Já há tempos escrevi sobre isto, mas a oportunidade talvez justifique a insistência.
Nos últimos tempos, têm surgido propostas no interior dos maiores partidos ou mesmo por iniciativa de cidadãos não-inscritos exigindo maior “abertura” das estruturas partidárias e dos processos electivos, como meio de obviar ao fosso cada vez maior que se está cavando (como diria Sócrates) entre os cidadãos e a classe política. Esgotada a época dos “estados-gerais”, dos “fóruns” abertos à sociedade civil ou da caça-aos-independentes, fala-se agora em eleger os líderes partidários e os candidatos a deputados em “primárias” em que as pessoas comuns também pudessem participar. Alvitra-se que petições subscritas por um número significativo de cidadãos possam ser levadas a votação em congresso e que um simples eleitor possa também votar em referendos partidários vinculativos sobre questões programáticas ou de orientação política geral. Tudo isto se traduz, no fundo, na criação de uma categoria de “simpatizantes” partidários, com direitos codificados de participação na vida interna destas formações (mas sem as obrigações e constrangimentos da filiação).
Outra classe de propostas incide, antes, sobre a responsabilização dos decisores eleitos. Alguns falam mesmo de responsabilidade criminal perante actos de governação que se vêm a revelar danosos para a comunidade (isto, sempre no quadro dos procedimentos democráticos). Outros exigem que os programas eleitorais dos partidos candidatos detalhem os custos das “promessas” e os seus calendários de execução. O que se aparenta à criação de “regras de ouro” a inscrever nas leis fundamentais quanto aos défices orçamentais ou ao volume de dívida pública legalmente admissíveis. Trata-se aqui de combater a tendência à demagogia e às promessas irresponsáveis das campanhas eleitorais e da “gestão da coisa pública”.
Deixemos de lado a questão da exequibilidade prática destas propostas (ou até mesmo da possibilidade do torpedeamento intencional de um partido por forças adversárias), que juristas e espíritos cépticos saberão descortinar e talvez resolver. Mas afirmemos a nossa convicção: a criação de novas regras é importante mas não suficiente para uma regeneração da vida política democrática.
A cultura política é algo que não se decreta: constata-se, analisa-se. Podem tomar-se medidas legais que contrariem ou incentivem uma dada cultura política; mas, sobretudo, esta depende da percepção que os próprios actores políticos tenham do problema e da sua vontade para prosseguir, reforçando-a, ou para alterar os comportamentos dominantes e tentar uma sua reformulação. Três exemplos: quando a social-democracia histórica decidiu aceitar a via democrática, eleitoral, de acesso ao poder, inaugurou um nova cultura política para a esquerda do século XX; os movimentos fascistas gerados no caos do final da Grande Guerra criaram uma nova cultura política, enaltecedora da força, do chefe e de uma nação mitificada; e quando os comunistas, sob Estáline, se tornaram patriotas mas mantiveram a sua crença na superioridade teórica do marxismo-leninismo, inventaram uma cultura política dúplice em que o acatamento das regras do Estado de direito democrático e a tomada do poder por um exército guerrilheiro eram apenas duas estratégias possíveis.
Assim, com a acentuada perda de credibilidade dos partidos que têm monopolizado a representação dos cidadãos nas últimas décadas – por desgaste ideológico, corrupção, demagogia eleitoral e responsabilidades na actual crise económica e financeira do Estado –, é absolutamente indispensável que aconteça uma rotura com esta cultura política. Ou por uma revisão fundamental operada por algum ou alguns dos partidos existentes. Ou pela emergência de novas forças políticas. Tenha-se consciência de que serão sempre processos com elevados riscos: no primeiro caso, por a auto-regeneração ser difícil e dolorosa em si mesma e, caso falhe, provocar uma desafecção popular ainda maior e mais perigosa; no segundo, porque, a partir do nada e em conjuntura de desespero, facilmente se formam movimentos manipuláveis por líderes carismáticos ou minorias activas capazes de conduzir massas consideráveis para projectos populistas-autoritários ou aventureiros, e também porque, sem quadros nem referências, os novos partidos estão mais facilmente sujeitos à chegada de arrivistas e vira-casacas sem escrúpulos.
Imaginemos então o que poderia ser, em Portugal, algumas das principais bases de regeneração da cultura política a adoptar por uma formação ou movimento que quisesse efectivamente trazer algo de novo, que reabilitasse a acção partidária e fosse capaz de mobilizar as forças mais interessantes existentes na sociedade.
Discutam-se então os dez pressupostos seguintes:
1- Independentemente das críticas que se lhes façam, os adversários políticos devem ser respeitados, partindo-se do princípio da sua boa-fé e, sempre que possível, discutindo-se com eles na base de uma diferença de opiniões. Neste sentido, a causa “progressista” não deveria nunca assumir-se como moralmente superior à “conservadora”, nem as “maiorias” superiores às “minorias”. Nas campanhas eleitorais e outros momentos de informação pública, privilegiar sempre a apresentação e discussão das próprias propostas, recusando fixar-se na crítica sistemática dos outros partidos.
2- Salvo no caso de situações de tirania ou ditadura sem condições mínimas de liberdade, não deveria haver agendas escondidas ou secretas na condução da acção política. Num regime de liberdade, a provocação, a contra-informação, o ataque pessoal, a informação tendenciosa ou a argumentação sofística são práticas perigosas e potencialmente auto-destrutivas que não devem ser aceites para defender uma qualquer boa causa.
3- Numa mobilização que ponha em movimento grandes massas em protestos ou por objectivos considerados justos, dirigir essas acções escrupulosamente contra os responsáveis da situação iníqua que se pretende remover, sem nunca atingir por “efeitos colaterais” terceiras pessoas, neutras ou alheias ao conflito (como acontece em certas greves, movimentos de desobediência civil, etc.). Igualmente devem ser evitados os actos de pressão moral em que os próprios se vitimizam para forçar a obtenção de um determinado objectivo (greves-de-fome, etc.)
4- Embora tais regras cautelares não sejam suficientes, deveria haver o escrúpulo de manter normas de claras de incompatibilidade entre o exercício de cargos de responsabilidade directiva nas agremiações políticas e nas associações da sociedade civil, bem como na administração de grandes empresas, sobretudo após o desempenho de altos cargos públicos.
5- O funcionamento interno de uma qualquer formação política tem de ser democrático e transparente, com formas de controlo dos representantes pelos membros de base, mandatos temporários e revogáveis, definição clara de incompatibilidades e meios de financiamento verificáveis por qualquer cidadão. Têm de ser aplicadas medidas disciplinares rigorosas e rápidas contra quaisquer abusos de poder, tentativas de corrupção ou comportamentos delituosos por parte de seus membros.
6- Quando eleitos ou nomeados para o exercício de qualquer cargo político, todos os cidadãos devem declinar receber remunerações públicas que sejam superiores ao último rendimento de trabalho por eles auferido.
7- Quando um movimento, uma campanha ou uma causa consegue atingir os objectivos a que se propunha, deve reconhecê-lo honestamente e, em princípio, dissolver-se, sem a tentação (conservadora) de se perpetuar ou travestir. Se, porém, nessa situação passou a exercer poder sobre terceiros, deveria imediatamente confrontar-se com os seus objectivos de partida para verificar se não se desviou durante a trajectória, por motivo de interesses criados ou de efeitos perversos não controlados.
8- Nas instâncias de representação e decisão pública em que uma formação partidária esteja presente (parlamento, municípios, referendos, etc.), deve votar e apoiar todas as medidas que concorram, mesmo que apenas parcialmente, para os seus próprios objectivos programáticos, quaisquer que sejam os proponentes das ditas medidas – ou abster-se, se houver reservas fundadas ou desconhecimento de soluções alternativas –, reservando os “votos contra” para apenas se manifestar em oposição a decisões vistas como gravosas para as liberdades públicas.
9- Os programas de candidatura eleitoral devem ser claros, realistas e concretizados com objectivos (quanto possível) quantificados e calendarizados. E no final de cada mandato electivo, os dirigentes devem apresentar publicamente aos seus eleitores ou mandantes os resultados alcançados pelo seu desempenho, sujeitando-se à sua avaliação.
10- Dada a petrificação ideológica e política do espectro partidário actual, qualquer nova (ou profundamente renovada) formação teria de posicionar-se politicamente “ao centro”, procurando a equidistância possível entre os valores mais tradicionalmente associados à direita (conservadorismo social, liberalismo económico, moderação) e à esquerda (mudança, republicanismo, causas sociais), para ir inventando o seu próprio caminho. Mas seriam de admitir alianças com outros partidos com base em eventuais convergências programáticas pontuais ou superiores interesses da colectividade nacional, sem nunca comprometer a sua autonomia de decisão própria.
Naturalmente que isto são linhas de conduta que não bastam para definir um programa de acção política com vontade de alterar o actual modo de relacionamento da esfera política com a sociedade – ou, dito de outro modo, de reconciliar a política com os cidadãos. Mas seriam regras estruturantes fundamentais sobre as quais as pessoas deviam estar de acordo e esforçarem-se quotidianamente por as aplicar na prática. Uma espécie de “código de conduta ética” para quem queira envolver-se na acção política. E só então seria o momento de discutir as bases propriamente programáticas relativas ao exercício das liberdades, ao reconhecimento da organização da vida colectiva, à economia que a sustenta, à realização da justiça, à indispensável solidariedade social, ao respeito pela natureza, à criação e fruição culturais, às relações internacionais e à salvaguarda da segurança e da paz, etc.
Como pensará talvez o sociólogo-filósofo Baumann, a economia que domina e marca os ritmos tornou-se hoje mundial, e as sociedades vão caminhando no mesmo sentido (embora de maneira mais lenta e complexa), enquanto que os sistemas políticos permanecem estritamente nacionais, com os seus peculiares esquemas partidários, processos eleitorais e movimentos de opinião com impacto na conjuntura. Mas essa é uma dificuldade que as novas gerações terão de enfrentar e vencer.
JF / 27.Jun.2013
(PS-Este é ainda um contributo suscitado pelo “Manifesto para uma Revolução Cívica” lançado no blogue “Socialismocultura”.)
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