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sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Assim vamos andando

Mais um Verão e novo assédio de fogos florestais, depois de um início de época que parecia mais contida do que habitualmente. Mas Agosto desatou-se em fogo incontrolável em várias partes do território português, com menos desastres pessoais de outros anos mas com as mesmas angústias e os prejuízos de sempre. Se a actividade de atear fogos ou de os apagar contasse para o PIB, ainda haveria quem se alegrasse mas, assim, estamos todos sempre a ficar um pouco pior que dantes.
Os comentários, propostas e soluções vêm habitualmente a posteriori e nunca impedem a catástrofe seguinte, seja a dos incêndios florestais, industriais ou urbanos, seja a dos tornados, tempestades ou inundações (já para não evocar o pesadelo dos sismos). De todas estas tragédias que caem como trovões na vida das pessoas que os sofrem (como, de resto, os acidentes rodoviários), as mais previsíveis e evitáveis são os incêndios. Para isso existem regras de prudência e segurança (nas edificações e nos modos de florestação), penalizações criminais para a sua provocação intencional e dispositivos organizacionais com tradição (caso dos corpos de bombeiros voluntários) que actualmente dispõem de importantes meios financiados pelo Estado através da Autoridade Nacional de Protecção Civil, inserta no Ministério da Administração Interna desde 2006. De certa maneira, este sistema público é hoje visto como tão ou mais importante do que a defesa nacional, de cujas instituições copia uma parte das suas práticas e imaginários: “soldados da paz”; “combate” (aos incêndios); “frentes” (de fogo); “comando”; “planos de operações”, etc. Fala-se muito da prevenção, por vezes da reestruturação fundiária (por nós próprios aqui aventada há seis anos atrás), de meios mais eficientes, de agravamento de penas, etc. Mas nada disto obsta a reedição destes tristes espectáculos.
É verdade que algumas destas ocorrências têm causas naturais que não podem ser previstas em antecipação aos factos nem totalmente evitadas: as alterações climáticas (sejam elas originadas ou não pelos processos de industrialização, urbanização e motorização da vida moderna) e os abalos geológicos contam-se entre as mais importantes. Porém, duas questões fundamentais parecem dever ser afrontadas sem tibieza no caso dos incêndios florestais:
1ª – O direito de propriedade destes solos deve ceder a prioridade à segurança contra o fogo, seja em termos do regime de florestação (espécies arbóreas, extensão, localização, eventual necessidade de deflorestação de certas áreas, etc.), seja em termos de limpeza e manutenção das parcelas nas condições mais adequadas para prevenir a irrupção de incêndios e facilitar o seu combate (corredores de isolamento, postos de vigilância, etc.). Todos os terrenos abandonados devem reverter sem demora para o património público e aos proprietários dos não-cuidados (por prazo de cada temporada) deveria ser automaticamente retirada a sua gestão, nos termos seguintes.
2ª – Se o dispositivo de vigilância e ataque aos fogos deve indubitavelmente ser nacional (e da responsabilidade governamental, tal como o cadastro fundiário), já a gestão económica da floresta deveria ser deixada a empresas privadas de dimensão adequada especializadas nesta actividade, em regime de concessão que respeitasse o direito dos proprietários a receber a sua quota-parte do resultado financeiro daquela exploração e as melhores regras de segurança anti-fogos e de preservação ambiental. A escala e relevância do problema já não se compadecem com velho direito do camponês de dispor da sua parcela de terra como bem lhe apetece (ou é capaz). Condicionada por aquelas regras técnicas, a “empresarialização” será hoje, provavelmente, a melhor forma de aproveitamento das riquezas da floresta para um país como o nosso.
Agora, no auge de nova comoção estival, voltou a falar-se destas questões fundamentais e em envolver mais os municípios na sua resolução. Certamente que o poder local terá um papel sempre muito importante, porque é nas suas áreas de jurisdição que ocorre cada um destes sinistros – da mesma forma sendo de encarar a acção das beneméritas associações locais de bombeiros voluntários. Mas terão de existir legislação e orientações nacionais que permitam uma gestão global e integrada das florestas num quadro de ordenamento racional do território participado por diversos actores e entidades (interesses económicos, protecção civil, investigação científica, preservação ambiental, população residente, etc.) mas concretizadas e decididas em última instância por algum órgão, alguém identificado a que possam ser exigidas responsabilidades. Os direitos de propriedade individual são actualmente aceites por todos (mesmo pelas escolas de pensamento socialistas que inicialmente contra eles se fundaram) mas, assim como no século XIX se lhes amputou o direito de escravidão e servidão de pessoas, também é hoje imperativo retirar-lhes o “absolutismo” de que gozam em certos domínios, um dos quais é este de manter terras abandonadas ou não-ordenadas sem justificação plausível.    

Ao lado destas efervescências episódicas da actualidade informativa-partidária, a vida económica do país tem vindo a manter em lume brando as polémicas sobre o (in)sucesso das políticas governativas. O primeiro-ministro António Costa multiplica-se em declarações óbvias e de circunstância, sem qualquer profundidade ou relevância, salvo a de manter a base inter-partidária em que assenta o seu governo e de parecer ir cumprindo os compromissos a que se obrigou. Quem lhe faz a oposição mais coriácea parecem ser a instituições europeias, por um lado, e os indicadores económicos que desmentem as apostas de crescimento em que se baseou o seu programa eleitoral, por outro.
Mas o problema que, arrastadamente, se mostra mais preocupante nem é agora o da nossa baixa produtividade, da falta de investimento ou o agravamento da balança comercial externa, mas sim o sector bancário que pode romper-se de um momento para o outro. É certo que o mesmo tipo de receio existe para vários outros países vizinhos bem mais decisivos do que o nosso e para a Europa no seu conjunto. Pode ser que estejamos numa espécie de corrida para ver quem foge a rebentar primeiro. Mas aqui a escala impõe-se, de maneira brutal: a Europa financeira (ou os bancos alemães, ou a própria finança italiana) não pode rebentar – pura e simplesmente. Americanos, chineses e outros não o permitiriam, pois todos veriam a sua sobrevivência posta em causa. Quanto aos portugueses – como o caso grego bem o demonstrou –, se não cumprem a regras da UE, que se danem! O país bem-pensante ficou chocado com a justificação do sr. Juncker para a ultrapassagem do limite do défice gaulês “porque é a França”. Há, de facto, a indelicadeza da frase. Mas só um “espírito liliputiano” se pode sentir ofendido com esta realista apreciação: de facto, sem a França não há Europa, sem que tal seja desprimoroso para alguém, e não evita todas as críticas que aquele país possa merecer.
É por tudo isto que se torna deprimente assistir à forma patética como o governo tem lidado com a situação da Caixa Geral de Depósitos (empréstimos ruinosos, resultados negativos, recapitalização, designação e remuneração de novos responsáveis), como lidou com o Banco Internacional do Funchal, e como se arrasta ainda o caso do Novo Banco/GES ou mesmo o já quase esquecido Banco Português de Negócios – isto, para não referir as complicadas e suspeitas relações financeiras com instituições angolanas e brasileiras, os dois “países parceiros” de choix dos nossos governantes nas últimas décadas (com PS, PSD e CDS bem juntinhos em tais oportunidades). Perante a gravidade deste quadro, a “novela” das sanções e dos incumprimentos do défice público são meros peanuts para entreter os nossos telejornais. Como o são as intervenções “apaziguadoras” e “encorajadoras” do PR ou as dissonantes tomadas de posição de Cavaco Silva (esse pequeno-Salazar-das-finanças em versão democrático-populista) no último Conselho de Estado.
O desemprego estrutural, a emigração, a escassez de investimento, os desequilíbrios da segurança social e as indeterminações acerca da ADSE vão permanecendo sem vislumbre de uma credível resolução a prazo. Com a finança e a economia periclitantes, e uma (já habitual) re-governamentalização sistemática dos dirigentes da administração pública, a aprovação do orçamento para 2017 e os indicadores das contas públicas deste ano que se vão conhecendo a pouco e pouco deverão ditar a continuidade, ou não, desta experiência de governação-de-esquerda, num macro-contexto que não permite grandes alternativas mas nem por isso inibe ásperas disputas internas pelo poder de Estado. Por alguma razão se diz agora, por aqui e por acolá, que a social-democracia terá esgotado o cumprimento da sua missão histórica.

O tempo de Verão (ou “silly season”) é aproveitado por muito gente da classe média para conversas desprendidas, para se envolver nalgum romance clássico/contemporâneo ou para leituras ocasionais, como mais uma vez aconteceu connosco. Instalei-me assim na leitura de um Hamlet traduzido num excelente francês clássico e segui cuidadosamente as páginas da delicada e erudita obra que é Fim de Império, de António (Bracinha) Vieira, também autor de um inquietante Ensaio sobre o Termo da História. E mais convicto fiquei de que, quando publicamos sobre qualquer assunto, mais nos revelamos de nós próprios.
O gestor (de quê? de empresas?) Pedro Jordão, que agora escreve com mais frequência no jornal Público, revela geralmente o sentido prático e o bom senso de quem está longe da política e enfrenta directamente problemas de economia e de sociedade a que é necessário dar resposta, por vezes com urgência. Mas tem o sentido das heranças históricas de que somos os receptáculos e da globalidade e interdependência do mundo actual. É com reflexões deste tipo, parece-me, que os governantes, altos funcionários, actores políticos e outros responsáveis institucionais deviam confrontar-se e procurar o sentido das acções que desenvolvem no dia-a-dia, e não nos “sistemas fechados” em que sempre se movem: conselheiros; adversários partidários; comunicação social; membros de outras elites sociais; e talvez raramente a voz da sua própria consciência ou de algum amigo lúcido e desinteressado.   
Entre os raros ensaios de boa qualidade lidos na imprensa, demos pela crítica de um livro reunindo textos de Almeida Santos, por Diogo Ramada Curto, intitulado “Testemunhos ou equívocos da memória colonial” (Público, suplemento Ipsilon de 22.Jul.2016), pelo texto de António Valdemar “Os quatro avisos de D. Pedro: seiscentos anos de actualidade” (Público, 22.Ago.2016) e sobretudo por “Le Corbusier e a direita radical e revolucionária”, de António Sérgio Rosa de Carvalho (no mesmo jornal, datado de 15.Ago.2016), que terá surpreendido alguns menos informados sobre esta matéria.
Também devemos registar a qualidade informativa do muito que o Novo Jornal de Angola (semanal, on line, onde se percebe “a mão” do jornalista português João Garcia) vem publicando sobre este país, desde notícias sobre economia, sociedade, política, vida cultural, etc. Na realidade, esta é hoje uma nação pujante, muito distante do que foi a antiga colónia portuguesa, com as feridas e os problemas este século, mas garantindo ainda a sua matriz cultural africana, com os arcaísmos e as belezas inerentes.
E em espaço de entretenimento, assinale-se a série televisiva francesa Ainsi-soit-ils que o 2º canal da RTP lançou para o ar aos domingos à noite neste tempo de Verão, tratando em modo ficcional (e provavelmente algo exagerado) dos meandros, hesitações e conflitos que assolam actualmente a Igreja Católica. Enquanto na rádio a nossa Antena 1 continua a proporcionar-nos os excelentes programas de David Ferreira sobre música, textos e os seus contextos.

Mas a actualidade (que a cadeia televisiva EuroNews destila a cada meia-hora) não pára de nos interpelar, seja com o revelador “No Comment” (explicitamente: no statement, no argument, no judgement), seja com as notícias do mundo que, muitas vezes, nos deixam perplexos ou angustiados. A guerra na Síria e norte do Iraque prossegue sem fim à vista, apesar do envolvimento militar limitado dos Estados Unidos e outros aliados, e sobretudo da Rússia a sustentar o governo de Assad, com vários contendores em conflitos cruzados uns com os outros: todos contra o ISIS; sunitas contra xiitas; curdos contra todos (contando por agora com algum apoio americano); e poucos locais ao lado das forças do governo de Damasco. Note-se que Israel, a Jordânia e o Egipto têm conseguido manter-se à margem e parece milagre como a fogueira destruidora ainda não se ateou no Líbano. Mas a Rússia está ensaiando grandes manobras de aproximação e influência sobre toda a região do Médio-Oriente, pela diplomacia, as pressões políticas e pontualmente o uso da força militar. Falta-lhe a presença local dos partidos-irmãos de outros tempos e receia a contaminação do extremismo islâmico dentro das suas repúblicas e vizinhos do flanco sul (e decerto não voltará a mandar soldados para o Afeganistão) mas a política de Putin é a de nada ceder e manter a “chama russófila” onde tem populações, a ocidente; e de ganhar projecção extra-fronteiras em todo aquele vasto espaço em convulsão onde se concentram petro-dólares, reservas energéticas mundiais e povos mobilizáveis para causas anti-ocidentais. Além do seu porto de mar na Síria, o governo de Moscovo parece apostar em criar alinhamentos (se não mesmo, alianças) com as três principais potências regionais – Egipto, Irão e Turquia – limitando pelo mesmo gesto a influência americana, ou deixando-a restrita ao reino Saudita (até que este caia, sendo talvez o Iémen o “balão de ensaio” desta estratégia). Mas a Turquia será o objectivo mais imediato e apetecível, sem grandes cedências suas. Ressentido como está com a UE e a NATO, com um processo de purga interna só comparável com os tempos estalinianos, maoistas ou “kampucheanos” (segundo a Amnistia Internacional, foram soltos 38 mil presos comuns para permitir enjaular os supostos conspiradores de Julho último), o governo de Ankara joga agora a fundo todas as cartadas políticas ao seu alcance para consolidar um regime ainda mais forte e personalizado na figura de Erdogan, uma “democracia islâmica” com ar moderno que satisfaça as massas e compense a travagem da economia; agora, parece ter-se decidido a dar prioridade militar ao combate no terreno contra o “Estado Islâmico” vizinho e, simultaneamente, com o argumento do combate ao terrorismo, tentará esmagar o mais possível as veleidades independentistas dos curdos, mas arriscando-se cada vez mais a ver as suas cidades sacudidas por atentados mortíferos, que os do PKK também não são “crianças de coro”.
Com uma Turquia em turbulência, é toda a insolúvel (a curto prazo) questão dos refugiados e migrantes que cai de novo sobre os países da Europa, no não-esperado contexto aberto pelo “Brexit”. É péssimo sinal que a UE só consiga algum mínimo entendimento em política externa (e segurança e defesa) funcionando “em directório”. Mas, apesar dos seus tão criticáveis desempenhos governativos, é preferível que os senhores Hollande e Renzi se juntem a Merkel para relembrar o projecto europeu (como fizeram simbolicamente a bordo do Garibaldi na ilha de Ventotene) do que deixar Berlim isolada a comandar a economia e as finanças de todo o continente sob os ácidos apupos dos diversos impotentes esquerdismos, com os nacionalismos extremistas a medrarem e o isolacionismo americano a aprofundar-se.
Goste-se ou não, é quase certo que Hilary Clinton seja a próxima presidente dos EUA e que do milionário Trump só restem recordações de boçalidade, ignorância e estupidez. Mas o próprio facto da sua candidatura (com os apoios que suscitou) é já sintoma da má evolução da sociedade norte-americana, como também o são os afloramentos de atitudes racistas e integristas de largos sectores da sua população. Assim, com toda a sua experiência das relações internacionais e o legado “pro-social” de Obama nos problemas domésticos, é provável que a primeira mulher “dona” da Casa Branca utilize a força da sua superioridade militar e tecnológica para negociar status quo razoáveis com os seus grandes competidores do futuro (como a China, a Índia, a Indonésia, o Brasil, o Japão ou a África do Sul) enquanto tentará gerir “com pinças” as ameaças do terrorismo, do fundamentalismo islâmico e os desafios “a prazo” das alterações climáticas. Neste quadro, a Europa será apenas um parceiro secundário, bom para tentar pôr de pé o contestado tratado comercial TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership) mas só verdadeiramente aliado se deste lado do Atlântico as coisas começarem a correr mesmo mal.
Uma palavra ainda sobre a lamentável crise brasileira (vide as contrastantes análises saídas na mesma edição do jornal Público de 2.Set.2016: “A queda final”, de Carlos Blanco de Morais, e “Anatomia do golpe” de Joana Mortágua). Triste, porque a situação económica é má e está de novo a lançar milhões de pessoas para difíceis situações de sobrevivência (como já acontece na Venezuela). Pode ser conspiração das forças políticas de direita mas esta esquerda politiqueira e estatista – militarizada como a de Chávez e Maduro, ou civil e operária como o PT de Lula e Dilma – tem mostrado no exercício da governação como pode ser tão vil e corrupta como os seus adversários na luta pelo poder.

JF / 10.Set.2016

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