As unanimidades à volta de uma grande personalidade pública são raras e às vezes suspeitas. Mas neste caso, compreendem-se.
De facto, Mandela travou ímpetos, garantiu continuidades, forçou a pacificação de uma sociedade segmentada e ulcerada, o que foi também resultado da corajosa acção de De Klerc, com quem partilhou o Prémio Nobel. Mas havia sido condenado à prisão nos anos 60 pelo seu patrocínio à luta armada do ANC, e isso é muitas vezes silenciado pelos que gostam de endeusar os grandes líderes, tal como o bom acolhimento que fez ao regime de Kadafi quando este preferiu juntar-se aos países da África negra, em vez do pan-arabismo.
Admite-se que, para um africano, cristianização, livre comércio, direitos humanos e outras referências propostas (e quase sempre impostas) ao mundo pelos Ocidentais sejam, culturalmente, “coisas de brancos”, sempre relativizadas pelo peso histórico da escravização industrializada a que eles submeteram os povos de África. Mas um homem com a superior inteligência de “Madiba” podia talvez ter sido mais cauteloso com a escolha dos seus “amigos” como foi respeitador da identidade dos seus “inimigos” – disposição de espírito que, ajuizada e sabiamente, o levou a lutar mais contra as injustiças da história do que por ódio a alguns dos seus protagonistas.
É possível que tal opção pela luta violenta – em vez da acção política tradicional que aquele seu partido prosseguia desde há décadas, ou mesmo da acção directa não-violenta que Gandhi ali semeara no princípio do século – tivesse uma boa justificação, perante a intensificação da política de apartheid imposta pelo Partido Nacional e os sectores brancos mais radicais desde o rompimento do vínculo que ligara o país ao Reino Unido.
Mas é também quase inevitável que, ao seguirem essa via da violência, os irredentistas criem uma tal dinâmica de “olho por olho” que, quando atingem o cume da vitória, esta já não possa ser festejada apenas em ambiente de fraternização. A violência empregue na luta prolonga-se muitas vezes em actos de vingança individuais ou colectivos, em novos regimes opressivos (de sinal contrário) ou em conflitos abertos entre os vários grupos da coligação vencedora. Quase sempre, os destemidos guerrilheiros de ontem passam a polícias ou militares ao serviço do novo poder, quantas vezes abusando das populações pelo simples facto de serem homens-em-armas. Outras vezes, são esses antigos combatentes que exigem benesses e recompensas, criando problemas e desencadeando conflitos armados como os que têm ocorrido na Guiné-Bissau, no Zimbabué ou em Timor-Leste.
Nelson Mandela deve ser sobretudo recordado como um homem que, depois de ter obtido a vitória com que toda a vida sonhara para o seu povo, soube servir-se do poder que lhe caiu nas mãos para travar aqueles ímpetos vingativos, agónicos e opressores, teve a coragem de se afastar da sua própria mulher Willie e do grupo de facínoras que a rodeava, e foi capaz de conter as tendências mais duras e racistas do seu movimento. Propôs – e em grande medida conseguiu – um autêntico processo de reconciliação nacional, também com a inestimável ajuda do arcebispo anglicano Tutu. Conseguiu evitar a saída de brancos para o estrangeiro, bem como a fuga dos capitais, preservando a eficiência da economia agrária, industrial e terciária do país. E terá aceite destruir e não reclamar para si a capacidade nuclear bélica que o regime anterior deteria – o que foi de um valor inestimável para todo o sub-continente africano, e não é geralmente destacado pelo analistas.
Mandela só não logrou evitar o aumento da delinquência urbana e da violência nas ruas, fruto de armas a mais nas mãos de quaisquer uns e de quantidades imensas de gente sem trabalho e que se julgam com direito aos bens que vêem tão mal distribuídos entre as diversas camadas sociais. Mas ao afastar-se voluntariamente do poder da forma como o fez, deu ainda uma enorme lição a todas as lideranças políticas da região e até do mundo.
Embora de forma não-confessada, Mandela foi talvez um extraordinário exemplo de feliz combinação do pragmatismo e da resiliência herdadas do colonizador britânico com a magnanimidade própria de uma aristocracia africana.
JF / 5.Dez.2013
É uma análise muito completa e muito serena sobre Mandela e o seu legado-
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