Como a maior parte dos jovens da época e do meu meio
social, eu tive uma educação católica ma
non troppo. A minha mãe ia à missa (e mandou-me à catequese) mas o meu pai
apenas a acompanhava. O meu avô era maçon
e só entrou em igrejas para alguma cerimónia de casamento, mas despedia-nos com
um “Vai com Deus”. Só a minha irmã se tornou uma católica de verdade e coração,
fazendo do apostolado uma das dimensões fortes da sua vida. Eu segui a esteira
da minha época e, ao chegar à idade adulta, emancipei-me decididamente de
qualquer crença religiosa. O meu pensamento crítico-racional nunca sentiu
necessidade de questionar mais do que a realidade sensível, material ou social
que me rodeava, com o auxílio daquilo que fui aprendendo da acumulação do
conhecimento científico ao meu alcance. O que desconhecemos, desconhecemos, e
talvez outros venham mais tarde a ser capazes de o explicar um pouco melhor. Os
fenómenos sobre-naturais, os poderes extraordinários de certas pessoas, as
coincidências perturbantes, os “milagres”, não constituíam para mim algo de
essencialmente diferente do nosso ainda escasso conhecimento acerca do
funcionamento celular ou sobre os “buracos negros” do universo. Questões
metafísicas acerca da “alma” ou dos “espíritos”, nunca me perturbaram a
consciência. Eram interrogações especulativas cuja amplitude ia, pouco a pouco,
sendo reduzida devido ao labor de especialistas de conhecimento muito
aprofundado. Nos termos filosóficos elementares aprendidos no liceu, julgo
ter-me sentido sempre mais próximo do ateísmo do que propriamente do
agnosticismo. Não do ateísmo positivista apostado em “negar a existência de
Deus” – e talvez por isso nunca o tenha proclamado abertamente. Mas parecia-me
que a posição do agnóstico pressupunha sempre a possibilidade da existência de
Deus – só que fora do alcance do sujeito, e deixando-o portanto à merce de “um
chamamento”, que o levasse “a acreditar” – o que nunca foi o meu caso, nem
racional, nem emocionalmente considerado. A transcendência, se existe, está tão
longe de mim, como problema, como o bosão de Higgs ou o big bang.
Realmente, a religião só me interessou verdadeiramente
(e ainda assim em terceiro ou quarto plano de prioridades) enquanto fenómeno
social, susceptível de análise empírica e psicológica, e sobretudo pelos seus
efeitos históricos que, sob novas formas, todavia perduram na actualidade.
Verdade seja que conheço muito mal as grandes religiões orientais, apenas
superficialmente o hinduísmo, o budismo ou o confucionismo. Mas, com a
curiosidade do sociólogo e do cidadão, debrucei-me um pouco mais sobre a
história do judaísmo, do cristianismo, do islamismo e dos protestantismos.
Matéria interessante para aprender, não para praticar ou ser para mim motivo de
fascínio.
O que quero porém significar é que, apesar da
descoberta das “luzes da razão” que fiz ao desembarcar na idade adulta, não
tenho dúvidas em ser também um resultado da cultura judaico-cristã prevalecente
no ambiente social em que me desenvolvi. Para além da doçura materna e da
educação paterna, o meu carácter e personalidade foram decerto marcados pela
rudimentar educação católica que recebi na infância e na adolescência. O final
deste último período do meu desenvolvimento pessoal coincidiu com uma fase de
renovação da Igreja de Roma assinalada pelo concílio Vaticano II e por
mobilizações generosas como a de muitos “católicos progressistas” (num país como
Portugal, então muito fechado ao mundo) ou a de um Movimento para um Mundo
Melhor, entre outros. Foi passageira a minha estadia nesses meios, típicos dos
anos 60, porque outras mudanças sociais e pessoais estavam em curso, com muito
maior amplitude e profundidade reflexiva. Mas lembro-me que então se dizia que
aos católicos competia, no dia-a-dia, “dar testemunho da sua fé”. Esta postura
era substancialmente diferente do catolicismo do “medo do inferno”, do temor do
“pecado” ou do “Deus-pai todo poderoso” com que padres, catequistas e outros
mais velhos nos buzinavam aos ouvidos; e sem a disciplina mortificadora do
corpo a que nos obrigava a oração (eu, que sempre sofri de me ajoelhar… e por
isso não fui para a guerra sem antes ter comprado um daqueles pares de
joalheiras com que os guarda-redes de então protegiam essas articulações). Só
muito mais tarde compreendi, racionalmente, a importância e o alcance destes
gestos e rituais, mas agora num registo eminentemente sócio-antropológico.
Porém, num ponto, julgo que aproveitei deste curto
período da minha vida de católico reflectido. O tal “testemunho” quotidiano
seria um comportamento e uma atitude eventualmente observável por terceiros mas
tinha, no fundo, dois únicos agentes activos: Deus e eu próprio. Em tête-à-tête, sem lugar para
intermediários, árbitro, testemunhas ou espectadores, que são sempre figuras
que alteram as condições de um efectivo diálogo. Se Deus – aqui representado no
seu modelo ideal – era a máxima expressão do Bem, do Amor, do Bom e do Belo, se
era a Verdade e a Omnisciência levadas ao infinito, então resultava inútil e
mesmo grotesca qualquer tentativa de argumentação sofista, de desculpa ou
justificação para as nossas fraquezas ou tropelias. Imaginar-se estar só
perante Deus foi, afinal, o truque mental para um reencontro connosco mesmos
com o máximo de sinceridade que me seria possível (ou a qualquer ser humano,
supunha eu). Sobretudo quando tais congeminações foram desenvolvidas perante
uma iminência da morte – da nossa morte física –, bem pensada e bem vivida.
Admito completamente que haja múltiplas outras
formas de introspecção pessoal, e que algumas possam até envolver mais do que a
actividade mental, mobilizando o próprio corpo ou partes deles (como suspeito
que seja o caso de certas espiritualidades orientais), ou ainda as suas
interacções psico-biológicas com o ambiente circundante e a forma como cada
qual procede à sua digestão. Mas, circunscrevendo-me à minha experiência
pessoal e àquelas que julgo mais correntes nas culturais ocidentais, posso
admitir que a discussão mais séria e profunda que possamos ter connosco mesmos
– ou o “exame de consciência” que o capelão nos prescrevia – seja as mais das
vezes torpedeada por armadilhas auto-justificativas, inconsequentes jogos de
mutação identitária, círculos viciosos de raciocínio preguiçoso ou fixações
mais profundas ancoradas no nosso inconsciente. A diagnose tentada com um
especialista tem certamente alguns efeitos terapêuticos para situações de
pessoas mais perturbadas, já porventura a roçar a patologia. Mas aqui eu estava
referindo-me a indivíduos razoavelmente sãos de corpo e de mente.
Aqueles “cinco minutos com Deus” foram apenas uma
pequena fracção de tempo no desenrolar da fita da minha vida. Daí para diante
fiquei bem, sozinho e/ou acompanhado, completamente dentro do mundo e em parte
contra ele. Por isso, se posso recomendar alguma coisa a alguém, sobretudo se é
jovem e inquieto e ainda procura o seu caminho, é que não desperdice esses
“cinco minutos” para se conhecer melhor e reconciliar consigo mesmo. E, se não
for desta, que seja de outra maneira que se lhe torne mais viável e mais
conforme ao seu ser.
(Texto dedicado a uma querida amiga que me conheceu
de cueiros e ainda hoje me dedica uma parcela do seu generoso afecto.)
JF / 6.Jan.2017
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