Virgílio Ferreira foi talvez o maior dos nossos
escritores-intelectuais contemporâneos. Um dos seus últimos textos publicados,
o romance Em Nome da Terra (1990), é
uma obra que não se deve perder, embora possa ser dolorosa de ler e recitar
para alguns. O protagonista, afectado já fisicamente e internado num lar,
imagina-se escrevendo cartas à sua amada mulher, Mónica, antes desaparecida.
Mas contém passagens irresistíveis, como esta que transcrevemos (págs. 255-258
da 5ª edição):
«São
já horas de almoço, devia já haver hóspedes na tarefa. Mesas postas, o salão
sem ninguém. E de subido reparo que na mesa do Firmino, é ao lado direito da
porta, quem é? uma mulher de uns sessenta anos. Pergunto-lhe se me posso
sentar. Ela diz-me tem aí tanta mesa. Mas eu digo-lhe que costumo sentar-me
nesta quando aqui venho comer e ela então diz-me como quiser. E eu disse ainda
–
É a mesa do Firmino, lembrei-me de vir hoje aqui.
E
imediatamente começou a falar de si. Todas sois assim, Mónica, tu desculpa,
minha querida. Dez minutos com uma pessoa desconhecida e imediatamente pondes
tudo ao léu. Tantas vezes me aborreci contigo por disso – e entretanto veio
outro tipo para a mesa e eu disse que vinha ver o Firmino.
–
Morreu ontem – disse ele enquanto se ajeitava à mesa.
Tudo
logo ao léu – e porquê? Deve ser uma forma de chamardes a atenção, de
afirmardes a vossa importância, de vos integrardes numa sociedade que durante
milénios vos excluiu. Deve ser uma falta congénita de pudor contra o pudor a que
fostes obrigadas, o homem é infinitamente mais recatado porque nunca precisou –
enquanto a mulher da mesa ia contando. Eu queria informar-me sobre a morte do
Firmino, a mulher não dava uma aberta. Teria mais de sessenta anos, também o
pudor já não era preciso. Forte, bem montada de peitos, ia contando da viuvez,
o marido era empreiteiro, dos filhos que tinham emigrado, um deixara cá a
mulher
–
que é uma galdéria. E os filhos da minha filha meus netos são, os do meu filho
ou serão ou não. Lá diz o ditado
–
O Firmino morreu ontem – disse o homem num intervalo da conversa.
Comíamos
os três em silêncio, a mulher explicou ainda, tinha a sua casa. Pequenina é
certo, mas para que a queria eu maior? E então um dia disse cá com Deus e
comigo
–
Ernestina, vai para um lar. Tens lá quem trate de ti, vai para um lar, tens
rendimentos para isso.
–
Morreu ontem – disse o homem. – Foi hoje o enterro e muitos desses aí foram
acompanhá-lo.
–
E de que morreu?
–
Eu não podia ir ao enterro, fui só à missa.
–
Ainda pensei voltar a casar – disse a mulher. – Mas para quê? Há sempre homens,
desde que se não tenha má boca. Tive um que estive quase. Mas aconteceu uma
coisa engraçada
e
aqui riu muito para haver graça no que dizia ser engraçado. É uma mulher
estável, de encontros bem ajustados uns nos outros, um ar dominador do mundo e
da moral. Porque a moral, minha querida, não está ao nível do mundo mas um
pouco abaixo.
–
Do coração – disse o homem – Deu-lhe a matar. A coisa agravou-se com uma
questão dos dois sobrinhos. Foi o que me disseram.
–
Não tinha filhos? – perguntei mais a confirmar.
–
Foi uma coisa engraçada – disse a mulher. – Eu tive um cancro na mama esquerda
e tiraram-ma. Então arranjei uma mama falsa, eles dizem, como é que dizem?
–
Uma prótese.
–
Uma prótese. Ora a mama esquerda é a que dá mais jeito a um homem para apalpar.
Ele apalpava, apalpava e eu aí ri-me. Porque é que te ris? Perguntou-me. E
então eu disse apalpa a outra, que essa mama é falsa. E ele aí não aguentou e
largou a mama, largou tudo e foi-se embora até hoje.
–
Não tinha filhos e os dois sobrinhos encarniçavam-se um contra outro e o
Firmino ora estava mais com um ora estava mais com o outro para a divisão dos
bens. Mas não se decidia por nenhum, tinha muito escrúpulo, e quando tinha tudo
bem dividido havia sempre um que se queixava. Então ontem deu-lhe um ataque e
ficou. E quem acabou por ficar melhor foi naturalmente o sacana.
–
E então agora – disse a mulher – farto-me de gozar quando vou no metro ou
assim. Porque sempre que há um aperto, há sempre um parvo que me apalpa a mama.
Eu digo cá comigo aperta, aperta que é de serradura.
–
Deve haver mamas mais parecidas com a natural – disse eu com delicadeza. –
Feitas de borracha ou coisa parecida. Uma a que se dê ar como a um pneu.
–
É capaz de haver – disse ela. – Mas está a ver eu agora a dar ar à mama e a
medir a pressão?
E eu pensei coitado do
Firmino. Estou a vê-lo às portas do paraíso e S. Pedro a perguntar-lhe se ele
quer realmente o paraíso com a chatice das harpas e alaúdes ou se prefere o
inferno com os heresiarcas e as putas. E ele a dizer – um momento que vou
pensar.»
É
de rir e de chorar! Mas é a realidade, ao natural!
JF / 5.Nov.2016
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