“Não há democracia sem partidos!”. “Por vezes, os partidos são os coveiros da democracia.”
As duas afirmações são verdadeiras, mas é necessário circunscrever o alcance de cada uma delas.
Em relação à primeira, ela é constantemente martelada pelos partidos políticos existentes, sempre como forma de legitimação para tudo o que fazem, e em reacção a qualquer crítica que os ponha em causa, aos seus privilégios e ao pessoal político que os habita.
Esse tipo de reacção é, desde logo, suspeita, porque revela que se querem pôr ao abrigo de toda a crítica, procurando empurrar os críticos para o campo anti-democrático. Mas também é verdade que os ataques à “partidocracia” têm muitas vezes a intenção escondida de minar os fundamentos de um governo do povo e são destilados por simpatizantes do salazarismo ou de outros regimes autoritários que acham que o governo dos povos é coisa exclusiva de alguma elite (monárquica, monopartidária, oligárquica, cesarista, militar, teocrática, etc.).
É verdade que um governo de maioria é apenas uma fórmula prática, instrumental e periodicamente aferível, do conceito democrático de governo do povo e pode perfeitamente revelar-se como demagógico e populista, despótico (para as minorias) ou opressor de povos terceiros. Neste caso, pode manter todos os pergaminhos da legalidade, mas perde necessariamente a dignidade e a legitimidade da sua existência como governo do povo.
É fácil distinguir um governo legal e legítimo, de um governo ilegítimo, ainda que cumprindo todas as normas legais? Não é! Hitler acedeu ao poder por via legal, eleitoral. E o Estado Novo foi implantado por cima de um golpe de força militar, consentido pela apatia de uma população farta de desordem na rua, mas tendo o cuidado de se legalizar, inclusive através de processo referendário (que hoje não seria reconhecido internacionalmente mas revela bem o preciosismo jurídico do seu mentor). Porém, não havia a República – tão aclamada pelo povo urbano de Lisboa e Porto – saído de um semelhante golpe-de-força? Hoje, o que, neste ponto, nos pode ajudar é a evolução entretanto ocorrida na comunidade internacional, muito mais exigente na verificação dos processos referendários ou eleitorais fantoches, embora (realismo político oblige) ainda há poucos anos complacente para com os regimes de “democracia popular” do bloco de Leste e reservando as suas virtudes democráticas para o ténue cordão sanitário posto à volta de figuras como Franco ou Pinochet.
Também é verdade que um governo democrático legítimo tem o direito (e mesmo o dever) de se defender dos ataques – frontais ou mais subtis – de que seja alvo. Pode mesmo ser a expressão da vontade popular maioritária que esteja em risco de ser violada. Mas aqui começa a difícil destrinça entre onde acaba o indispensável respeito pelas regras formais e onde começa a luta política intestina, entre forças ou facções partidárias – tudo sob fundo de manipulação informativa, ontem realizada sobretudo pelas campanhas de imprensa e pelas técnicas de agit-prop, hoje de forma muito mais elaborada e insidiosa por via da omnipresente “comunicação social”. Em final de contas, é cada qual – cidadão individual, força social ou partido político – que tem de determinar-se em cada momento perante essa dúvida e essa questão; uns, conscientemente, devendo assumir todas as responsabilidades e os ónus das avaliações incorrectas; outros, geralmente a maioria, inconscientes das principais dimensões do problema, permitindo a acção das “minorias activas” ou deixando-se enganar pelos “cantos de sereias” e só tarde demais vindo a perceber e a lamentar o logro em que se deixaram cair.
Digamos então que um governo de maioria é apenas uma condição sine qua non para que exista um regime de liberdade política, tal como o é a observância do império da lei, sem o qual entramos no reino do arbitrário, seja na administração civil, seja na deliberação judicial. Mas esse tal governo de maioria pode ser organizado de diversas maneiras – mais ou menos representativas ou delegadas; mais ou menos directamente exercidas pelos cidadãos. A organização do poder político nacional (geralmente plasmada num texto constitucional) é, pois, já, o resultado de um processo político que tendencialmente deveria ser consensual, e não um dado de facto como geralmente é apresentado pelos epígonos do constitucionalismo ou pelos meros agentes que pilotam e manipulam as suas regras segundo os seus melhores interesses.
Juntemos ainda uma outra ideia directriz. Se o governo deve necessariamente sair de uma base maioritária de escrutínio popular, o parlamento pode não ser o lugar central do poder político de que aquele emana. A representação parlamentar da pluralidade de opiniões existentes no eleitorado é insubstituível, mas ela poderia ser temperada pela existência de um outro órgão, não uma segunda câmara electiva (que só complicaria a mecânica legislativa), mas um órgão de conselho e reflexão (um Conselho da República constituído por personalidade de grande reputação pessoal, tipo “colégio de sábios”) capaz de ser um eficaz contraponto às dinâmicas mais emocionais e partidárias do debate parlamentar. Por exemplo, examinando obrigatoriamente certas leis mais importantes e, em caso de parecer negativo, obrigando-as a um novo exame pelo parlamento, com quorum de aprovação mais exigente. É uma ideia nunca experimentada mas que não deve, por isso, deixar de ser ponderada, se se quer atalhar aos males conhecidos do actual sistema político.
“Em certas circunstâncias, os partidos são os coveiros do regime democrático”. Tivemos em Portugal, sob o constitucionalismo monárquico e sob a República parlamentar, dois exemplos vivos desta asserção. No primeiro caso, a despeito de algum surto de progresso e modernização e do papel que a instituição monárquica ainda exercia em épocas que cada vez menos o consentiam, o “rotativismo” partidário terá contribuído decisivamente para a erosão deste regime liberal, facilitando a ascensão do republicanismo e do movimento operário, que prometiam abatê-lo revolucionariamente. No segundo caso, um pouco ao modo mexicano mas sem os modos dominantes do PRI, o partidarismo exacerbado e o parlamentarismo manobreiro das formações republicanas liquidaram em poucos anos o respeito público por estas instituições.
É um pouco, essa, a sensação de muitos ao fim de quarenta anos do regime democrático saído do 25 de Abril, agudizada por já um quinquénio de efeitos paralisantes da crise da economia e das finanças do Estado, com um empobrecimento rápido e perda daquilo que, para vastas camadas da população, tinha sido adquirido como se de um direito natural se tratasse. Falamos de poder de compra, mas também de vários direitos tangíveis, alheados dos deveres correspondentes e desconhecedores das condições em que os mesmos nos eram proporcionados.
O regime de liberdade política em que (felizmente) temos vivido não subsiste por si só. Há hoje condições externas – se não mais constrangedoras do que no passado, pelo menos mais difíceis de compreender – que o condicionam grandemente, mormente no plano económico e financeiro. Mas existe um segundo forte condicionamento que é, em grande medida, novo em relação ao que era há um século atrás. Trata-se das atitudes sociais da maioria da população face ao seu nível económico, de bem-estar e de direitos concretos usufruídos: aquilo a que geralmente se vem chamando o “Estado social”, mas que seria mais bem traduzido pelo conceito de contrato social (ou “laço social”) de longa duração, interclassista e intergeracional. Com este chavão queremos referir-nos ao sistema institucional de apoio aos mais necessitados e de previdência para a velhice e contra o acidente, bem como àquele que assegure condições mínimas de igualdade (de dignidade, de acesso e de oportunidades) entre os cidadãos, em termos substantivos e não apenas em termos de igualdade jurídica perante a lei. É aqui o caso da solidariedade humana, da saúde e da escolaridade. Mas: como funciona, quem o paga, ou de que modo se usufrui – são tudo questões em aberto e que cabe à sociedade definir, pelo mais largo consenso possível. Uma coisa, porém, nos parece clara: naquilo em que o Estado – neste caso, através da responsabilidade do governo – for chamado a intervir em tal domínio, só deveria fazê-lo enquanto fiel depositário da confiança da sociedade para gerir em seu nome e no seu interesse tais recursos financeiros, meios e processos, e não essencialmente como se se tratasse de mais uma tarefa da administração pública governamental.
Neste quadro, as atitudes dos cidadãos – as suas percepções, concepções e comportamentos práticos – são uma variável decisiva. Há mais de dez anos, em inquérito internacional que realizei em projecto de investigação científica, os portugueses distinguiam-se notoriamente de todos os outros por serem os únicos que, por confortável maioria, diziam preferir trabalhar por conta própria e, ao mesmo tempo, entre um patrão privado e um emprego público, preferiam claramente este último. Esta “esquizofrenia” opinativa não podia deixar de ter consequências nas opções práticas de cada um perante a escolha de uma profissão ou a procura de um emprego. Talvez que a velha “chico-espertice” popular que afirmava que “dinheiro, há lá muito; é preciso é saber ir buscá-lo”, seja assim compaginável com a tríade de alternativas com que a população está enfrentando a terrível crise económica que agora nos assola: a resignação e a solidariedade entre próximos; a recusa e o desembaraço individual, sobretudo pela via da emigração; e a revolta, mais ou menos enquadrada. O grande problema é, pois, o de como superar este horizonte de alternativas em favor de um outro em que se corrijam alguns aspectos daquelas atitudes sociais dominantes e simultaneamente se inaugure um outro sistema de relação dos cidadãos ao poder político, com mais controlo e realismo.
Há quem seja totalmente adepto de um regime de liberdade política e, ao mesmo tempo, abomine a existência dos partidos, vistos como intermediários aproveitadores que se apropriam do direito de representação popular e governam em nome do povo mas em proveito próprio. Isto é verdade, em grande medida. Mas também não é concebível um regime de liberdade unanimista; e a formação de correntes de opinião é inevitável e saudável para o regime de liberdade, desde que se observem certos consensos e respeitem certos limites (e é isso que actualmente não parece estar a acontecer, em matérias de interesse nacional e em questões de corrupção ou de confusão/conluios de interesses públicos e privados). A representação pulverizada dos interesses e das vontades locais, além de mais sujeita ao fenómeno do caciquismo, conduz geralmente a situações de ingovernabilidade no plano nacional. Daí a funcionalidade da existência de correntes estruturadas e estáveis de polarização das opiniões políticas – que são os “partidos”, qualquer que seja o nome pelo qual os designemos. Mas, que tipo de partidos diferentes dos actuais são possíveis e desejáveis, é outra questão crucial que está por resolver.
JF / 15.Jun.2013
(PS-Este é um outro contributo suscitado pelo “Manifesto para uma Revolução Cívica” lançado no blogue “Socialismocultura”. Sugiro também a leitura do artigo de opinião de Paulo Trigo Pereira ontem saído no Público, um dos poucos comentadores que actualmente escreve coisas interessantes que qualquer um pode ler.)
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