Da
memória que tinha de toda a sua vida, Iago achava que procurara sempre guiar-se
segundo princípios de racionalidade e coerência. Algumas frases aprendidas na
infância ainda lhe vinham à cabeça, não como mandamentos mas como recomendações
fortes de alguém que sabia mais do que ele e que tinha vivido outras vidas mais
difíceis e empolgantes ou valorosas. Também porventura do catolicismo inicial
lhe tivessem restado algumas imagens, mas decerto não tão fortes como algumas
outras que pudera presenciar ou pressentir já em plena idade adulta.
As
evoluções e as rupturas vieram quando tinham que vir. Com a naturalidade e o
dramatismo que deveriam ter. (Mas disso só nos apercebemos depois.) Por
felicidade, o corpo nunca sofrera rasgões graves. O ânimo, mais ou menos, mas
com o sopro da sorte finalmente quase sempre do seu lado – reconhecia agora.
De
facto, nunca nada se lhe havia oferecido de mão beijada (salvo uma vez). Tudo o
que parecia alcançável se transformava afinal em enredos e dificuldades, em
aborrecimentos e angústias que abriam a porta para novas decepções ou outros
embustes. Mas, finalmente, como depois de uma noite de temporal ou de maus
sonhos, a luz voltava quase sempre cheia de sentimentos de realização e mesmo
por vezes acompanhada do reconhecimento de terceiros.
Como
em tudo, de acumulação e de rupturas fora feito o caminho de Iago. O primeiro e
mais importante destes processos fora provavelmente aquele em que substituíra a
noção de pátria (mesmo na elaborada versão da mátria) pela outra, mais alargada,
de humanidade. Nenhuma delas, escrita com letra maiúscula; mas sempre aí
integrando um sentido de viver-com-os-outros, que não era decerto o “amai-vos
uns aos outros” judeo-cristão nem o “matai-vos uns aos outros” de certo
romancista, mas também não os excluía. Uma segunda mutação foi talvez a da ordem para a criatividade, sem que
porém esta negasse totalmente aquela. E vindo mesmo a descobrir a notável
importância das rotinas, para si e para a maioria esmagadora das pessoas
organizarem as suas vidas com menos riscos de choques frontais.
Quando
tinha de tomar decisões importantes, assumia-as com todas as suas
consequências, mas situava-se geralmente no quadrante oposto ao daqueles que,
sobre qualquer assunto, falam sempre de maneira peremptória e definitiva.
O
amadurecimento deu-lhe, como a todos, mais oportunidades de pensar sobre o seu
tempo. Um “tempo” que sempre lhe aparecera como um espaço alargado de procura
de entendimento (e de envolvimento) que abrangia as duas ou três gerações
antecedentes: aquelas de quem podia reconstituir, de memória, cheiros e timbres
de voz, olhares e gestos, relatos de histórias concretas, além da verificação
dos escritos documentais, dos objectos, das pedras e dos lugares. Mais do que
debater ou argumentar (e muito menos discursar, com aplausos ou apupos, o
interesse ou alheamento dos discípulos), essas trocas só o enriqueciam pelo que
era capaz de trazer para casa, e “ruminar” nas noites seguintes. Reconstituindo
a sua própria trajectória, um tanto acidentada e não-linear, ocorria também
perguntar-se qual destas adjectivações – diversidade, multiplicidade,
contraste, contradição, paradoxo – seria a mais apropriada para o seu caso.
Às
vezes, pelas circunstâncias agora vivenciadas em idades mais avançadas, Iago
sentia-se algo deprimido mas simultaneamente apaixonado, por tudo o que
conhecia e de que pudera usufruir, e também amar (embora por vezes subvertendo
a realidade), sabendo aproximar-se paulatinamente o dia em que nada disto
restaria, salvo alguma boa recordação deixada em terceiros. Era um sentimento
reprimido mas que, apesar de tudo, conseguia escapulir-se ao seu modo desejado
de reflectir que, talvez sobretudo por “deformação profissional”, tendia a ser
fundamentalmente racional, histórico e teórico-prático.
Iago
apreciava agora um pouco mais sentar-se, reflectir sem programa ou não pensar
em nada. Às vezes, seguindo apenas as notas de uma música funda passando na
rádio. Outras, vendo os jogadores agitarem-se no ecrã e correrem na disputa da
bola mas sem lhes ligar qualquer importância, à espera de um lance realmente
bonito (como o corpo de uma mulher). Ou entreter-se um pouco com o raciocínio
tagarela das crianças.
Sentado
é a estação a meio-caminho entre o estar de pé e o deitado. Ora, Iago sempre
procurara estar de pé: frente aos outros, frente ao mundo, frente ao que
desconhecia (aqui mais cauteloso), frente a si próprio. Durante muito tempo,
deitar-se fora sempre a procura necessária do repouso, do apaziguamento quando
não se consumia em infindáveis controvérsias internas. E era a antecipação do
desejado repouso final, se possível com o som não distorcido de uma música
magnífica, mas sobretudo sem dores a dilacerarem o corpo, esvaindo-se apenas no
adormecimento.
Assentar-se. Assentamento, como se dizia da quilha
dos navios – com estabilidade, firmeza de formas e de propósitos, incólume à
espuma dos dias, como se espera do efeito de longas e variadas experiências.
Ou
antes assentimento? De tudo o que está, incluindo o defeituoso e o inaceitável?
Iago entrava já receoso nesses terrenos. De tanto procurar entender, estaria
ele já a aceitar tudo como inevitável e devendo ser? Onde firmar agora a lança
das convicções quando, não só o relativismo está na baila, como também o
tresler da idade poderia estar a fazer o seu trabalho?
Por
esta altura, o divino tentou aqui a sua sorte, mas sem sucesso. Em vez de uma
porta resistente mas sempre arrombável, o que encontrou foi um biombo ou uma
cortina (ainda por cima transparente), moldável e maleável aos dedos e aos
ventos mas que seria difícil quebrar ou rasgar. Já não haveria lugar a novos
dramas de Jean Barois.
Talvez
o assentimento fosse um modo mais profundo e benigno de compreensão, de
descoberta. Mas poderia muito bem significar apenas desilusão e, visto de fora,
até por quem lhe prestava respeito, uma vulgar forma de traição.
Aí,
estaria perto de passar do assentimento ao consentimento e isso, apesar de
tudo, ainda lhe soava como um sinal de alerta.
(Aviso desnecessário: Qualquer
semelhança entre este conto e a realidade é mera coincidência.)
JF
/ 6.Mai.2017
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