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terça-feira, 3 de março de 2015

Não faço ideia, mas arriscar-me-ia a pensar que… (I)

Apenas algumas de uma mão-cheia de temas de reflexão sobre questões do presente que, realmente, já vêm do passado e arriscam continuar a colocar-se nos tempos mais próximos.


Três grossos problemas que ‘sobredeterminam’ a vida colectiva dos portugueses
São três, mas bastante imbricados uns nos outros. E todos de natureza internacional, porque envolvem necessariamente a capacidade de decisão externa dos governos nacionais. Embora os interesses económicos sejam gigantescos, os detentores do poder político pratiquem jogos arriscados (e muitas vezes imorais) e as atitudes culturais das populações nem sempre facilitem a boa harmonia e cooperação, todos aqueles problemas passam sob a alçada dos governos, mas ou menos sujeitos à pressão das suas respectivas opiniões públicas/publicadas.
A vitória eleitoral do Syriza na Grécia, quatro dias depois do Banco Central Europeu ter anunciado uma próxima intervenção monetarista para tentar relançar o crescimento económico desta zona, veio abrir um processo inteiramente novo que estilhaçou os impasses, equilíbrios e frustrações acumuladas em vários cantos do continente. De momento a ruptura foi evitada, mas mantêm-se elevadas as probabilidades deste processo acabar com maiores dificuldades económicas para todos; ou mesmo pior se, a partir da crise social, se vier a gerar na Grécia uma crise política grave (porque só um terço dos gregos votou neste governo), quiçá com violências prolongadas nas ruas e com ameaças de interferências internacionais. Então, não apenas teríamos a mais séria situação vivida na história da União Europeia como seria mesmo toda a Europa que veria enfraquecida a sua vitalidade económica no plano mundial e a sua reputação arruinada por muito tempo. Mas talvez a prudência aconselhe os dirigentes e as coisas não cheguem a tal ponto e, uma vez mais, as soluções de compromisso se sobreponham às dinâmicas de ruptura.
A Rússia está a jogar uma grande e arriscada cartada de poker na sua fronteira sul, focalizada na Ucrânia. Neste país, há vários meses que lavra uma efectiva guerra convencional, de “baixa intensidade” mas que já contabilizou cerca de seis mil mortos e imensas destruições. Para a Rússia, é uma guerra “de território”, no sentido em que, por interposta pessoa, procura controlar um espaço crucial; mas é também uma luta política, em espaços urbanos e tendo as populações como “ingrediente” principal; e, em termos internos, é uma guerra civil, dentro de uma Ucrânia que nunca foi um estado-nação bem consolidado, cujas tensões culturais internas explodem quando cessa uma dominação estrangeira forte e se não consegue viabilizar uma federalização das autonomias dentro de um projecto comum; mas, em termos internacionais e para além do tudo o resto, é também um espaço de afrontamento de interesses estratégicos entre a “grande Rússia” e o Ocidente, quer este seja corporizado pelos Estados Unidos da América ou por uma Europa, ali representada sobretudo pela Alemanha. Ora, o avanço da influência da NATO para leste – solicitado antes de mais pelos países dessa faixa saídos da órbita de Moscovo, mas de bom grado aproveitado por certas forças dos EUA – atingiu o máximo limite admissível pela Rússia, que só esperou pela consolidação de uma liderança política indiscutível (de Putin) e a evidência de uma fragilização económica (o gás) e militar (o pacifismo) dos países europeus para começar a ditar as suas condições nessa “coroa de protecção” (que, além disso, lhe deve melhorar o acesso marítimo ao Mediterrâneo e ao Índico antes que o mundo árabe-muçulmano o possa vir a tornar impraticável). Pode parecer “teoria da conspiração”, mas a actual baixa do preço do petróleo – a despeito do governo de Washington não mandar nas grandes empresas petrolíferas do seu país – tem todo o ar de conter uma componente política significativa, para travar os ímpetos de Moscovo, sobretudo quando o dono do Kremlin tem as características sinistras de um “homem-do-KGB”. Mas os interesses russos no Mediterrâneo, depois da “castanha que lhes ardeu na boca” em Chipre e na Síria, não são de facto para menosprezar.
E aqui estamos de novo perante o incrível xadrez que o violentismo medieval dos extremistas políticos do Islão tem vindo a montar em torno do espaço europeu, de que os actos terroristas (do género bombista, assassinatos, tomadas de reféns, etc.) são os que mais incomodam os povos pacificados da Europa (incluindo as suas fortes minorias de cultura muçulmana), mas onde os verdadeiros teatros de guerra “não-completamente-convencional” estão agora plantados na Síria-Iraque, e também no Iémen (próximo do “gargalo” do Mar Vermelho), na Líbia, na zona Sudão-Kénia e a sul do Saara, onde um tal Boko Haram põe em sobressalto as retaguardas de vários países do grande Golfo da Guiné cujas populações se dividem entre islâmicos e animistas, cristãos ou laicos ocidentalizados. Parecem longe da Europa (provavelmente um alvo mais fácil e apetecível do que o longínquo “grande Satã” americano), mas os objectivos primeiros destes extremistas serão porventura o enfraquecimento e o derrube dos regimes políticos “árabes” que têm subsistido no Magrebe e na orla mediterrânica (onde, por agora, só o Egipto conseguiu reagir, embora à custa da força desatada pela sua casta militar).    
Dissemos que estes problemas “sobre-determinam” a nossa vida colectiva. Com isto queremos moderar os excessos de expectativas que frequentemente afloram na opinião pública quanto à autonomia de decisão que, enquanto comunidade política, os portugueses realmente possuem – hoje, sobretudo, em que a nossa dependência externa é enorme, porque pouco produzimos do que consumimos e pouco conseguimos vender ao exterior, porque vivemos e reagimos ao ritmo mediático-cultural dominante e somos um pequeno país sem escala populacional nem excelência de elites que nos torne atraentes e caros para o mundo. Resta-nos a história (que poucos conhecem), a expansão linguística (mais aproveitada por brasileiros do que por nós próprios), o triângulo marítimo nesta zona do oceano Atlântico e, finalmente, a capacidade de improvisação e de resistência à adversidade de que por vezes damos prova. Por todas estas razões, o que poderemos, sim, ambicionar como povo, é sermos capazes de impor às nossas elites e aos nossos representantes oficiais que assimilem e adoptem ideias claras quanto ao que seja o nosso interesse colectivo face a este mundo tardo-moderno, que as formulem de modo simplificado e mobilizador para uso caseiro, e com inteligência táctica e firmeza perante os seus homólogos externos, em vez de se comprazerem em manobras politiqueiras e conluios suspeitos.    

Estado, sociedade civil, economia, política
Durante alguns séculos, pelo menos no Ocidente, o Estado colocou-se acima da sociedade, ao serviço de uma classe ou de uma aliança de classes, impondo àquela as suas leis, sugando-lhe os impostos e apenas lhe assegurando algumas funções de ordem e justiça internas, de defesa externa e, cultural e espiritualmente, um sentido enaltecedor para a vida colectiva. Com a difusão do modelo de Estado-nação exemplificado com estrondo pela Revolução Francesa, o fundamento da soberania começou lentamente a evoluir, afectando a legislação e a organização do poder político segundo os princípios da igualdade dos cidadãos perante a lei e da elegibilidade dos cargos públicos. Mas, por compreensíveis razões sociais (o conservadorismo, as redes interpessoais e as heranças) e económicas (preservação de centros de capital acumulado capaz de ser investido com efeitos multiplicados, impulsionando a modernização económica e o crescimento do produto), aquele princípio de igualdade nunca foi estendido às “fortunas” dos particulares. Apenas se pretendeu caminhar um pouco nessa direcção com o imposto progressivo, as diversas medidas de redistribuição do rendimento e, mais recentemente, as políticas de “igualdade de oportunidades” desenvolvidas pelo Estado-providência. 
Com uma tal evolução em pouco mais de um século, o Estado e a sociedade civil aproximaram-se um do outro, interpenetraram-se, esbatendo-se muitas das barreiras de separação e desarmando-se alguns dos estatutos existentes que protegiam eclesiásticos, militares, juízes, polícias ou funcionários, a par e passo do desaparecimento das prerrogativas de nobreza ainda subsistentes. Destas categorias de privilegiados (embora com grandes diferenças entre si), apenas sobreviveram, e prosperaram, os estatutos dos eleitos pelo sufrágio popular, fossem eles deputados parlamentares – e, por extensão, os governantes – ou autarcas municipais. Mas tinham agora a honrosa justificação de se ocuparem do “bem público”.
O problema é que, entre os diversos motivos e fenómenos que dividem e opõem os indivíduos uns aos outros, também existe a clivagem entre governantes e governados, entre os que detêm uma posição de poder que lhes permite impor aos outros a sua vontade (ainda que pensem sinceramente ser o que melhor lhes convém) e os que lhes estão submetidos e não podem reverter essa situação.
Ora, esta estratificação tendeu, com o tempo, a criar uma “classe dirigente” – ou elite política, abarcando também os dirigentes das oposições durante o seu período de “pousio”, no caso dos sistemas pluralistas e de alternância – que, por homologia de situações, se aproximará e criará interesses comuns com os maiores detentores de riqueza económica, sejam eles possuidores de capitais, propriedades e títulos de valor ou decisores de grandes empresas, bancos e negócios.      
Este conluio existiu no passado, no tempo de um capitalismo mais concorrencial, entre capitães-de-indústria, financeiros e líderes políticos com peso próprio; exasperou-se ou anulou-se/fundiu-se com os regimes autoritários e centralistas após a Grande Guerra; e tornou-se mais vigiado na segunda metade do século XX pela pressão dos meios de comunicação social, ao mesmo tempo que as esquerdas social-democratizantes exigiam também maior transparência e escrutínio público dos negócios do Estado, tudo isto interagindo com uma opinião pública mais atenta e um espírito de cidadania mais universal e menos partidarizado em certas faixas da população.
Porém, nos últimos trinta anos, com o fenómeno da economia e da comunicação globalizadas, a desregulação de alguns campos de negócio e a criação de outros, virtualmente isentos de qualquer controlo, abriram-se de novo largas oportunidades de enriquecimento, não necessariamente ligadas ao retorno do investimento produtivo, à inovação tecnológica, ao alargamento dos mercados ou ao abaixamento dos custos de produção. Por um lado, a grande concentração de capitais em instituições puramente financeiras levou a uma busca incessante e especiosa de onde os aplicar para obter mais-valias rápidas e de vulto (o que alguns chamam “economias de casino”). Por outro lado, a classe social dos gestores entrou em cena, ao nível dos quadros superiores das grandes empresas (e, em particular, a sua elite: os administradores, sobretudo no caso das multinacionais), apropriando-se de uma fatia muito significativa do rendimento económico. E, por último, os governantes nacionais, mesmo em países apenas medianamente ricos, ganharam um espaço de decisão económica inusitado, não apenas pela sua capacidade de ditar as condições legais no âmbito da sua soberania nacional (que sempre tiveram), mas sobretudo enquanto decisores da despesa pública (tanto maior, quanto maior for a riqueza social produzida e acumulada), compensando desse modo a redução geralmente verificada do peso do sector público “como produtor”, face ao período anterior. Eis talvez referenciados os três fenómenos que, estruturalmente, mais tenham contribuído para o recrudescimento nos últimos anos dos casos de corrupção financeira de agentes políticos de topo, em vários países. E, à sua escala, idênticos fenómenos ocorrem nas grandes cidades, estes mais particularmente ligados à apropriação dos direitos fundiários e ao seu uso económico. Lembremo-nos das suspeitas que têm corrido com os gastos de organização e construção com grandes eventos desportivos mundiais, como os Jogos Olímpicos, os campeonatos internacionais de futebol, as corridas de “fórmula 1”, os torneios do “grand slam” de ténis ou a America’s Cup de vela (Atenas, Portugal, Pekin, Grosny, Rio de Janeiro, Valência, etc.).
Corrupção, isenções e subsidiações distorcem os sistemas de preços e de valor que são baseados no custo e na troca. De facto, é conhecimento elementar da economia dizer que os preços flutuam em função da oferta e da procura, em torno do valor de custo da sua produção, e que a concorrência tende a fazer baixar esses custos. Mas os desequilíbrios e a “esperteza saloia” alteram estes mecanismos automáticos com práticas como a monopolização, o açambarcamento, a venda temporária abaixo do preço de custo, o dumping, etc. A criação de instituições independentes de regulação da concorrência impôs-se para a disciplinar e contrariar estes “curto-circuitos” e limitar as intervenções dos governos contrárias à racionalidade económica. Mas o suborno funciona mais escondido. E tem especial aplicação nas aquisições públicas ou na adopção pelos decisores políticos de medidas mais favoráveis para alguns. Segundo o Fórum Económico Mundial «a corrupção prejudica o sector privado, pois inibe o crescimento global, diminui a qualidade do trabalho, reduz a prosperidade económica, reforça níveis de desigualdade e impede a redução da pobreza» e «o custo da corrupção é de cerca de um bilião de dólares por ano. Entre as 144 economias inquiridas, 67 identificaram a corrupção como um dos três principais entraves ao desenvolvimento de negócios no seu país» (R. Sherman, embaixador americano, Público, 9.Dez.2014).
As isenções e subsidiações são benesses aplicadas pelo Estado, justificadas com objectivos ou efeitos que era suposto favorecerem o interesse comum da sociedade. É certo que estes entorses à concorrência são mais escrutinados do que as suspeitas do pagamento de “luvas” mas, ainda assim, tornam menos visível e compreensível quanto custa a produção desses bens ou serviços. Veja-se o caso do “défice tarifário” criado pela EDP, vários governos e entidade reguladora do sector, cuja dívida era de cerca de 800 milhões de Euros em 2007 e atingirá os 5 mil milhões em 2015 (segundo o Público de 21.Dez.2014), ou a acumulação de défices dos transportes públicos cuja compensação pelos “preços sociais” praticados tem sido sempre adiada por razões eleitoralistas ou para deixar a “batata quente” para o ano ou para os responsáveis seguintes. E, deste modo, a economia vai-se tornando num jogo de influências, obscurecendo a auto-regulação do sistema de trocas mercantis sem poderes formais a decidi-lo, que é a sua grande vantagem social, independentemente ser mais ou menos eficiente enquanto mecanismo de distribuição da riqueza social.
E os cidadãos das classes médias-médias e populares? Nos países mais ricos e democráticos, é certo que eles beneficiaram também da maior produtividade dos factores de produção aí existentes; e igualmente do diferencial de poder económico em relação às enormes massas populacionais dos países pobres. A ideia de que os trabalhadores das potências industriais beneficiaram da exploração dos países agrícolas do “3º mundo” não é uma mera “palavra-de-ordem anti-imperialista”. Mas estes discursos acusatórios de sentido único quase sempre procuraram esconder a usurpação desenfreada de bens e direitos praticada pelas elites dos países “em desenvolvimento”, bem como os mecanismos de domínio que subsistiram (travestidos e geralmente agravados) nos que estabeleceram formas de economia administrativa, estatizada.
Hoje, já não há zonas de desenvolvimento autárcico e os termos de troca parecem um pouco menos drásticos, devido ao poderio dos países produtores de petróleo e ao crescimento acelerado das potências emergentes e com demografias pujantes. Mas persistem enormes manchas de pobreza, porém já despertas para o que vai pelo mundo, como nunca antes acontecera.
Num número crescente de situações (do Ocidente à África do Sul, do Brasil a Hong Kong, da Turquia à Austrália, etc.), os cidadãos urbanos mobilizam-se para exigir um maior controlo sobre os dirigentes políticos, pressionar em favor de políticas benéficas para as comunidades, impor eleições directas ou decisões referendárias, envolvendo-se às vezes nos chamados orçamentos participativos e aderindo empiricamente aos princípios democráticos. Também se mostram vigilantes quanto à eficácia e isenção dos sistemas de justiça e à pluralidade de fontes informativas e liberdade de opinião. E, nas últimas décadas, perceberam os efeitos negativos dos excessos da indústria e da urbanização sobre o ambiente natural, com a necessidade de não comprometermos definitivamente certos equilíbrios. Mas faltar-lhes-á ainda a consciência da necessidade de uma melhor distribuição do esforço de trabalho e do rendimento proporcionado pela economia e pela tecnologia hoje disponível, à escala mundial. Esse será o próximo passo.
De facto, a economia política que parece dominar na actualidade, não sendo já fundamentalmente a da relação desigual capital-trabalho (embora a mesma subsista), é talvez sobretudo baseada na tensão entre classes médias que pretendem sustentar padrões de vida crescentemente dispendiosos e decisores políticos e económicos de topo, que, simultaneamente, têm de se haver entre si em jogos de poder complexos (fontes de energia, recursos de ciência e tecnologia, assimetria nos modos de legitimação respectivos, contenciosos históricos-culturais, força militar, etc.) e não podem evitar as intermediações hodiernas da globalização informativa, das massas de capitais voláteis e das pressões ou chantagens inconfessáveis. Quem estará menos longe da razão: Piketti ou Varoufakis?   

Sobre reformas e revoluções
O tema foi super-conhecido e politicamente debatido, sobretudo em finais do século XIX e primeira metade do século XX. Ele dividiu o movimento operário e socialista, como tinha já antes dividido os republicanos e constitucionalistas. Depois da segunda guerra mundial, ainda o fundo desta opção apareceu, fugidiamente, no seio do levantamento social da juventude dos países ricos e no movimento anti-colonialista, nacionalista ou anti-imperialista sob a forma do dilema estratégico entre luta pacífica versus luta armada. 
Os espíritos mais lúcidos que, no passado, teorizaram esta questão perceberam logo que não se tratava propriamente de uma questão de escolha, mas sim do resultado incerto de um confronto de lógicas de acção colectiva centrado na relação entre os detentores do poder político – que, em última análise, pode lançar mão de todos os meios de força legais para manter o statu quo – e as forças sociais, políticas ou morais que o podem contestar. Tal era, por exemplo, o entendimento expresso por pensadores como Elisée Reclus ou Gustav Landauer. Algo de semelhante se poderia dizer em relação ao poder económico ou ao poder cultural (religiões, ideologias ou estéticas que impõem o seu domínio) mas aqui as “armas” do confronto são de outra natureza; ou, quando este atinge extremos de conflituosidade, transfere-se necessariamente para o terreno político-agónico, onde o poder de Estado tem de novo a palavra essencial.
Naquela concepção, se a pressão das oposições é forte mas o poder em funções revela inteligência política e percebe que existe na sociedade e no mundo uma tendência inexorável que suporta a acção contestatária, serão feitas as concessões e as reformas legais necessárias que evitarão os custos de uma revolução ou de caos/descontrolo/dispersão do poder e da violência. Isto, quer as forças ocupantes do poder se mantenham, integrando ou não uma parte dos seus opositores, ou, mais radicalmente, cedam o lugar a esses novos agentes, de modo mais ou menos alongado no tempo mas sempre sem rupturas demasiado dolorosas. Teríamos então aqui um processo de reformas que, nem por isso (ou talvez mesmo por causa disso) têm de deixar de ser radicalíssimas e modificarem a sociedade em profundidade e por longo prazo. Porém, se o processo é tímido ou incompleto, a perspectiva da revolução pode apenas ser adiada para um pouco mais tarde.
Se, pelo contrário, o poder político constituído se obstina em negar qualquer bondade às razões invocadas pelos seus opositores; se apenas reprime e “repõe a ordem”; se inventa um perigo exterior para desviar as atenções, pôr do seu lado a opinião pública ou, pior, tenta ligar as oposições aos inimigos externos apostrofando-as de anti-patriotas ou anti-sociais – então é quase certo que esse poder instalado estará a abrir caminho à revolução ou a coisas piores.
Diferente desta visão é a perspectiva que deste binómico reforma-revolução têm muitas vezes os agentes da mudança e os contestatários do poder legal. Para estes, não se trata tanto de compreender a situação, mas de a modificar, de criar uma relação de forças que seja favorável às suas causas e que estas possam finalmente trunfar. E aqui colocam-se quase sempre duas atitudes em confronto, que são menos visíveis mas que agem mais fundo do que meras “linhas políticas” em disputa: uns querem sinceramente e sobretudo ver alteradas as iniquidades que detectam no funcionamento do Estado, na sociedade, na contribuição para a economia e na distribuição da riqueza; outros, com igual sinceridade, não têm dúvidas em considerar serem eles próprios os actores fundamentais dessa transformação. No primeiro caso, a acentuação é posta na mudança social ou política; no segundo, na (auto-)referenciação de quem acha que a deve promover. Um exemplo eloquente desta última atitude pode encontrar-se (para quem tiver a paciência de o ler até ao fim) no texto «Contribuição do Partido Comunista Português ao 16º Encontro Internacional dos Partidos Comunistas e Operários» realizado no Equador em Novembro de 2014 em http://www.pcp.pt/contribuicao-do-partido-comunista-portugues-ao-16o-eipco .
As condições e circunstâncias do mundo actual mudaram substancialmente em muitos aspectos em relação àquilo que eram há um século atrás. As próprias franjas marginais que ainda pensam em revoluções com um sentido sócio-económico e político abstêm-se de o proclamar, seja por realismo, táctica eleitoral ou apenas para não se sentirem extra-terrestres. Mesmo as movimentações de jovens “indignados” que na Europa, nas Américas e alhures se têm levantado contra os efeitos da crise económica, a cupidez dos seus dirigentes ou exigem outras condições de vida não aspiram a nada de parecido com as antigas revoluções.
Quem fala e pratica hoje gestos que parecem uma revolução são os radicais islâmicos que empregam a violência e a coacção medievais para impor a sua concepção religiosa de vida social. Será, no fundo, a efusão de sangue a marca distintiva dos processos revolucionários? Mas isso acontece em todos os golpes-de-Estado e em todas as guerras civis, em que dois “partidos” armados disputam o poder político a golpes de espada ou à força da metralha! A “guerra revolucionária”, utilizada em vários territórios do Terceiro Mundo para obterem a sua independência, também contribuiu para esbater o sentido emancipatório que, por um tempo, parecia associado às revoluções: começou por ser guerrilha e resistência popular dos mais fracos para muitas vezes descambar em terrorismo ou, numa “fase superior”, ser só guerra, com a tomada do poder na mira da espingarda (frequentemente com a “fraternal ajuda” de uma potência estrangeira).
Aquilo que, nos últimos anos, mais se aproximou da mobilização popular típica das revoluções do passado foram, de facto, as “primaveras árabes” na sua fase inicial, mostrando serem capazes de derrubar poderes autoritários e corruptos instalados há longas décadas e governando sem partilha nem oposição consentida. Mas, ao contrário das revoluções democráticas e “de veludo” do Leste europeu que puseram termo à dolorosa experiência dos “socialismos de Estado”, nestes países da bacia mediterrânica o impulso modernizador emprestado pelas suas classes médias urbanas acabou por ser afogado no mar imenso do campesinato e do (lumpen-)proletariado profundamente islamizados. Será esse também o destino da Turquia, da Pérsia ou da Arábia quando soar a hora de cada uma delas?
Aquilo que melhor parece aproximar estes movimentos sociais urbanos do arco mediterrânico aos dos jovens “indignados” ocidentais e aos povos que rejeitaram o comunismo e o socialismo-de-partido-único é a reivindicação de liberdade e procura de maior justiça social, o objectivo de decidir pelo voto igualitário de todos os cidadãos qual o tipo de regime, de políticas e de governo e, por último, o método de protestar pacificamente e na rua através da mobilização popular até conseguirem fazer vergar os dirigentes já considerados ilegítimos.
Mas há perigos que, obviamente, espreitam estes movimentos: é-lhes difícil criar uma dinâmica de convergência e coordenar os esforços de tantos “inorganizados”; são alvo fácil de provocações de forças alheias; podem ser arrastados por um inesperado líder populista-autoritário; e, mais frequentemente (estou a pensar em certas componentes do Fórum Social Mundial, no Syriza grego, no ‘Podemos’ espanhol e nas agitações provocadas entre nós pelo estilhaçamento do “Bloco”), pelo militantismo de esquerda, incapaz de se libertar dos seus dogmas vanguardistas tradicionais. Por isso, o que de bom e inovador haveria a esperar deles para uma verdadeira regeneração dos regimes democráticos terá de ficar adiado até que esses novos movimentos sociais cresçam e amadureçam o suficiente para dispensarem estas tutelas serôdias.
JF / 3.Mar.2015

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