Segundo alguns, nos anos de 1974 a 1986 ocorreram
mudanças que passaram na altura como a factualidade do dia-a-dia que os
noticiários nos trazem mas que, à distância, se podem considerar que foram
decisivas para construir o mundo que actualmente existe, com todas as suas
espectacularidades, dificuldades e interrogações.
Em 1974, a mudança de regime em Portugal deu algumas
dores de cabeça aos governantes de Washington. A “utopia” dos militares
revolucionários – pensando aplicar em Portugal o que tinham aprendido em África, como sublinhou Eduardo Lourenço –
acabou por ser de curta duração, embora tivesse deixado vestígios numa
extrema-esquerda aguerrida mas muito dividida ideologicamente. Em breve, porém,
os líderes ocidentais puderam ficar apaziguados com o rumo democrático aqui
seguido a partir de 1976. É que se estava em plena “guerra fria”, com quedas e
mudanças súbitas de sinal contrário, cujo equilíbrio final estava longe de ser
perceptível. Em 1973, os militares haviam tomado o poder no Chile e Pinochet
inaugurava uma ditadura sangrenta que duraria décadas, enquanto os israelitas
ganhavam mais uma guerra aos países árabes (a chamada do Ion Kipur) sem que os
golpes terroristas dos grupos palestinianos abrandassem (bombismo, desvio de
aviões, reféns, etc.). Ainda em 1974, os coronéis gregos devolvem a governação
aos partidos, mas em 74-75 são as colónias portuguesas de África tornadas
países independentes que se inclinam notoriamente para o lado do Bloco de Leste
e Cuba mete tropas em Angola e na Etiópia, onde o velho imperador Hailé Selassié
fora deposto. São anos maus para os Estados Unidos, com a forçada demissão do
presidente Nixon, a queda militar de Saigão e do Vietnam do Sul perante o Norte
(pró-“soviéticos”), e o triunfo dos khmers
vermelhos (pró-chineses) no Cambodja. Contraditoriamente, este avanço geoestratégico
do Bloco de Leste só foi contido em Timor-Leste por uma invasão militar indonésia
(que aí realizou uma ocupação opressiva e prolongada). E na América Latina eram
regimes militares que se auto-justificavam fazendo frente às ameaças
guerrilheiras esquerdistas (rurais ou urbanas), como no Brasil, no Uruguai (73)
ou em 1976 na Argentina; mas três anos mais tarde os combatentes sandinistas
tomam o poder na Nicarágua. Entretanto, a Europa mostrava ser uma zona
relativamente neutralizada, com algum apaziguamento Leste-Oeste (selado pela
Acta Final de Helsínquia em 1975) e uma transição da ditadura espanhola para um
regime democrático sem mais derramamentos de sangue. Apesar disto, mantinham-se
instalados em tais regimes pluralistas forças partidárias e sindicais fortemente
alinhadas com Moscovo e existiam franjas extremistas (sobretudo à esquerda) que
não hesitavam no recurso a formas de oposição armada (em Espanha, na Irlanda,
Itália, Alemanha, França e até em Portugal).
No plano da economia mundial, observavam-se os
efeitos de uma subida acentuada dos preços do petróleo, impulsionada pelo
cartel da OPEP e que começaram a proporcionar grandes recursos financeiros aos
países produtores do Médio-Oriente, ao mesmo tempo que as economias dos países
industrializados ocidentais entravam num período de fraco crescimento e de aceleração
dos preços dos produtos (estagflação), crise essa que fez aumentar os níveis do
desemprego, já de si pressionados pelos progressos tecnológicos da automatização
de certos processos de produção industrial, nos quais a Alemanha e o Japão (os
vencidos de 1945) se distinguiam, beneficiando da dispensa de pesados gastos
militares. E aqui vem entroncar a crucial alteração política ocorrida entre
1976 e 1978 na China, com o afastamento dos supostos radicais herdeiros de Mao Tse-Tung
e a vinda ao poder dos comunistas pragmáticos liderados por Deng Xiao-Ping que
estabelecem uma nova orientação da política económica do país, essencialmente
concorrencial, exportadora e capitalista, mas sempre sob o controlo político monopolista
do partido comunista.
Porém, não menos importante e significativa foi a
atitude dos Estados Unidos perante essa reorientação, provavelmente ditada em
primeira mão pela intenção de agudizar as relações entre Pequim e Moscovo (ideologicamente
desavindos e que se confrontavam, por interposta pessoa, na península indochinesa)
e de enfraquecer a capacidade deste último, um país-continente que desafiava os
americanos, cara a cara, nos planos estratégico, militar e espacial. Com
efeito, com a concordância dos ocidentais, já em 1971 a República Popular da
China tomara o lugar de membro permanente no Conselho de Segurança da ONU que
até então fora ocupado pelo regime nacionalista da Formosa, sendo-lhe assim
reconhecido o estatuto de grande potência (com armas nucleares desde 1967); no
ano seguinte, o presidente Nixon fizera uma surpreendente visita a Pequim,
normalizando-se as relações diplomáticas entre os dois países; e as trocas
económicas com o Ocidente capitalista foram-se desenvolvendo, com algum papel
particular da França mas sempre com a “luz verde” americana, culminando com o
estabelecimento de um acordo comercial entre a China e a CEE em 1978, mais as
negociações sobre o retorno à pátria chinesa dos enclaves de Hong-Kong e de
Macau, sob o regime dito de “um país, dois sistemas”.
Nestes termos, ao findar da década de 1970, podemos
considerar que os Estados Unidos continuavam a sustentar o seu poderio
económico e geopolítico mundial forjado na II Guerra Mundial, liderando a
coligação de países democráticos do Ocidente (e, em particular, a aliança da
NATO), mas que perderam nesse decénio importantes posições para o Bloco
adverso: geograficamente, no Sueste Asiático e em África; politicamente, ao ver
consolidado um ligame de facto existente entre aquele Bloco e o movimento dos
países não-alinhados do “3º Mundo”; eticamente, ao apoiar vários regimes
ditatoriais na América Latina; e, no seu próprio campo, ao constatar a
afirmação de uma tendência “neutralista” na Europa (com o “soberanismo”
tradicional da França, a öst-politk do chanceler alemão Willy Brandt, as
rivalidades inter-nações e as liberalidades do seu pluralismo político). Por
seu lado, o Bloco Socialista de Leste registava os correspondentes avanços
geoestratégicos em África e Sueste Asiático, mantinha influências no Industão,
na Europa e nos países árabes, mas continuava enfraquecido pela sua querela com
os chineses e, sobretudo, pelas insuficiências do seu sistema económico, que
suportava mal o nível das despesas militares e espaciais, bem como a
ineficiência declarada do seu funcionamento burocrático: um exemplo disto é o
acordo passado com os Estados Unidos em 1975 para o recebimento de 6 milhões de
toneladas de cereais em troca de 10 milhões de toneladas de petróleo. O
“Brejnevismo” estava a atingir os seus limites de desgaste pelo exercício do
poder de Estado.
O biénio 1979-1980 constitui a abertura de uma nova
fase na política internacional, no enquadramento anteriormente descrito. Por um
lado, inicia-se a revolução islâmica no Irão que, de imediato, representa a
primeira forma de afrontamento directo entre “o Islão” e os Estados Unidos,
então qualificados de “grande Satã”, que ali perdem o importante apoio que
tinham no regime do Xá, faustoso e opressor mas, até certo ponto, modernizador
da sociedade. Por outro lado, os dirigentes da URSS lançam-se na aventura de
sustentar um governo por si suscitado no Afeganistão, terra que sempre foi de
salteadores e de rebeldias tribais e que entra numa guerra dura que só
terminaria com Gorbatchev dez anos depois, retirando os seus homens.
Perante isto, imagina-se que os “cérebros
estratégicos” norte-americanos tenham concluído que – ainda que com a China
“neutralizada” – não podiam enfrentar simultaneamente dois adversários ao mesmo
tempo: o Bloco de Leste e o “islamismo radical” (já enriquecido em surdina com
petro-dólares, a despeito dos aliados ocidentais do mesmo credo religioso mas
pouco seguros que eram a Turquia, o Egipto, a Arábia ou os países do Golfo). Assim,
tal como os alemães nos dois grandes conflitos novecentistas tentaram ganhar
rapidamente uma guerra a ocidente para depois enfrentar a outra a oriente, também
os estrategas de Washington terão pensado elevar o seu grau de pressão
competitiva sobre a URSS (embora sempre dentro da “política de desanuviamento”)
respondendo à nova ameaça tecnológica dos SS-20 russos de maneira vigorosa com
o seu programa dos “euromísseis” em 1979. Aqueles mísseis procuravam separar
ainda mais os europeus dos americanos, reforçando a referida “neutralização” da
Europa ocidental; estes últimos respondiam ofensivamente a tal ameaça,
aproveitando o estado de exaustão do regime russo, as suas preocupações no
Afeganistão e com o seu arco islâmico meridional, face ao levantamento irado
dos povos do Médio Oriente. Talvez assim pressionado, Moscovo viesse a “lançar
a toalha ao chão” – terá pensado Reagan em 1983 ao anunciar o programa da
“guerra das estrelas” num momento de transição e indefinição da liderança
política em Moscovo.
Os “Kremlinólogos” sempre exploraram os sinais e
brechas entrevistas na aparente unidade da direcção política da URSS. Os anos
de 1983-85 deram fartos pretextos para tais congeminações e decerto que a
ascensão de Gorbatchev ao poder supremo não foi isenta de golpes, traições e
denúncias. Mas o seu programa reformador de “transparência e reestruturação”
mostra até que ponto a situação do país estava bloqueada: politicamente,
economicamente e socialmente. Como reformador para salvar o sistema do
afundamento, Gorbatchev chegou tarde demais. E encontrou pela frente dois
líderes ocidentais conservadores “duros de roer”: a senhora Thatcher (1979-1990)
que forjou a sua força política ao denunciar e desafiar internamente o poder
social dos sindicatos e externamente os generais argentinos, ganhando a difícil
guerra das Malvinas; e o medíocre actor Reagan (1980-1988), limitado político
mas com “faro” para a percepção das relações-de-força internacionais e das
oportunidades oferecidas pela conjuntura. O desabar do muro de Berlim e do
Bloco de Leste (1989-1991) foi o acontecimento histórico mais relevante desde a
II Guerra Mundial e a Descolonização.
Com o encorajamento dado à “globalização” da
economia mundial e com a ajuda involuntária dos novos meios de telecomunicações
de massas (televisão por satélite, etc.), aqueles governantes tiveram ainda um
papel preponderante num progresso económico visível ao longo dos anos 80 e 90,
ajudados no espaço europeu por líderes com personalidade própria como o Papa
João Paulo II, o francês Mitterrand ou mesmo o alemão Kohl, e pela dinâmica do
processo de “construção europeia”.
Por seu lado, a China (que anteriormente tentara
competir com a URSS em África sem grande sucesso) preocupou-se nestes anos
sobretudo em sedimentar o seu novo modelo económico e menos com a evolução das
relações políticas internacionais, deixando espaço livre para o benefício
experimentado pelos ocidentais com as liberalizações das trocas comerciais e a
desregulação dos mercados financeiros – e o “velho continente” com as delícias
do seu “modelo social europeu”.
Porém, já nos anos 70 o sociólogo Ralph Dahrendorf
alertava para uma possível “revolta dos contribuintes” perante os elevadíssimos
níveis de tributação que os governos social-democratas do norte da Europa
estavam instituindo nos seus países, que prenunciavam um regresso quase
inevitável de uma nova corrente de liberalismo económico, que veio a ser
concretizada na década de 1980 com Tatcher e Reagan, a evolução dos acordos
GATT para a OMC (Organização Mundial do Comércio) e o desenvolvimento das
grandes empresas multinacionais, mais o início da “desformatação” interna das
organizações produtivas, com a ajuda das automatizações tecnológicas e informáticas
e a erosão do poder sindical.
Quanto ao “3º mundo” e ao movimento dos
não-alinhados, foi-se desvanecendo o que restava da sua genuinidade inicial e
da sua própria autonomia. Em África, reforçou-se a dependência da “fraternal
ajuda” de Moscovo, com algum protagonismo próprio do castrismo cubano, ao mesmo
tempo que o militantismo africano concentrava as suas lutas nos últimos redutos
de resistência branca (na Rodésia, Namíbia e sobretudo na República da África
do Sul); mas a pobreza acentuou-se para largas massas camponesas, as elites
governantes reforçaram os seus poderes e houve países quase destruídos por
guerras civis, tribalismos ou ditadores sanguinários – sem esquecer os
progressos da islamização para sul, na costa oriental mas também na vertente
atlântica. No Oriente, caiu o regime autoritário de Marcos nas Filipinas em
1886, mas manteve-se o de Suharto na Indonésia, enquanto o Vietnam impunha a
sua influência na península indochinesa (embora ainda quase fechada ao
exterior), a Índia conseguia conservar o epíteto da “maior democracia do globo”
e se afirmavam economicamente “novos dragões”, países pequenos como Singapura, a
Malásia, a Formosa ou a Coreia do Sul, mas com mão-de-obra barata e abundante
que as multinacionais investidoras aproveitaram intensamente. E na América
Latina os democratas ocidentais tiveram o ensejo de saudar a sucessiva queda de
vários dos regimes de ditadura militar, como se verificou na Argentina e no
Brasil.
Enquanto isto acontecia, no Médio-Oriente as coisas
tornavam-se mais intrincadas e concentravam nesta área o principal foco de
conflitualidade mundial. A contínua flagelação de Israel por parte de
guerrilheiros palestinianos levou a diversas incursões das tropas judaicas em
territórios vizinhos como o Líbano e Gaza (que pertencera ao Egipto) e a
ocupações territoriais mais ou menos prolongadas. A Líbia de Kadafi continuou a
ser um foco de agitação anti-ocidental e base de apoio de diversos extremismos
políticos. E o Irão envolveu-se numa guerra prolongada com o Iraque, que então
beneficiou de ajudas europeias e americanas, numa antecipação do que se percebe
agora ser também um conflito de natureza religiosa (entre xiitas e sunitas). Mantiveram-se
aliados do Ocidente os governos do Egipto, da Jordânia, dos ricos mini-estados
do Golfo e a ultra-conservadora Arábia Saudita, com os americanos a forneceram
armas aos guerrilheiros afegãos para combaterem os ocupantes russos. O regime
laico da Síria namorava mais frequentemente com Moscovo e países como a Somália
(dirigida com mão de ferro por Siad Barre), o Sudão, o Iémen ou mesmo o
Paquistão mostraram sempre instabilidade ou abrigaram forças políticas
radicais. Em resumo, persistiu a polarização da questão palestiniana, reforçou-se
o sentimento popular anti-ocidental (mas com escasso proveito para a URSS),
verificou-se instabilidade em largas zonas e abriram-se conflitos entre facções
muçulmanas. Mas o canal de Suez voltou a funcionar e o petróleo da região
continuou a ser um elemento de grande importância económica e política para o
mundo industrializado ocidental. E, num parêntesis, relembre-se que em 1985
Portugal entrou definitivamente na rota das democracias europeias com a eleição
de Mário Soares para Belém e a assinatura da entrada na CEE: do seu
“africanismo” restava agora apenas a nostalgia do império e ideias diferentes
quanto ao relacionamento com os PALOP.
O que se seguiu nas três décadas subsequentes a 1986
foi a consequência directa destes processos, que se consumaram nas rupturas e
dinâmicas que produziram o nosso mundo actual: a implosão da URSS e do Bloco de
Leste; a explosão do terrorismo jihadista
islâmico, que desencadeou respostas de força dos Estados Unidos e do
Ocidente que se mostraram desajustadas e contraproducentes; o fantástico
desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação; a ascensão da
China a actor determinante da economia mundial (concorrendo agora em todas as
áreas: indústria, comércio, finança, espaço, TIC e outras tecnologias
avançadas, etc.); os abalos político-religiosos no mundo árabe que repercutiram
directamente sobre a Europa, questionando a sua identidade; e a actual crise
que afecta de uma maneira particular a União Europeia, simultaneamente
financeira e económica, de projecto próprio e de redefinição do seu
posicionamento face ao mundo, onde subsiste uma Rússia com “vontade imperial” e
onde novas potências regionais tentam afirmar-se (a Índia, a África do Sul ou o
Brasil, que porém rapidamente “gripou”).
JF / 22.Nov. 2016
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