Há dias, o representante em Lisboa da Autoridade Nacional Palestiniana publicou na imprensa um artigo sob o título “A justiça é a única arma letal contra o terror” (Público, 16.Mar.2016). O seu tema é a aparentemente irresolúvel questão israelo-palestiniana, sem dúvida um dos nós-gordios que atam os difíceis tempos que vivemos. Mas, pela minha parte, aproveito apenas a feliz fórmula com que pretendeu sintetizar o seu problema para a aplicar a uma questão civilizacional, infelizmente mais lata: a da defesa e segurança das sociedades actuais contra o fenómeno da violência dita terrorista.
Terrorismo é um termo com alguma história na vida colectiva ocidental dos últimos dois séculos. “Terror” e “terrorista” foi o nome dado ao governo de Robespierre e Saint-Just durante a Revolução Francesa quando puseram os tribunais populares a “julgar” expeditivamente, com a guilhotina a trabalhar em contínuo para executar milhares de suspeitos de “reacção monárquica ou clerical”. Foram também apelidados de “terroristas” aqueles revolucionários russos que, pela bomba ou pelo atentado à pistola (ou ao punhal), se meteram a tentar incutir terror aos governantes da Rússia czarista na segunda metade do século XIX. Entre os anarquistas da belle époque, a moda também pegou, ficando na memória a bomba de Ravachol lançada no parlamento ou os assassinatos de dois presidentes (em França e nos Estados Unidos), de um rei (em Itália) ou de um cardeal (em Espanha). Mas o método propagou-se aos mais excitados defensores de outras causas, nacionalistas ou republicanas, como aconteceu com o nosso regicídio de 1908.
Temos ainda na lembrança que, pela violência empregue e pelos seus métodos de guerra-de-guerrilhas, também o governo do doutor Salazar – e, em seguida, todo o “bom povo português” – tratou de “terroristas” (ou “turras”, na intimidade) os guerrilheiros africanos empenhados na independência política dos seus territórios. Só passaram a “combatentes” depois do 25 de Abril de 1974.
Hoje, e com razão, usa-se correntemente o termo terrrorismo para designar o tipo de acções que, com motivações políticas ou civilizacionais, ínfimas minorias conseguem praticar com o objectivo (muitas vezes conseguido) de pôr em sobressalto comunidades, cidades ou países inteiros, assim ameaçados de não poderem prosseguir as pacíficas actividades rotineiras do seu viver social. Note-se que, além das tomadas de reféns, das bombas e dos bombistas suicidas que matam indiscriminadamente qualquer pessoa que esteja “no mau sítio à hora errada”, ou do metralhamento à bala de simples passantes, estamos também a falar dos riscos de disseminação de gases ou agentes bacteriológicos ou radioactivos com a mesma intencionalidade e ainda da “guerra informática” a que hoje se entregam meros piratas e perigosas organizações, capaz de produzir estragos e lançar num “caos Babeliano” as nossas complexas “sociedades da informação”.
A violência medieval empregue por estes fanáticos – inteligentes ou primários, assassinos ou sacrificiais, isolados ou bem organizados – choca-nos talvez sobretudo porque ela já nem sequer tem como objectivo abater um tirano ou um regime, implantar um sistema suposto melhor que o existente. Parece buscar apenas o paroxismo da destruição, ser sinal de um desajustamento existencial irremediável ou perseguir uma vingança telúrica contra a história (de que hoje, afinal, ninguém é verdadeiramente culpado).
Mas vejamos mais de perto os ingredientes com que se cozem cada um destes aspectos. A destruição está inscrita no processo histórico mas parecia que a Humanidade se esforçava por, cada vez mais, a circunscrever e limitar (tendo até conseguido controlar a ameaça da bomba atómica). Porém, desde há umas décadas para cá, o que nos difundem maciçamente os filmes de Hollywood (ou de alhures), inúmeras séries televisivas como meios de “entretenimento” e lazer, e até os super-agressivos desenhos animados para crianças? Imagens de violência, destruições e sadismo – regularmente acompanhados de produções artísticas de toda a índole e de teorizações estético-culturais que sempre relativizam o fenómeno e por vezes parecem justificá-lo. Longe de mim pensar que tal deva ou possa ser travado por uma qualquer censura, polícia-de-costumes ou “ordem moral”. Mas tenho o direito de interpelar esses mesmos criadores e teóricos acerca do grau de consciência que possuem (na sua mais profunda solidão, inteligência e sinceridade) acerca dos efeitos “virais” que hoje podem ter as suas acções (e até algumas omissões), algo aproximado àquilo que em tempos se chamava a “responsabilidade social” dos artistas e escritores… mas num mundo “mediático” que, neste aspecto, já não conhecerá retorno.
O desajustamento existencial irremediável é provavelmente o aspecto mais difícil de combater, porque ele se situa no âmago da psique humana individual no actual contexto mundial, pressionado e hesitante entre um ambiente natural que abandonámos e um espaço urbano que dominamos mal, entre um fantástico desenvolvimento da ciência e do conhecimento e a perda dos sentidos transcendentes da vida, entre o embevecimento da descoberta da liberdade individual e o rápido esbatimento de algumas das nossas dimensões comunitárias.
A vingança contra a história toma, na prática, a forma de uma luta (de alguns, mas com o assentimento de muitos) contra o Ocidente Moderno que, principalmente, gerou o mundo tal como ele existe na actualidade: com o melhor (o progresso material e os direitos obtidos) e o pior (certos riscos catastróficos e a anomia social) que se podia esperar. Incidentalmente, essa luta ancorou-se nas últimas décadas na causa dos radicais islâmicos empregando estes métodos violentos contra os países de cultura europeia, ou aonde chega e se manifesta a influência do american way of life – em especial, depois da queda do “bloco de Leste”, cujo conflito “estrutural” com o Ocidente fora o grande “organizador” das relações internacionais ao longo do século XX.
Prosseguindo e desenvolvendo os conceitos da “guerra revolucionária”, estes combatentes irregulares estão a ser combatidos (pela espionagem, a acção policial/militar e certas medidas de política), mas de uma forma que, por vezes, nega os próprios fundamentos morais em que se baseia a “ordem ocidental” – contradição que é, aliás, deliberadamente procurada e explorada pelos seus inimigos, tal como buscam a sua maior projecção possível sobre o espaço comunicativo-exibicional.
Para enfrentar esta ameaça inteiramente nova, afirmam-nos que são indispensáveis serviços secretos de informação eficazes, bem organizados e caros. Acreditando que sim, que garantias podemos ter de que, a coberto desse segredo, eles perseguem o “bem público”, não abusam da excepcionalidade da sua condição e, no limite, não conspiram contra a nossa própria liberdade e segurança? Num exemplo máximo, sabe-se hoje que as armas de destruição maciça de Sadam Hussein afinal não existiam, haviam apenas sido “supeitadas” pela CIA e outras agências. Foram os estados-maiores e a Casa Branca que as converteram em “evidências credíveis”, ou foi a “máquina das secretas” que finalmente forjou as provas? E, num exemplo mínimo, que confiança podemos ter num Serviço de Informações da República que, volta e meia, proporciona matéria de escândalos para a imprensa, desde a lista de espiões publicada em Diário da República até aos casos judiciais que estão agora em julgamento onde se misturam maçons, aventureiros e interesses empresariais obscuros? Por certo que essa confiança deveria alicerçar-se em: (boas) regras de funcionamento instituidas; fiscalização proba, eficiente e acima de toda a suspeita; e, finalmente, num sistema judicial merecedor da confiança pública. Ora, do primeiro tópico, obviamente nada sabemos, só podemos intuir. Do segundo, é preciso acreditar piamente que os deputados de diferentes partidos (sempre em luta entre si), ao serem designados para essa tarefa, põem o interesse nacional acima do partidário (ao menos, são ajuramentados?). E, do terceiro, dão-nos conta diariamente os órgãos de comunicação social, mais os actores políticos e sociais que se exprimem, com as leituras diversas e contrastadas que cada qual pode tirar deste panorama e do estendal de “casos de justiça” que nos é servido.
Finalmente, chego à questão que motivou a minha referência inicial ao título do embaixador palestiniano “A justiça é a única arma letal contra o terror”. Quero referir-me à forma como, cada vez com maior frequência e naturalidade, as forças policiais disparam a matar sobre qualquer pessoa armada suspeita de ser um terrorista, o que acontece em França, em Israel, na Bélgica, nos Estados Unidos, etc. Compreende-se isto num frente-a-frente em que se jogam vidas num instante. Mas, sempre que tal acontece, estamos perante o caso de um putativo criminoso que assim se furta ao julgamento e à possível condenação judicial (com o exemplo que, com isso, é dado à comunidade inteira), substituída por uma espécie de “execução sumária” (que não existe nos nossos códigos penais) aparentemente legitimada pelo “julgamento popular” suscitado no espaço metiático. E, tratando-se de um verdadeiro terrorista, perde-se uma potencial fonte de informação que poderia ajudar os serviços de segurança a evitar novos atentados. Para além do natural instinto de auto-defesa em situações limite, é provável que a formação e treino deste pessoal os prepare hoje para assumirem tal atitude. E é também espectável que, além das hierarquias, as suas associações sindicais ou profissionais cubram também estes gestos, arguindo sempre com a legítima defesa (neste caso, individual, mas também com uma implícita componente “grupal-comunitária”, isto é, “corporativa”).
Não existirá já tecnologia suficiente para imobilizar um suspeito em pose agressiva sem ter que lhe descarregar logo várias balas no peito ou na cabeça? Porque não é utilizada mais frequentemente? Estaremos já em “estado de guerra” – como proclamou aos franceses o presidente Hollande depois do atentado de Novembro último – onde estes comportamentos, entre combatentes, estão codificados? Legalmente, nada o sustenta, nem a sociedade está preparada para tal. Mas é precisamente a exploração destas assimetrias entre práticas e enquadramentos legais que os adeptos e praticantes da “guerra revolucionária” procuram deliberadamente explorar, onde a paz e a guerra se confundem e os guerrilheiros atacantes estão entre o povo “como peixes na água”.
As rivalidades nefastas, os “corporativismos”, manifestam-se também na forma como as diferentes agências e os diferentes países utilizam e partilham as “informações” (secretas) e actuam policialmente neste domínio. O caso do grave atentado bombista de Bruxelas pôs mais uma vez em evidência estes fenómenos em que pequenas células (ou “grupos de amigos”), beneficiando de ligações “profissionalizadas” e de cumplicidades identitárias mas utilizando processos de destruição relativamente simples, conseguem pôr em “estado de sítio” uma sociedade inteira.
O ISIS (Islamic State of Irak and Syria ou ISIL …Levant) pode ser vencido militarmente no terreno com meios convencionais, embora à custa de um ainda maior êxodo das populações. Mas o Daesh, a Al-Kaeda ou outra qualquer organização terrorista do mesmo tipo continuará a poder usar esse meio social já bem inscrustado no Ocidente para recrutar guerreiros sacrificiais entre os jovens mais desenquadrados e frágeis que aí se encontram para as suas campanhas contra o nosso modo de vida, materialista, capitalista e dessacralizado – mundo esse que muitos de nós criticamos, com bons fundamentos, mas no qual também nos reconhecemos, tal como reconhecemos a razão que nos guia, a dignidade da pessoa humana e o inestimável valor da liberdade.
Constitui um dado-de-facto, de impossível regressão, a mobilidade das pessoas e a sua inter-comunicabilidade através de todas as fronteiras: está inscrita na economia e na cultura de massas (“individualizante”, mal-grado isso) do mundo actual. Como igualmente constitui outro dado-de-facto o aparelho informativo-espectacular dos mass media que sucedeu à (já saudosa…) imprensa escrita: eles investigam sempre, eventualmente manipulam e difundem para o maior número possível tudo aquilo a que conseguem aceder (às vezes com grande embaraço para pessoas ou instituições insofismáveis). Estas são duas realidades inelutáveis dos tempos actuais. Pelo contrário, aquilo que todo o espírito de cidadania pode e deve exigir dos poderes constituídos (que funcionam em seu nome mas para os quais cada um de nós pouco contribui, a não ser com o nossos voto e os nossos impostos) é que conquistem e mereçam a nossa confiança. Estão abrangidos nesta exigência, em especial três tipos de entidades: as instituições e os profissionais dos serviços de segurança; os mecanismos e os protagonistas do poder judicial; e a organização do poder político constitucional (partidos, governo, altos funcionários).
Acreditamos que, como afirmam, por cada um destes atentados que se comete, vários outros sejam evitados pela acção dos serviços de intelligence, e policiais. Mas de novo se coloca aqui a questão da confiança dos cidadãos nestas instituições do Estado contemporâneo e nos decisores políticos que as orientam.
O combate contra esta forma de terrorismo e tentativa de retorno à barbárie é legítimo e necessário. Mas como fazer para que seja a justiça a prevalecer, com as suas garantias de defesa mas igualmente com o seu “longo braço” capaz de castigar eficazmente e em tempo útil os criminosos (executantes e mandantes) e, mais amplamente, os fautores de desgraças alheias?
Nós, os simples cidadãos, temos de estar atentos a estas coisas para que, se não sucumbirmos às mãos de terroristas, não venhamos também a perder as nossas liberdades essenciais ou a ter que repetir aquela conhecida formula, algo fatalista, de: “Mas quem nos protege dos nossos protectores!?”
JF / 9.Abr.2016
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