Há
anos atrás, discutia-se muito na comunidade internacional dos sociólogos a
importância do factor tecnológico (do progresso técnico, dizia-se então) na
evolução das sociedades. Estava-se então na época da difusão acelerada dos
dispositivos automáticos de produção industrial (a “automação”, a “robótica”),
bem antes de surgir a vaga avassaladora da informática, dos computadores e das
telecomunicações dos tempos actuais. Aqueles cientistas tendiam geralmente a
criticar a ênfase dada por outros a tais factores e mais facilmente
contrapunham a esta perspectiva a “construção social das técnicas”,
identificando aliás um filão de pesquisa e de apreensão dos fenómenos sociais
que se estendeu para outros domínios, como a própria produção da ciência ou a
germinação das culturas juvenis, por exemplo.
Esta
negação do primado da técnica na evolução da vida social tem toda a
justificação se a atitude a criticar é o que poderemos designar por “tecnicismo”,
isto é: a convicção interiorizada no pensamento dos sujeitos de que a tecnologia – as máquinas, os
dispositivos e os respectivos saberes operativos – é sempre capaz de resolver
problemas e dar respostas a questões ou necessidades sociais que parecem
insolúveis ou impossíveis; se não hoje, certamente um pouco mais tarde. Uma tal
disposição de espírito decerto que menospreza as condições económicas em que cada inovação técnica pode, ou não,
difundir-se e provavelmente ignora o papel específico desempenhado pelas dinâmicas sócio-culturais, quer na
travagem, quer na aceitação ou aceleração da difusão de tais mudanças, como têm
vindo a mostrar as diversas ciências sociais, desconhecendo também as relações
mais fundamentais postas a descoberto pelas análises contemporâneas sobre a
evolução histórica.
Vejamos
alguns exemplos de manifestações concretas daquilo que estamos a afirmar –
sendo certo que tais exemplos não constituem qualquer prova, mas apenas
facilitam a comunicação e a apreensão do que se sustenta por parte de um leque
mais alargado de pessoas. Falando do caso do Portugal que temos sob os nossos
olhos, é inegável que o país se modernizou tecnicamente nos últimos trinta anos
se pensarmos na rápida difusão dos sistemas tele-informáticos, na profusão de “electro-domésticos”
que hoje existem nos lares portugueses ou na superação dos atrasos existentes
em infraestruturas e equipamentos no âmbito das comunicações rodoviárias, da
saúde pública, do ensino e da cultura, aproximando-nos dos países europeus da
nossa vizinhança. Simplesmente, por não terem uma base de sustentação económica
suficiente e terem sido edificados em condições de endividamento pouco
acauteladas, tais bens estão hoje largamente sub-aproveitados ou carentes das
necessárias despesas de manutenção. Ou seja: por voluntarismo político ou
encandeamento pelas facilidades de crédito oferecidas, muitos investimentos de
modernização técnica foram feitos sem que a economia realmente os reclamasse e
sobretudo os pudesse sustentar. Este é o drama colectivo do nosso presente, mas
vários dos que conhecem aprofundadamente a história do Portugal oitocentista
afirmam que idêntico tipo de desajustamento também então aconteceu com a nossa
inicial industrialização e as políticas de modernização infraestrutural do
Fontismo (estradas, ferrovias, telégrafo, portos).
A
mecanização e a organização em grande série da produção industrial permitiram,
indubitavelmente, alcançar dois resultados positivos e de grande alcance para
as sociedades onde tal ocorreu. Por um lado, embarateceram o custo de produtos
de uso corrente, pondo-os ao alcance da bolsa de um número muito mais alargado
de consumidores. Isto foi um efeito económico, de alargamento do mercado (que,
pelo seu sucesso, decerto deu lucros avantajados aos seus promotores), mas com
claros reflexos positivos e imediatos na população. Um segundo efeito positivo
deveu-se à possibilidade de dar trabalho a um maior volume de trabalhadores,
homens e mulheres, que não dispunham de especiais qualificações para o
desempenho de tarefas na indústria e a quem agora se pedia apenas para executar
gestos simples, embora repetitivos e por isso mesmo cansativos: geralmente, tal
oportunidade foi aproveitada por antigos camponeses (alguns provindo da
imigração de territórios longínquos) e também por mulheres até então confinadas
à esfera doméstica. Porém, este progresso técnico e económico teve também um
custo social assinalável. Ele retirou, pouco a pouco, o espaço aos operários
qualificados de ofício, que dispunham de algumas vantagens no mercado de
trabalho face ao poder económico do patronato. As novas máquinas e as tarefas
produtivas agora desagregadas em gestos elementares que qualquer um podia
realizar eliminaram em algumas décadas o processo social das carreiras
operárias que se iniciava com alguns anos de aprendizato, no próprio local de
trabalho, a que se seguia uma ascensão lenta mas segura e irreversível de
desempenhos profissionais num certo domínio de especialização (com designações
como aspirante, oficial de 2ª, oficial de 1ª, etc.) de que podem ser exemplos
os torneiros-mecânicos, os caldeireiros, os pedreiros, os marceneiros e tantos
outros; e que atingia o tope com as posições de contramestres, mestres e
mestres-gerais, que eram pessoas que, embora tivessem tido escolaridades
elementares, se haviam guindado por mérito profissional próprio ao domínio de
todos os “segredos da sua arte” e se consagravam agora a tarefas de
coordenação, gestão e controlo do processo produtivo e de todo o pessoal da sua
especialidade. Não que estes ofícios manuais (ou do uso competente de máquinas
e ferramentas) tivessem sido banidos definitivamente; mas foram contudo reduzidos
a pequenos núcleos adstritos a funções de manutenção ou reparação de
equipamentos, e já não responsáveis pela produção de bens, de que resultou
também uma depreciação do valor económico do seu trabalho, dos seus salários. É
certo que, mesmo antes disto acontecer, já existiam sectores da indústria que
empregavam largos volumes de mão-de-obra pouco ou nada qualificada, como as
operárias da fiação mecânica, os serventes da construção civil ou os estivadores
portuários – para já não falar nas crianças que também foram então lançadas
para as oficinas. Para todos estes foi indiferente a intensificação da
mecanização, salvo quando esta também se pôs a economizar empregos. Mas aquela outra
“elite” ou “aristocracia” operária, orgulhosa do seu saber profissional e da
sua utilidade social constituía, de facto, um valor e um património que o
industrialismo do século XX destruiu e sacrificou.
Um
terceiro exemplo de enorme magnitude que nos está ainda a afectar em pleno é o
dos impactos brutais da industrialização sobre o meio ambiente natural,
intensificada de maneira mais dispersa por todo o planeta no decorrer do último
século. As alterações climáticas, a rarefacção da camada de ozono, a elevação
da temperatura dos oceanos ou a degradação da qualidade das suas águas podem
não ter ainda comprovação científica clara de que sejam um resultado do modelo
económico dominante, com as suas poluições industriais, a energia assente na
queima dos combustíveis fósseis, a super-concentração urbana e um consumo de
massas baseado no “usar e deitar fora”. Mas as percepções de uma parte mais
informada das populações do globo, com reflexos sobre algumas das decisões das
elites políticas, já incorporaram nos seus raciocínios essa relação de
causa-efeito, encarando de maneira crítica ou com desconfiança o “modelo de
desenvolvimento” vigente.
Finalmente,
atente-se na enorme pressão que as atitudes sociais dos países ocidentais mais
ricos têm vindo a exercer nas últimas décadas sobre as ciências e tecnologias
da saúde e bio-genéticas, no sentido de que estas descubram maneiras de
combater mais eficazmente as doenças e prolonguem a vida o mais possível, bem
como façam recuar as fronteiras da natureza, nomeadamente quando às possibilidades
da procriação humana, aliás com riscos visíveis de natureza ética.
Nestes
vários exemplos, temos casos em que o dinamismo prioritário e dominante parece
situar-se nos domínios da técnica, sendo que a economia e “o social” podem, ou
não, acompanhar esses progressos. Temos outros em que uma frutuosa combinação
da técnica e da economia levou a grandes mudanças nas sociedades, porém,
ambivalentes: umas positivas e outras negativas. O terceiro exemplo mostra-nos
a tomada de consciência de uma parte ainda restrita de humanidade sobre efeitos
nefastos a longo prazo da economia e da técnica actualmente dominantes, a
contra-corrente de interesses poderosos e ao lado da desatenção e ignorância da
maioria, só capaz de enxergar os benefícios do curto prazo. E temos por último
um caso de efeito dinâmico e de liderança por parte de já amplos sectores das
sociedades contemporâneas que, aqui sim, provocam um efeito de arrastamento na
produção científica.
Este
último caso corporiza da melhor maneira uma subordinação da técnica à procura
social. Mas nem todos os exemplos revestem a aparente benignidade deste
processo. Lembremos que a investigação sobre a energia atómica foi muitíssimo
acelerada pela busca de uma arma decisiva para vencer a II Guerra Mundial, como
já tantas vezes acontecera na história mas talvez nunca com um “galgar de
patamar” tão significativo como ocorreu dessa vez. É certo que foi uma decisão
de um restritíssimo grupo de homens, mas o que estava em jogo era a sociedade
no seu conjunto. E foi esta que justificou e provocou mais este salto nos
avanços científico-tecnológicos.
Não
há que menosprezar o papel da tecnologia na evolução humana. Em primeiro lugar,
porque que todos os passos notáveis de inovação técnica resultam de um esforço
prolongado e sistemático de investigação científica. Já não estamos no tempo
das descobertas geniais de uma mente privilegiada (modelo Leonardo da Vinci),
ou sequer dessa feira das consolações do Portugal de há meio-século que eram as
medalhas-de-ouro e as menções-honrosas do salão dos inventores de Genebra. Os
recursos hoje consagrados à qualificação das populações e à sustentação dos
sistemas de investigação científica são considerados investimentos, a despeito
de serem custos que muitos ajudam a suportar. Em segundo lugar, também porque, diferentemente
das conquistas sociais e dos progressos da economia, os avanços
científico-tecnológicos, uma vez adquiridos, tornam-se irreversíveis (para o
melhor e para o pior). A técnica é pois, também ela, um produto do saber humano,
que pode ter utilizações com intenções e efeitos muito diferenciados de um
ponto de vista moral ou político.
Igualmente,
a economia deve ser encarada sem preconceitos ideológicos. O pensamento
político de esquerda habituou-se desde há mais de século e meio a encarar
negativamente os sistemas económicos modernos, rebaixando-os sob os epítetos de
“capitalista”, de “exploração do homem-pelo-homem”, “imperialista”, “de
mercado”, “neo-liberal”, etc. Se, em certa medida, os poderes políticos
democráticos conseguiram corrigir alguns dos aspectos mais detestáveis desta
economia (abuso do patrão sobre o assalariado, concentração desmedida da
riqueza, etc.), orientando-a no sentido de contemplar melhor objectivos benéficos
para a maioria (na distribuição do rendimento, na saúde, educação ou
previdência social), os ensaios para criar um regime económico alternativo, de
base racional e administrativa, organizado pelo Estado, conduziram até hoje a
patentes fracassos. E as experiências de “economia social” (cooperativismo, mutualismo
popular, entreajuda solidária local, etc.), sendo humanamente muito ricas e
pedagogicamente interessantes, nunca conseguiram mais do que constituir “ilhas”
de refúgio para valores democráticos e comunitários, mas sem capacidade para se
imporem no quadro mais amplo das sociedades urbanas contemporâneas. No contexto
actual de globalização, a economia também pode ser vista como um tecido de
relações sociais que, pela primeira vez, unificou o mundo, ultrapassando as
fronteiras nacionais, as línguas, as crenças religiosas e outros
particularismos culturais, traduzida por dados estatísticos e por uma
contabilidade monetária imediatamente compreensível e significativa em qualquer
ponto do planeta. É uma aquisição que não deve ser menosprezada. E talvez aqui
a economia esteja “em avanço” sobre outros mecanismos de controlo social,
nomeadamente por não existir um poder político mundial representativo capaz de
estabelecer regras de regulação mais eficazes em certos domínios, como sejam as
transacções financeiras, o comércio internacional ou os standards mínimos para um trabalho digno e gratificante.
Voltemos
ao ponto de partida. Haverá alguma razão fundamentada para atribuir uma
prioridade aos factores técnicos na marcha da sociedade? Há autores que falam
de uma 1ª revolução industrial (a do carvão e da máquina a vapor, que
transformou a fábrica, a navegação e criou o caminho-de-ferro), de uma 2ª
revolução industrial (a proporcionada pela electricidade e o motor de explosão,
na origem do automóvel e do avião) e de uma 3ª revolução industrial (inaugurada
pelo aproveitamento da energia nuclear). Mas esta é uma periodização
essencialmente útil para sistematizar a evolução das tecnologias de produção
(como igualmente poderíamos fazer para as armas, os utensílios domésticos,
etc.). É muito discutível que sirva para o fim que aqui temos em vista.
Por
outro lado, é verdade que componentes genuinamente próprias da vida social
podem impor travagens ao progresso técnico ou estimular o seu contínuo
borbulhar, como podem ignorar ou combinar-se com modelos económicos de modo
muito diverso. Atentemos no fenómeno das religiões, que parece quase imune às
condições técnicas e económicas conhecidas pela história dos últimos dois
milénios, pelo menos, e que só recentemente tem registado algumas alterações
significativas por força de mudanças internas à vida social, como sejam o
surgimento da filosofia das luzes, o desenvolvimento da ciência e o alargamento
da educação. Também se sabe que os modos de vida tradicionais das culturas
camponesas – fosse da exploração agrícola familiar de modelo europeu, fosse dos
pastores itinerantes das estepes asiáticas, das savanas africanas ou das
pradarias americanas – opuseram sempre fortes resistências a deixarem-se
transformar em assalariados com rendimento assegurado e que só o fizeram, com
ou sem emigração, quando os reduziram à fome mediante cortarem-lhes as bases da
sua sustentação económica.
Hoje,
nas sociedades ocidentalizadas (ao modelo americano), as pessoas são
tendencialmente adeptas das inovações técnicas (veja-se a paixão de tantos
pelas viaturas mecânicas ou os gadgets
da comunicação interpessoal) e amigas da economia do consumo ilimitado de bens
materiais, só parecendo emergirem reacções de crítica, recusa ou desconfiança
perante efeitos perversos potencialmente catastróficos como sejam os
“engarrafamentos urbanos”, a espionagem electrónica ou as crises de
desregulação económico-financeira. Eis, pois, mais alguns exemplos de relações
específicas entre (e intra) estas realidades com estruturação própria mas que,
simultaneamente, interferem muito entre si, de maneira complexa.
Se
considerarmos, por simplificação, as três variáveis – técnica, economia e
sociedade – como as que fundamentalmente condicionam, no médio/longo prazo, o
futuro de cada um de nós, a nossa “tese” é então a de que não devemos
privilegiar a importância de qualquer uma delas sobre as restantes, mas que as
três se condicionam mutuamente e de maneira equilibrada entras elas, sem
qualquer “pré-determinação” de uma sobre as outras (como pretendia a filosofia
marxista relativamente à economia). No detalhe de cada época e de cada campo de
investigação científica e tecnológica ou de cada circuito económico particular
(de investimento-produção-circulação-consumo) se jogarão então as combinações
virtuosas que permitem mudanças universais significativas – se de sentido
civilizacional positivo, negativo ou controverso, é uma outra questão que não
se coloca no mesmo plano – ou, pelo contrário, os bloqueios que as impedem. Embora
decerto rudimentar, será esta uma visão aceitável do processo histórico da
nossa modernidade?
JF / 30.Nov. 2013
Sem comentários:
Enviar um comentário