Há dois anos, muitos se entusiasmaram com os levantamentos populares na Tunísia e no Egipto, que eram aparentemente obra das novas classes médias urbanas, jovens e escolarizadas, que se referiam mais à liberdade, à igualdade e à democracia, criticando os poderes corruptos há muito instalados, do que a querelas de facções religiosas ou a sentimentos anti-ocidentais. Já no Iémen, o poder cedeu a movimentos de massa chiitas, inscritos no âmbito de tensões e conflitos religiosos transnacionais. E na Líbia a revolta urbana contra Kadafi rapidamente evoluiu para uma guerra civil convencional, com apoios e influências externas, que acabou por exportar algum tipo de terrorismo islâmico mais para sul, abrindo-se uma procupante nova frente de luta nas regiões desérticas do Mali e do Niger com tendência a alastrar para a Nigéria, o Chade e o Sudão, talvez também para a Mauritânia.
Na Síria, apoiada pelo Irão e pela Rússia, a revolta começou de maneira idêntica, com corajosas manifestações de rua contra o poder discricionário do partido Baas e do clã da família Assad. Mas o complexo entrecruzamento de forças e interesses actuando no país, internos e externos, foram-no arrastando para situações de violência cada vez mais brutais. Do lado do governo, o emprego da aviação, de artilharia e parece que também de armas químicas há muito deitou por terra a argumentação oficial da necessidade de repor a ordem; do lado das forças de contestação, para além da coragem dos combatentes, os atentados bombistas, o uso de técnicas da guerra de ruas e as notícias da chegada de numerosos “voluntários” foram suficientes para se perceber que, a partir de certo momento, tal resistência implicava a existência de centros de treino e de apoios materiais e logísticos de tipo profissional que só podiam provir de importantes potências externas. Como resultado, que tende a eternizar-se, temos um novo conflito militar instalado numa zona altamente perigosa e o fenómeno dos milhares de refugiados a atravessarem a fronteira que lhes parece menos hostil.
Com a precária estabilização política que se seguiu à queda dos regimes autocráticos nos outros países, a esperançosa Primavera Árabe dos apelos à liberdade e a um verdadeiro governo do povo parece ter chegado a um impasse ou, quiçá, aos seus limites possíveis.
De facto, olhando um pouco para trás, para a primeira metade do século XX, podemos lembrar-nos como o pan-arabismo apenas preparou o terreno para os povos do Norte de África e do Próximo Oriente derrubarem na primeira oportunidade os sultões, beis e monarcas que há muito tempo os governavam com mão-de-ferro, ao mesmo tempo que começaram a rejeitar o controlo político e o apossessamento das suas riquezas económicas (petróleo, antes de tudo) por parte das potências ocidentais (Inglaterra, França, Espanha, Itália e mesmo a Alemanha). Foi através deste processo e de algumas lutas ferozes (por exemplo, a comandada por Abd-el-K’rim no Marrocos) que as populações deste vasto arco mediterrânico (e mais além), de religião islâmica, terão tomado consciência da sua identidade colectiva, face aos ocidentais, mas também face aos eslavos (Rússia) e aos indús, que eram as grandes potências demográficas e culturais que geograficamente os constrangiam, já que nada receavam vindo da África negra, que desde há séculos eles se haviam habituado a dominar, progredindo ao longo das duas costas através do comércio (escravos incluídos) e da religião. Mas deste inicial pan-arabismo apenas restou um vaguíssimo “socialismo árabe”, corporizado nos partidos políticos Baas que conseguiram alcançar o poder em alguns países através de golpes e sedições e aí instauraram regimes laicos, todavia respeitadores do Corão e com alguma tolerância para as outras religiões. Porém, estas mudanças ocorridas por volta de meados do século já foram conseguidas com algum tipo de aliança ou fusão com uma corrente política diferente: a dos nacionalismos árabes.
De certa maneira, esta outra ideologia difundiu-se através do sucesso da revolução turca, na sequência da derrota deste terceiro “império central” na 1ª Guerra Mundial (ao lado da Alemanha e da Áustria-Hungria), da queda do sultão, da proclamação da República em 1922 e da ascensão de Kemal “Ataturk” (o “pai dos turcos”), oficial do exército e líder do movimento dos Jovens Turcos. Em 1952 os militares, com Naguib e logo depois Nasser, derrubam o rei do Egipto e algo de semelhante ocorre no Iraque em 1954. Na Síria, o partido Baas assume o poder por golpe-de-estado em 1963; e em 1969 são os militares que afastam o rei Idriss na Líbia. Em todos estes casos (e com influências menos bem-sucedidas em outros países), os militares profissionais têm um papel central, movidos por uma ideologia nacionalista, com laivos do antecedente pan-arabismo e sempre críticos para com o Ocidente.
Mas quem eram e o que queriam estes militares, e que futuro almejavam para os seus países? Do ponto de vista sociológico, parece tratar-se, em primeiro lugar, de um corpo profissional moderno, no contexto do arcaísmo social envolvente e a despeito de se assumirem como herdeiros do antigo espírito guerreiro dos defensores do Califado. De facto, são homens saídos do povo e das classes burguesas comerciantes, distantes das famílias aristocráticas ou das hierarquias religiosas, e com desejos de ascensão social pela via da política de Estado. Além disso, ao longo de décadas, estes homens foram sendo treinados militarmente segundo os conceitos de guerra e de disciplina ocidentais, marcados pela racionalidade das decisões, a eficácia e as recompensas da vitória após dolorosos sacrifícios. Este espírito, tê-lo-ão adquirido principalmente de ingleses ou franceses, como chefes ou como adversários, nos cenários das duas Guerras Mundiais ou nas punições sofridas aquando de revoltas ou levantamentos contra as potências Ocupantes ou “Protectoras” das suas monarquias.
E que programa politico se propuseram levar a cabo uma vez chegados ao poder? Decerto que, inicialmente (tal como pensavam os mais generosos da ala terceiro-mundista do nosso MFA), procuraram modernizar os seus países, nacionalizando os sectores-chave da economia (petróleo, canais de circulação internacional, empórios de inport-export, etc.), investindo em infraestruturas e na elevação do nível sanitário e educacional da população. Mas, perante as dificuldades, a lassidão do exercício do poder e os constrangimentos externos (tanto de adversários como de concorrentes e mesmo de “amigos”), rapidamente se consagraram sobretudo à tarefa de consolidar o poder próprio do líder e da sua clique através de benefícios concedidos à respectiva base social de apoio (forças armadas, partido único, etnia, tendência religiosa, zona geográfica de origem, etc.), e a perseguir os discordantes e opositores.
A URSS, que ainda no tempo de Lénine havia “metido na gaveta” o internacionalismo típico do movimento operário e passara a encarar os movimentos nacionalistas como potenciais aliados na luta contra o que chamavam de imperialismo capitalista, não perdeu a ocasião para encontrar novos aliados e apoios na região, mediante acordos diplomáticos, fornecimento de armamento e envio de técnicos. Na mesma jogada, colocou-se ao lado dos palestinianos na luta destes contra Israel, abandonando a simpatia que desde há décadas o movimento de retorno à Terra Prometida e a criação de comunidades agrárias (kibutz) suscitara entre o militantismo socialista internacional. Entretanto, entrara-se na “guerra fria” e, dialecticamente, graças também ao peso do lobby judaico americano, os EUA foram-se cada vez mais empenhando num apoio sem falhas a Israel, criando-se ali mais um teatro de confrontação estratégica Leste-Oeste, que já tinha elementos conflituais locais mais do que suficientes para (como aconteceu) o desencadear de sucessivas guerras convencionais – curtas, devido à superioridade sempre demonstrada pelos israelitas – e o avolumar de um contencioso de ódios e exclusões capazes de perdurar por várias gerações.
De facto, tais nacionalismos pouco ou nada trouxeram de benéfico para as populações desses países. Ao menos, com o “cimento” ideológico do anti-semitismo e do anti-ocidentalismo, esses regimes não se digladiaram entre si e os seus desencontros e conflitos puderam ser dirimidos por via de negociações e compromissos (por vezes, logo postos em causa) em que eles são mestres, no âmbito bilateral ou no quadro de instituições internacionais como a Liga Árabe ou a Conferência Islâmica.
Noutros casos – a Argélia, mais que todos –, o bloco de poder pós-colonial resultou de uma aliança, nem sempre estável, entre nacionalistas da burguesia e pequena-burguesia local, intelectuais (alguns residindo durante anos no exílio) e as chefias das forças guerrilheiras vencedoras, para além da representação das diversas identidades étnicas ou religiosas típicas das sociedades tradicionais.
Em qualquer dos casos, depois de se apropriar de uma parte mais ou menos significativa das propriedades e dos atributos simbólicos das anteriores classes dominantes, a nova elite dirigente desses países passou a controlar o fundamental das riquezas económicas geradas internamente e nos negócios com o exterior (por vezes, com os antigos colonizadores), mantendo o grosso do campesinato e do povo urbano entregue à sua sorte, pobreza e emigração.
O fundamentalismo islâmico que, em anos mais recentes, incentiva à Jiahd (guerra santa) contra o Ocidente, seja em Teerão, no Líbano ou na Palestina, também reage contra este tipo de regimes apodrecidos e corrompidos por algumas décadas de poder sem partilha nem tolerância para qualquer oposição.
Escreveu um dia Bertrand de Jouvenel, creio, que “a História é um cemitério de aristocracias”. Esta frase retrata bem o último século vivido na região mas pode sugerir um caminho linear em direcção a um autêntico governo do povo. Sabemos bem que isso não é verdade e que, a repúblicas falhadas, podem seguir-se tiranias ou retornos a teocracias. Eis a ameaça que agora paira sobre as desilusões da Primavera Árabe!
É neste quadro que voltam a incendiar-se as massas humanas na praça Tarhir, no Cairo e outras cidades para apear o presidente Morsi (da ala política da Irmandade Muçulmana), eleito há menos de um ano, coisa que o exército – aparentemente o único corpo ainda integrado e eficiente da sociedade egípcia – realizou em 48 horas.
Estamos aqui perante a clivagem fundamental entre uma sociedade urbana, jovem e modernizada que aspira por liberdade e progresso material, por um lado, e uma maioritária sociedade tradicional, de base camponesa e miserável, que segue as orientações da tradição e as que lhe são ditadas pelo clero religioso, por outro – parecida, aliás, com a situação que também se vive actualmente na Turquia. Neste momento, o exército egípcio funciona como árbitro e mediador do conflito (com algum embaraçado alívio dos países ocidentais…). Mas ninguém pode antecipar como evoluirão as coisas e, em particular, as relações entre o campo político da Irmandade Muçulmana (apesar de tudo, relativamente moderada) e os movimentos guerrilheiros adeptos da Jihad (que não deixarão de contar com apoios externos). Como estaremos daqui a um ano?
JF / 8.Jul.2013
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