência interna
sobre as pessoas mais frágeis. Mas, essencialmente, além de assegurar a criação
dos filhos pequenos, todas procuraram regularizar e sustentar a relação
amorosa, uma afectividade prolongada oferecendo segurança e previsibilidade, e
disciplinando os meros instintos e apetites naturais. Do que os cientistas
puderam já apurar, é possível que a chamada “família nuclear” seja aquela que
melhores condições psicológicas e afectivas possa oferecer ao desenvolvimento
das crianças. Em todo o caso, o princípio jurídico do “superior interesse da
criança” representa, esse sim, um notabilíssimo progresso civilizacional,
infelizmente ainda pouco efectivado nas práticas sociais, sejam tradicionais ou
contemporâneas.
Reconhecer na Vida humana (além de um fenómeno de
intrigante origem e complexidade) um valor moral inestimável, é algo que várias
religiões referiram, que todos devemos à Civilização e que as leis dos Homens
reconheceram ao criminalizar o homicídio e prever excepções como o princípio da
legítima defesa. Por isso se deve avançar com extrema cautela no tocante à
codificação jurídica de “novos direitos” nesta área, como a inseminação
artificial, a interrupção voluntária da gravidez (principal fardo que impende
sobre a mulher) ou a despenalização da ajuda a morrer para alivar a dor
insuportável e insanável de um ente querido, quando este quer e não o pode
fazer: dir-se-á que “sim”, mas com grande precaução – e desconfiança quanto à
intervenção dos actores políticos (indispensáveis, mas quase sempre com uma
“agenda escondida”), do profissionalismo, do juridicismo e da burocracia.
Reconhecer cada uma destas especificidades na vida
em sociedade, exige estudo, ponderação e saber. Para o Homem moderno, este
deveria ser um programa de vida, a par de outros. Mas para quem tem o poder de
impor ou a obrigação de exemplificar (em contexto educativo ou em termos de
comportamento pessoal), torna-se mesmo um imperativo.
JF / 11.Abr.2017
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