No termo das ansiedades pelos resultados eleitorais
franceses e em plenas rotinas comemorativas das memórias abrilistas e
“primeiro-maioistas” de uma parte dos portugueses, soube bem ler vários dos
textos de opinião publicados na imprensa. O equilíbrio, a lucidez e a
racionalidade estiveram presentes nas páginas do Diário de Notícias de 26 de Abril e, muito particularmente, na
edição do Público do mesmo dia, colocando-se
a contrario das críticas de
abaixamento geral da qualidade que eu próprio havia julgado detectar há algum
tempo atrás.
Manuel Carvalho, em «Confortáveis na placidez de
Abril», dá perfeitamente conta deste sentimento, ao não calar nenhuma das nossas
insuficiências estruturais – da política à economia ou às atitudes sociais – e,
ao mesmo tempo, ao assinalar o contraste com as exacerbações e receios que
pululam à nossa volta. Sim, esta “placidez” compara com o comportamento
daqueles que se eximem de exprimir a sua opinião política (dado que todos temos
uma, seja ela qual for) porque, no fundo, estão confiantes no funcionamento “do
sistema”; com ou sem a sua participação, sabem como conduzir-se e planear a
perseguição dos seus objectivos próprios ou a defesa dos seus interesses mais
directos – como Roma dormia descansada quando os seus centuriões velavam pela
guarda das províncias do império.
Porém – porém!... –, vale a pena não esquecer três
coisas: é muitas vezes em plena paz de auto-contemplação que rebentam borrascas
que a todos apanham desprevenidos. Optimismo não falta aos actuais porta-vozes
governamentais e de Belém não cessam as mensagens de reforço da auto-estima
nacional, mas o turismo (que tanta animação trouxe aos centros das nossas principais
cidades) é uma flor frágil que se quebra ou seca com facilidade e as empresas
tecnológicas e exportadoras com que procuramos relançar a nossa base produtiva
estão sujeitas às mais instáveis condições de financiamento e endividamento
externo – não esquecendo o lastro pesadíssimo das nossas classes pobres, que
sofrem directamente essa condição e se constituem como assistidos perpétuos do
Estado-providência (sem que todavia este constitua aliciante bastante para
atrair maciçamente outros dos mais desgraçados do planeta, que tentam nos
países ricos da Europa ou nos Estados Unidos a fuga à sua precária ou miserável
situação). Em segundo lugar, suspeita-se que muito da actual aparência de
consenso em torno do nosso Estado-social-de-direito-democrático possa ser
meramente conjuntural e também ilusória: a auto-congratulação dos sobreviventes
do “abrilismo” pode mostrar um genuino afecto e superação das clivagens
passadas, mas mantêm-se os sinais e a memória da incompatibilidade absoluta
entre os adeptos de um Estado-Leviatã de essência ditatorial, ainda que
compreensivo e temperado nas suas concretizações (além disso, congregador de
inúmeras boas-vontades e justificações sociais) e, por outro lado, aqueles que
não cedem nos valores da liberdade e na procura de justiça, ainda que tais
desígnios tenham de ser condicionados e sujeitos ao escrutínio do
princípio-da-realidade e das condições históricas existentes. (Ontem, este
enfrentamento punha-se em relação ao conflito Leste-Oeste, ainda que este fosse
perturbado e desfocado pelos interesses próprios de alguns poderes dominantes;
hoje, ele pôr-se-á perante novos confrontos civilizacionais, com desafios
tecnológicos e económicos ainda mal percebidos e modos de acção política
completamente fora do quadro de normas, valores e referências a que os últimos
dois ou três séculos nos haviam habituado). E em terceiro lugar importa não
esquecer que o “país político” é ainda (ou já) uma minoria da população
residente: de facto, a maioria situa-se “à margem” dos problemas que afectam a
nossa sociedade (ainda que por desfastio compareça nas assembleias de voto),
seja porque as pessoas se fixam quase exclusivamente no âmbito inter-individual
onde podem pesar e ser reconhecidas, seja porque se encontram desimplicadas, social ou culturalmente.
Igualmente interessante (embora muito mais focada e
especializada) é a perspectiva que nos é dada na mesma edição daquele jornal por
um texto de João Moreira Rato intitulado «A importância de criar uma dinâmica
positiva para a dívida».Tratando-se, sem dúvida, de uma das dificuldades
estruturais que pesam sobre a sociedade portuguesa, tal questão investe
simultaneamente o papel e a performance
do Estado (insuficiente para uns, excessivo para outros, mas sempre tradicionalmente
deficiente) e os termos da nossa relação com o exterior, hoje absolutamente
determinante para a satisfação da população e sustentação do seu futuro.
O artigo «As estatísticas oficiais e a nova ciência
de dados», do professor Pedro Simões Coelho (da Universidade Nova de Lisboa),
alerta-nos de maneira muito judiciosa para os problemas que estão a ocorrer
nesta área. Escreve ele que «os métodos tradicionais que suportavam as
operações estatísticas (largamente baseadas em inquéritos) apresentam
limitações crescentes que se prendem com as cada vez maiores taxas de não-resposta
a inquéritos, com a necessidade de aliviar o esforço que é exigido a cidadãos e
empresas ao participar nestas operações, com a falta de flexibilidade das
mesmas, com os elevados custos que estas acarretam». Pessoalmente, como
sociólogo, já há anos eu pressentira estas dificuldades. Agora, quando no
espaço público se discute fundamentalmente com base em dados estatísticos e em
sondagens de previsão (altamente susceptíveis a “manipulações”, precisamente
por causa da sua aparente objectividade), o problema é ainda mais relevante,
afirmando este autor que urge «uma dramática alteração na produção estatística,
que envolve todas as etapas do processo, desde a recolha de dados até à
disseminação da informação», apostando ele numa maior utilização de dados
administrativos e em outras técnicas derivadas da informatização que a todos
nos constrange.
Paulo Ferrero (do Forum Cidadania Lx), assina um
texto acerca da coerência urbana ameaçada no caso de um novo plano municipal em
zona histórica da capital – «Ainda e de novo a Praça-Mesquita da Mouraria» –
onde, com fundamento, se insurge contra aqueles que querem desfigurar uma
«cidade consolidada, uma cidade que […] não precisa nem de recriações nem de
rasgos de autor ou de rasgões que o firam para sempre».
Vale ainda a pena encarar com espírito de análise
crítica a sinópse que o mesmo jornal fez (a páginas 24) dos programas
eleitorais com que Emmanuel Macron e Marine Le Pen se vão apresentar à 2ª volta
das eleições para a presidência da república de França. Ao olhar para tais
programas prometidos, o cidadão comum poderá ver principalmente diferenças quantitativas para o próximo quinquénio:
Le Pen promete taxar certas empresas e importações para se “consumir mais
francês”, reduzir em 10% os três escalões mais baixos do IRS, limitar a 10 mil
por ano o número de novos imigrantes, contratar 15 mil polícias e construir
prisões para mais 40 mil reclusos; Macron anuncia 50 mil milhões de Euros de
investimento público, poupanças de 60 mil milhões na despesa do Estado, reduzir
o número de alunos por turma e estimular materialmente os professores, aumentar
o orçamento da defesa para 2% do PIB, contratar mais 10 mil polícias e criar 15
mil novas vagas nas prisões. Evidencia-se que ambos vão actuar sobre a segurança e sobre o reforço dos controlos
fronteiriços. Mas é sobre a orientação
política de cada um destes candidatos que se joga efectivamente o destino a
curto prazo da França e da Europa. Entre o explicitado e o não-dito, percebe-se
que a União Europeia e a preservação do eixo Paris-Berlim estão no âmago da
proposta de Macron (outra coisa será ver em que condições partidárias e
internacionais ela poderá ser passada à prática), enquanto a dessolidarização
em relação à UE, o proteccionismo e as ambiguidades relativamente à futura
política externa francesa (NATO, Rússia, EUA, francofonia, etc.) marcam decisivamente
o discurso da senhora Le Pen. Já se adivinha quem será o vencedor desta
contenda, ainda que a indicação pró-abstenção do esquerdista e “soberanista”
Mélanchon venha a causar amargos de boca a muita gente. Mas, para além das
insuperáveis dificuldades que o regime constitucional e o panorama partidário
francês venham a criar após as eleições legislativas de Junho, é de realçar o
posicionamento centrista e social-liberal
do candidato moderado – talvez a única posição racional no meio da esquizofrenia
geral que parece atingir aquele país –, bem como a ruptura realista da sua proposta de reduzir em um terço o número de
deputados e senadores, e limitar a um máximo de três o número de mandatos
eleitorais. Pode parecer pouco mas, para quem conhece a cultura política
francesa, será certamente interpretado como um passo na boa direcção para a
regeneração dos anquilosados processos que, em geral, estão atingindo todos os
regimes democráticos nesta época de globalização.
Finalizando, em tom de polémica, refiro o programa
passado no mesmo dia 26 na RDP1 «O Amor É», com Júlio Machado Vez e Inês Maria
Menezes. O tema do dia prendia-se com a repressão sofrida por um homossexual em
país de cultura islâmica. Naturalmente, seria de verberar tal procedimento, mas
daí a aproveitar a deixa para mais uma acção de propaganda desta “causa
fracturante” vai um enorme passo. Em geral, foram as Esquerdas dos países mais
ricos que, à falta de operários para mobilizar contra o patronato, enveredaram
pela exploração dos direitos ditos de terceira geração, sem se preocuparem com
o facto de estes nada dizerem ou mesmo ofenderem os sentimentos da grande
maioria das populações do globo, na América Latina, na Ásia e na África, com
culturas, religiões e modos de vida bem distintos. Julgo que a “máxima
universalização possível” foi atingida com a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, em 1948, na conjuntura especial do pós-guerra que então se vivia. Em
tal documento se proclama a inviolabilidade da vida humana, a igualdade civil,
o direito a uma pátria nacional, à liberdade de pensamento e expressão, de movimentação,
também de religião e de constituição de sindicatos e várias outras garantias
que os instituintes acharam que deviam fazer parte do património comum da
humanidade. Sabemos como mesmo esta carta de direitos fundamentais encontra
ainda hoje dificuldades para ser razoavelmente observada. Por isso, Machado Vaz
poderá defender as ideias que quiser (ainda que fossem fascistas ou
bolchevistas, embora estas últimas há tempo que circulam com rédea livre) mas
faria melhor em prescindir do qualificativo de Professor com que é publicamente
apresentado. Ou acha que é incontestavelmente a Ciência que dita as suas
tomadas de posição?
JF / 28.Abr.2017