Estava esta crónica já escrita, à espera da posse dos ministros remodelados pela proposta Passos-Portas de reentendimento da coligação, quando – como todos os comentadores e agentes políticos – fomos surpreendidos pela comunicação ao país de 10 de Julho do Presidente da República. Mas vamos por partes.
Como fenómeno observável por comentadores e analistas, o tropeção ocorrido na vida política portuguesa nos primeiros dias de Julho foi um case study. A carta de despedida do ministro Gaspar é uma notável peça, reveladora da maneira como funciona um governo e de como um tecnocrata como ele, que não é um político profissional, sai vencido pelas insídias de colegas, pelas resistências institucionais opostas a qualquer mudança mais profunda que se tente fazer e, finalmente, pela própria consciência dos limites das suas capacidades face aos insucessos obtidos em vários domínios decorrentes da actuação tida (sobretudo na economia e no emprego). As cenas da tomada de posse da sua substituta (com um caso de swaps à perna), da “irrevogável” demissão de Paulo Portas, da subsequente declaração ao país de Passos Coelho (“não me demito”) e do atabalhoado processo que se seguiu levou muitos observadores a falarem de “garotices”. Mas, como pertinentemente reagiu o novo colunista do Público João Miguel Tavares, é um erro tratar dessa forma tais comportamentos. Também – a nosso ver – não se trata de “irresponsabilidades”, pois cada uma das declarações e gestos destes principais actores políticos nos encalorados primeiros dias de Julho corresponderam a actos deliberados e racionais no campo de possibilidades de decisão que esses agentes individuais têm à sua disposição. O problema é que essa lógica e essa racionalidade se definem em relação aos interesses de poder próprios de cada um desses actores – sejam individuais, de “grupo” ou partidários – e não, de maneira nenhuma, em relação a um qualquer tipo de “superior interesse nacional”, chavão discursivo com que, não obstante, somos por eles bombardeados a cada passo.
De facto, nessas acções: as informações da conjuntura internacional (económica, diplomática, europeia, etc.) estão presentes “como contexto”; os dados que vão sendo divulgados sobre o andamento da vida económica e financeira do país estão igualmente presentes “como contexto”; as barreiras legais que o Tribunal Constitucional e outras instâncias judiciárias vão erguendo a determinadas medidas decretadas pelo governo são encaradas como “constrangimentos do contexto”; as negociações da “concertação social”, as tomadas de posição dos “parceiros sociais” e os pronunciamentos do Conselho Económico e Social ou do Provedor de Justiça são ainda tomados em conta no quadro da “análise política de situação”; idêntico tratamento é dado aos scores das sondagens de opinião e aos movimentos de protesto nas ruas (cujos líderes decerto estarão sob vigilância dos “serviços de informação” e serão objecto dos seus relatórios secretos); e as tomadas públicas de posição das forças partidárias da oposição são igualmente consideradas como “elementos de análise da situação”, o mesmo acontecendo com as posições, públicas ou ditas com reserva, do Presidente da República. Porém, tendo tudo isto em consideração, as decisões e a argumentação daqueles principais actores políticos são em última instância determinadas pelas exigências momentâneas da luta que travam entre si – e, simultaneamente, contra outros actores que cobiçam ou querem condicionar a sua acção na principal instância de poder de Estado –, com o mínimo de desgaste para a sua sobrevivência futura.
Isto aplica-se ao PSD e ao CDS que há dois anos assumiram a governação, mas igualmente ao PS, como putativo aspirante a tomar parte no próximo governo, que nem esse tempo demorou a considerar esquecidas as responsabilidades do consulado de Sócrates no avolumar da crise e a cortar a hipótese de uma solução de “salvação nacional” com a sua imprudente declaração (mas reveladora do que o move) de que só regressaria ao governo após novas eleições. Este foi um erro de palmatória só explicável pela fragilidade do líder e pelas pressões internas para voltar ao poder a qualquer preço e o mais rapidamente possível, sem o mínimo “exame de consciência” das suas responsabilidades pelas práticas políticas desenvolvidas desde há longos anos. Mas mesmo fora de uma emergência em que só uma “grande coligação” poderia ser resposta, as dificuldades das finanças públicas portugueses exigiriam certamente um pacto entre estas principais forças políticas com validade para duas legislaturas, pelo menos, em que se prosseguissem políticas coerentes em certos domínios-chave como a justiça, os impostos, a segurança social, os serviços públicos, a gestão da dívida ou os equilíbrios orçamentais, cujas leis estruturantes deveriam merecer o consenso partidário, independentemente de quem estivesse no governo ou na oposição.
As reacções bolsistas e “dos mercados” a esta mini-crise governativa de Julho mostraram talvez a muita gente o que se seguirá à convocação de eleições antecipadas, com o inerente adiamento da próxima avaliação da “troika” e congelamento do respectivo cheque, da inevitável “reforma do Estado”, da execução e da preparação do orçamento, de um prolongado governo-de-gestão com as datas do resgate de vultuosos empréstimos a aproximarem-se, etc. – sabendo nós ainda por cima que, de novas eleições (já, ou mais adiante) só sairá uma legitimidade governativa mais abalada devido a uma ainda mais fraca participação eleitoral (modo que resta aos cidadãos para expressarem a sua crítica aos principais partidos políticos), e de novo uma complicada negociação inter-partidária para a formação de um governo e a fixação de um qualquer programa de actuação, que nunca poderá ser muito diferente do actual, vista a envolvente externa.
A “saída democrática” que todos dizem ser o modo de resolução de um impasse político – as eleições –, sabemo-lo de antemão que nada resolve enquanto tivermos este sistema partidário, que é um dos principais responsáveis pela crise actual e tem até agora mostrado ser incapaz de se auto-reformar.
A extrema-esquerda e os sindicatos cumprem o seu papel de crítica e denúncia do agravamento da situação económica em que vivem as categorias mais afectadas pela crise, mas são também responsáveis por muitos bloqueamentos e micro-corporativismos em que é ainda fértil a sociedade portuguesa. De certa maneira, enquadram e canalizam o protesto popular “anti-políticos” que, por exemplo, no Brasil se exprimiu nas manifestações inorgânicas monstras de Junho passado e em outros países europeus tem sido capitalizado por partidos populistas ou de extrema-direita. Mas as soluções para que apontam (como, de resto, em parte, o próprio PS, enquanto partido de oposição) nada ajudam a perceber qual seria a “outra política” que poderia reverter a crise actual – a menos que fosse o empobrecimento radical resultante de uma saída abrupta do Euro, transformando-nos numa espécie de Albânia da Europa ocidental (que aliás já constituiu um modelo ideal para alguns dos ex-maoistas que agora nos governam). Como escreveu Paulo Trigo Pereira (no Público de 7.Julho.2013), julgamos que “Portugal não tem, nem terá proximamente, crescimento económico que sustente simultaneamente o Estado social tal como hoje existe, a regionalização e municipalização no figurino actual, os juros da dívida pública, os encargos com as parcerias publico-privadas e um sector público empresarial que se mantém deficitário”.
Agora, após a intervenção-trombose do Presidente da República, eis-nos numa nova situação de imbróglio político, em patamar superior. De uma assentada, o Presidente Cavaco “entalou” os líderes de três forças políticas que contam para o governo – o que tanto pode ter sido uma acção vingativa de humilhações antigas como uma resposta à presumível larga maioria do país-não-político que já não tem paciência para suportar estas quezílias partidárias e geme sob os efeitos da crise económica. Mas é uma jogada de alto risco, para a qual se podem prever duas saídas, ambas com pesados custos para a população.
A 1ª, mais transparente, seria a de forçar aqueles três partidos a aceitar por um ano um governo de tecnocratas, o qual tentaria alguma renegociação externa para aliviar a austeridade e relançar o crescimento, esperando pelo “milagre” de uma evolução das políticas da Alemanha e da União Europeia mais favoráveis aos países periféricos endividados mas que, ao mesmo tempo, faria o “trabalho sujo” dos novos cortes na despesa pública que aí vêm. Para além da aceitação do Tribunal Constitucional, esta solução precisaria antes de mais da “luz verde” da Assembleia, que só obteria se os maiores partidos entrevissem a possibilidade de “voltar à sua” daqui a um ano, remetendo o ónus das desgraças para esse governo patrocinado por Cavaco Silva. Em contrapartida, este esperaria que nesse prazo os partidos mais perturbados por esta sua intervenção pudessem renovar-se internamento elegendo novas lideranças.
A 2ª, e mais provável, é a que tal proposta seja recusada pelos três partidos do arco da governação e o governo de Passos Coelho peça a demissão, não se mostrando a Assembleia disponível para outras experiências governativas. Neste caso, haveria mesmo eleições a curto prazo, mas com Cavaco Silva em posição de força a responsabilizar os partidos pelos gravosos malefícios que já nos anunciou. Nesta, como na primeira hipótese, o Presidente jogará sobre os efeitos de implosão/renovação que esta crise possa causar no interior dos partidos políticos principais.
Por tudo isto, as previsões actuais terão de ser de pessimismo. A não ser que, por uma “iluminação” fantástica e surpreendente, a “classe política” cortasse 30% nos seus vencimentos e todos os benefícios-de-função, e reduzisse significativamente o número de deputados, vereadores, assessores e outros estipendiados pelo orçamento público, para que pudesse apresentar-se perante o povo com alguma credibilidade no pedido de sacrifícios.
JF / 11.Jul.2013
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