Finou-se há sete
dias uma das figuras cimeiras da vida portuguesa da nossa época. Já tudo foi
dito e escrito sobre a personagem, quase sempre em termos elogiosos (sobretudo
pela voz pública), como é de norma e neste caso também de justiça, se
apaziguarmos as paixões.
Porém, alguns
viram nele o político que vendeu o ultramar aos nacionalistas dos diversos
territórios sem cuidar devidamente dos portugueses de raiz que lá viviam e dos
naturais que queriam continuar a sê-lo, nem tentar uma transição que
assegurasse a paz nos territórios e um mínimo de convivência democrática entre
aqueles que ali aspiravam ao poder (mas é certo que os soldados já não queriam
combater e os capitães-de-Abril estavam ideologicamente adquiridos à “justa
luta” dos independentistas). Outros não lhe perdoaram ter então virado as
costas à “união-das-esquerdas” em Portugal e, pelo contrário, ter encabeçado “a
reacção” contra as dinâmicas revolucionárias ou aventureiras da
extrema-esquerda.
De facto,
contrastando com a flacidez da sua fisionomia e a argumentação superficial e
inconsistente que era geralmente a sua, Mário Soares revelou-se então como o
“leão” que se bate sem temor e arrisca tudo para alcançar o que a sua certeira
intuição política lhe recomenda. Nessa altura, em que se jogava o destino do
país, era: -garantir um quadro de liberdade democrática compatível com o modelo
dominante no Ocidente; -travar os frescos entusiasmos da “esquerda militar” que
pensava como se estivesse em África; -impedir um “retorno do pêndulo” que
conduzisse a uma solução política restauracionista; -arriscar-se a ter como
“companheiro de barricada” muito do que havia de conservador na sociedade
portuguesa de então, que em seguida lhe haveria de pedir contas.
Nessa ocasião
foi, à nossa pequena escala, o “Churchill português”, que corajosamente se
empenhou e conseguiu ganhar uma batalha decisiva. O regime democrático deve-lhe
muito.
Estabilizado
esse, Soares foi o político habilidoso que todos reconheceram, usando das mais
variadas jogadas e estratagemas para aceder e ocupar o poder – como chefe do
governo e Presidente da República –, ou para contestar e minar um governo de
cor diferente da sua – como líder da oposição, também como Presidente da
República e ainda como aposentado da função, desmentindo a promessa que fizera
de, depois de Belém, não lhe fazer sentido voltar à política partidária. Nesta
vertente, Mário Soares foi apenas um chefe-de-partido, de grande longevidade e
notável capacidade de “influência”.
Recordar os
tempos em que o jovem Soares era um militante empenhado do partido comunista é
matéria que não tem hoje grande significado e deve ser deixada aos
historiadores, tal como as razões porque dele se afastou, aproximando-se de
gente mais próxima da família política de seu pai, republicanos de
sensibilidade socialista como, por exemplo, António Sérgio.
Em
contrapartida, não pode ser esquecido o seu prestígio e reputação
internacional, mesmo numa época que deixou de ser a sua. Para além das relações
pessoais que cultivava (Mitterrand, Felipe González, Helmutt Schmitt, Olof
Palm, Bettino Craxi, Ximon Peres e até Yasser Arafat o apreciaram), foi também
o país moderno pós-salazarista que, através dele, esteve presente nesses
areópagos europeus. Para o que certamente também contou (superando o péssimo
domínio de línguas estrangeiras) a sua simpatia e carisma pessoal, tanto como
um certo domínio da história e à-vontade nos temas culturais. E a Fundação com
o seu nome constitui hoje um património documental de valor inestimável.
Mas há ainda a
faceta mais obscura do chefe-de-clã. Só os próximos saberão dessas coisas. Mas
há suficientes relatos públicos para se perceber que a fidelidade pessoal
traída ou a denúncia de certos segredos determinaria nele e nos seus próximos
atitudes de rejeição e de “cordão sanitário” de que ninguém mais se poderia
livrar, salvo passando-se para um campo adverso.
Intuitivo, com
gosto pela escrita, sagaz, corajoso e com o sentido das oportunidades dos
políticos de gema, Mário Soares é um dos homens públicos incontornáveis do
século XX português. Há-de ser sempre recordado.
JF / 14.Jan.2017
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