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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Anarquismo e sociologia

(Introdução de João Freire a um debate organizado pelo Centro de Estudos Libertários em 2005, apenas ligeiramente retocado para a sua actual difusão. Cada uma das apresentações dos 4 “andamentos” foi seguida de debate com os circunstantes e suportada pela prévia distribuição de uns “textos de apoio”, a que adiante se fazem algumas referências.)


1º andamento: allegro molto – ou As confusões do positivismo

Não estando aqui num espaço de especialistas, de debate académico, mas sim num fórum de discussão entre cidadãos, em total liberdade, decidi tratar este primeiro “andamento” no modo de allegro molto para evocar o entusiasmo com que frequentemente estas coisas eram, há um século, debatidas e vividas. Foi uma fase em que o anarquismo logrou alcançar uma presença na vida pública de vários países em vias de industrialização, tornando-se conhecido, como hoje são o movimento ecologista ou os cantores populares, suscitando adesões, recusas, paixões, etc. Ou seja, tinha ultrapassado a fase dos círculos fechados, de discussões muito densas mas com poucos efeitos na sociedade, e começava a notar-se a existência de práticas inspiradas nessas ideias anarquistas ou libertárias em movimentos sociais de massas, no movimento operário em particular, e também nos meios mediáticos da época, sobretudo no tã-tã do “ouvir dizer-se”, na imprensa e em certa literatura de grande circulação (nos meios alfabetizados, já se vê). Também a comoção pública gerada pelos atentados bombistas (e de outro tipo) praticados por certos anarquistas e por outros revolucionários terão tido algum efeito na construção de uma imagem e reputação públicas, mas essas já serviram certamente mais para dividir as opiniões do que para as sensibilizar ou convencer a aceitar, ou pelo menos a respeitar, as suas ideias.
Por outro lado, igualmente por estas alturas – finais do século XIX, primeiros anos do século XX –, também a ciência se encontrava em enorme desenvolvimento, incluindo a nascente sociologia, em fase de afirmação própria e contra o primado anterior da teologia, da filosofia, do direito e da história. Chamam‑se então sociólogos a pessoas que produzem textos sobre a natureza e o devir das sociedades. Ora, alguns desses textos figuram entre os que circulam e são discutidos na imprensa corrente, por autodidactas e mesmo nos meios anarquistas. São geralmente mais textos de filosofia da ciência do que ciência propriamente dita. Mas, dentro deste campo, a sociologia surge com a pretensão não só de ser uma ciência, mas inclusivamente de ser a ciência fundamental (por respeitar aos Homens vivendo em Sociedade), coisa que agrada visivelmente a uma boa parte dos anarquistas coevos.
Porque é que eu emprego aqui o termo confusão, para designar esta orientação positivista, dada a fortíssima influência da filosofia de Comte? Porque me parece que está então ainda muito indefinido e incerto este nascimento da sociologia como ciência e, em especial, como tão bem demonstrou Max Weber, a necessária diferenciação entre a análise da realidade, que é própria da ciência, e as doutrinas sociais – religiosas, socialistas, nacionalistas, etc. – que naturalmente se propõem alterar a realidade em conformidade com os seus respectivos ideais. Ora, nesse tempo e nesses textos, tal não acontece ainda. E, para uma doutrina sócio-política como era este anarquismo em expansão, é evidente que lhe era muito conveniente tal proximidade com o prestígio da ciência e de alguns pensadores científicos.
Veja-se o exemplo do conhecido e muito significativo livro de Silva Mendes Socialismo Libertário ou Anarquismo, de 1896. O autor era um anarquista teórico (porque não consta que haja sido referenciado em práticas activas em grupos, ou nos meios operários) mas que mostra um conhecimento muito actualizado da chamada ciência social, da sociologia da época, tanto quanto do anarquismo coevo e da sua história oitocentista, ou seja, de uma das variantes desse movimento de ideias e de acção mais amplo que foi o socialismo.
Vejam‑se, por exemplo, estas passagens do livro que, claro, perdem um pouco de sentido por serem retiradas do seu contexto, mas onde pode ler-se: «É necessária uma leitura assaz vasta, não só dos escritos propriamente anarquistas, mas também dos de todas as escolas socialistas e dos trabalhos dos sociologistas modernos. Porque – coisa curiosa – a doutrina anarquista, onde menos se encontra, é nos livros professamente anarquistas, os quais, na maior parte, contêm mais utopia do que ciência». O que é natural, pois referia‑se essencialmente aos textos mais propagandísticos publicados na imprensa.
Depois, num capítulo posterior, discutindo o conceito de Estado à luz das teorias anarquistas, cita autores como Morgan e a sua conhecidíssima obra Ancient Society, a partir da qual Engels produziu depois o ensaio A Origem da Família, da Propriedade e do Estado, cita o ilustre criminologista da escola antropológica Enrico Ferri, mas omite Lombroso, por exemplo, que é considerado anti‑anarquista por causa seus estudos criminológicos sobre os terroristas anarquistas, a despeito da sua metodologia experimental e “materialista” de tentar encontrar uma relação causal entre o “bios” do indivíduo e os seus comportamentos sociais. Cita um curioso Adolfo Posada, que nos Annales de l’Institut International de Sociologie (que nada tem a ver com a publicação da posterior escola historiográfica de Braudel e companhia) tem um artigo que se chama «A sociologia e o anarquismo», que foi título que eu, invertendo a ordem dos termos, propus para este debate. Mas sobretudo cita Spencer, o sociólogo que reconhece como estando mais próximo das suas posições, sobretudo a partir da diferenciação e oposição que este autor aponta como existindo entre o indivíduo e o Estado.
Depois, no capítulo sobre a evolução histórica do Estado, Kropótkine é muitas vezes referido como sociólogo, considerando-o bem mais próximo da realidade (e da verdade) do que Durkheim ou Glumpowicz. Este último (que eu não conhecia) deve ser um doutrinador da área da estratégia, lidando com a geo‑política tal como era entendida no século XIX, isto é, como o estudo das oposições colectivas entre povos e nações, tendo mesmo um livro, citado, intitulado A Luta das Raças, onde parece tentar construir uma teoria interpretativa da guerra e da oposição e luta entre os estados.
Finalmente, o livro de Silva Mendes tem uma passagem que eu gosto muito de citar e que é a seguinte: «[…] De resto, ninguém se deslustra em ser anarquista: são‑no actualmente algumas das maiores individualidades da actualidade: H. Spencer, Kropótkin, Elisée Reclus, Tolstoi, lbsen, isto é, o maior sociólogo, o maior apóstolo da liberdade, o maior geógrafo, o maior cristão, o maior dramaturgo!!! […]». Ora, este conjunto de personalidades e de áreas científicas e culturais convocadas ilustra bem a ideia de que o anarquismo estava então na actualidade, encontrava-se entre as correntes mais avançadas, mais transformadoras e estava, digamos, com a sociologia.
E estaria a sociologia com o anarquismo? Para tentar responder a esta questão, fui buscar um texto de Kropótkine conhecido como O Socialismo Libertário e a Ciência Moderna, em que ele se reclama efectivamente de Comte e de Spencer e onde encontramos justificações mais conceptualizadas, mais elaboradas, das doutrinas anarquistas. É aqui repudiado, «por anti-científico», o uso do método dialéctico, tendo claramente em vista combater o discurso dos continuadores de Marx. Ao invés, ao dizer, por exemplo, que: «de todas as descobertas do século XIX, em mecânica, em astronomia, em física, em química, em biologia, em psicologia, em antropologia, nenhuma se fez pelo método dialéctico», antes pelo «método dedutivo-indutivo, único científico conhecido», faz-se a defesa do chamado método científico, ou das ciências experimentais, que esteve na base do desenvolvimento da ciência moderna.
Por curiosidade, incluí também entre os textos de apoio seleccionados para este debate o sumário dum livro de José António Bentes, de 1907, uma das primeiras obras que tentam apresentar a sociologia em Portugal e se intitula Sociologia Fundamental: Constituição da Sociologia. E só pela leitura de duas ou três expressões temos uma ideia aproximada de que sociologia se trata; por exemplo, o título deste capítulo: «Todos os fenómenos do universo são de origem física»; ou «A religião foi a ciência primitiva», como tinha afirmado anteriormente Comte na sua filosofia positiva. Apesar de tudo, o autor reconhece uma função compensadora e reguladora dos governos, e não apenas a «força bruta». E encontra aqui uma maneira de utilizar a física newtoniana na explicação dos fenómenos sociais, com os seus «movimentos de translação e rotação na evolução: o socialismo». Afirma também que a felicidade nunca pode ser individual, e que isto é igualmente válido no campo da criminologia. Portanto, nesta perspectiva, a sociedade explica tudo, justifica tudo. Em relação ao crime, tudo o que possa ser factor da natureza individual, hereditária, biológica, etc., é recusado porque quem é criminoso, quem é assassino, é a sociedade, não é o indivíduo. O indivíduo é apenas o fruto, o resultado do meio social. É mesmo dito expressamente que a radioactividade (que era a última descoberta do momento), o rádio, a constituição da matéria visível e invisível, são tudo formas da continuidade que conduz do mundo físico ao psicológico. Isto mostra bem a crença (monista e proto-religiosa) na unicidade do saber e como as aspirações desta sociologia são as de ser a ciência-quadro, integradora e explicadora de tudo o resto. E, de certa maneira, talvez pensassem que os obstáculos e os “inimigos” desta visão fossem nomeadamente o Direito, que se tinha pretendido previamente ser um pouco a ciência‑mãe social, e a própria Filosofia.
Esta visão totalizante da ciência conjuga-se bem com a visão totalizante e naturalista da anarquia (que, em algumas versões, se afirma mesmo ser “anti-cientifica”). Nalguns casos chega-se a dizer que a totalidade que pode ser abarcada pelo conhecimento tem, no fundo, chame‑se o que se chamar, o projecto da anarquia e a realização da anarquia, um ideal que muitos crêem poder estar ao alcance da mão.
Fecho assim este primeiro ponto, propondo a debate quatro questões mais circunscritas:
- 1ª, a relação entre anarquismo e ciência, ou a legitimação do doutrinarismo político pela aura científica. Ponho-a sob forma interrogativa: pergunto-me se o anarquismo (tal como outros movimentos sócio-políticos) não terá tido interesse em se legitimar por uma outra ordem de razão, de natureza científica; isto é, não discutível no plano das opiniões;
- 2ª,  a “contaminação” existente entre as concepções dos sociólogos doutrinários da época (Spencer, o mais reverenciado dos “sociologistas”, o inevitável Letourneau, Bentes, etc.) e a visão positivista (com o “método científico”, experimental, das ciências naturais), monista e integrativa da sociedade;
- 3ª, a diferença constatável entre aqueles e os sociólogos “neutros” (Durkheim, Weber) que propõem uma visão distanciada da sociedade. Estes são, a meu ver, os dois reais fundadores da sociologia académica, o primeiro estabelecendo à partida o pressuposto de que os factos sociais devem ser tratados como “coisas objectivas”, o segundo, propondo a já referida distinção fundamental entre O Político e o Cientista, o que nos remete para a re-discussão da famosa XIII Tese sobre Feuerbach do jovem Marx, onde se diz que os “filósofos” (ou seja, os detentores do conhecimento) devem deixar de “interpretar o mundo” para passar a “transformá-lo”. Eis certamente um tema de enorme actualidade, com o papel económico e político da ciência e da tecnologia e dos seus agentes nos dias de hoje;
- 4ª, como se fez a “(re)construção social” da génese da sociologia, tal como ela é ensinada hoje nas universidades? Este processo é muito curioso e não se circunscreve a Durkheim e a Weber, tendo os meus colegas seleccionado certos autores como, notoriamente, Marx, mas deixando de fora o seu contemporâneo e adversário Proudhon; tendo “recuperado” Tocqueville, mas menorizado sempre os contributos de Mosca ou Pareto, provavelmente porque falavam de elites, de líderes, de poder e de domínio, e não tanto de classes e de exploração económica; e esquecendo sempre os inter-accionistas simbólicos e, por exemplo, George Herbert Mead, se calhar por ser americano e não quadrar facilmente com a sociologia continental e francesa, muito fixada sobre os conflitos macro-sociais (e assim mais próxima das doutrinas socialistas) e mais desatenta às relações entre “actores sociais comuns” como pais e filhos, médicos e doentes, vendedores e consumidores, etc.
2º andamento: scherzo, moderato – ou O marxismo ganha ao anarquismo

Este “ganhar” é, para mim, uma leitura que legitima uma certa superioridade do marxismo mas que corresponde também a uma fase histórica determinada, que integra mais do que uma conjuntura porque corresponde a algumas décadas, talvez desde a década de 1920 (e certamente desde o fim dos anos 30) até aos anos 60 do século XX. Para não me exceder nesta apresentação, vou focar-me essencialmente sobre três observações analíticas.
O anarquismo foi um grande inspirador de causas mas também um desaproveitador de oportunidades. Inspirador de causas porque, olhando para a evolução social posterior à “idade de ouro” do anarquismo social, vemos que terá dado uma dezena de contributos significativos que nunca foram “registados” a beneficio próprio, isto é, que nunca “capitalizou”. No entanto, analisando com cuidado a evolução do conjunto da sociedade e de alguns dos seus vectores mais dinâmicos e desenvolvidos, podem-se reconhecer com alguma facilidade esses contributos, ideias inovadoras e inspirações iniciais.
O primeiro pode ser a própria ideia de movimento social. Com ênfase especial no caso do sindicalismo, mas visando e praticando em campos mais alargados, a ideia de movimento social como agente transformador da sociedade rompe com a ideia doutrinária, politica, de que tudo gira em torno de uma determinada ideologia política e que os seus simpatizantes devem lutar contra a linha politica adversa. Ora, aqui estamos num terreno diferente, que é mais um terreno de interesses, de interesses económicos no caso do sindicalismo, justificados pela defesa dos economicamente mais fracos, dos mais necessitados, mas que também é um terreno de condição social (os dependentes do seu salário e os beneficiários do trabalho alheio) e de identidades colectivas (onde se inserem parcialmente as individuais). Isto é algo que tem a ver com o objecto da sociologia, ou pelo menos que lhe não é inteiramente indiferente.
O segundo parece‑me ser o apelo à participação directa das pessoas, ao seu envolvimento nos processos sociais e políticos. Ora aqui está uma certa visão crítica das formas de representação até então vigentes no espaço político. Mas podemos pensar em outros exemplos. Certamente que, descontando os aspectos teológicos, o anarquismo está mais próximo do protestantismo (e nalguns casos esteve‑o efectivamente) do que da ortodoxia da igreja católica, porque um dos pontos comuns das diversas igrejas protestantes foi o de reduzir muito o papel intermediador da igreja e dos sacerdotes entre a pessoa e a divindade, e o de apelar à leitura directa dos livros sagrados sem a ajuda de “tradutores”, isto é, ao “livre exame”. O anarquismo trouxe, pois, uma ideia nova de “representação”, concedendo que possa haver delegações de poder político, porém sob a tutela de um “controlo social”. Apela à participação directa dos indivíduos comuns e, naquilo em que tem de haver representação indirecta, propõe a existência de um controlo da “base”, nunca a solução do “cheque em branco”.
Outro domínio que me parece historicamente significativo foi o do associativismo autónomo dos produtores. Essencialmente dos operários, mas também praticado noutros domínios. E outros pontos mais, bem afastados da “economia política” mas nem por isso menos cruciais:
- A questão da família e do casamento como um facto essencialmente inter‑individual, de procura, de ajustamento, de amor, de procriação de filhos desejados e constituindo uma unidade de grande afecto e responsabilidade partilhada de vida. Esta é a concepção hoje dominante (por exemplo, no direito) mas, à época, constituía uma aspiração inovadora defendida pelos anarquistas (e outros) mas muito criticada pelas ideias (e práticas) dominantes, marcadas pelo tradicionalismo, o casamento por interesse e pela vontade dos pais, a sustentação de amantes, as vinganças de “honra” (masculina), a subordinação da mulher e dos filhos ao chefe-de-família, etc.;
- A questão da educação como um processo social extremamente amplo que não pode já ser confiado exclusivamente à família, embora esta esteja no núcleo inicial e central do processo. A ideia de criar pessoas capazes de se autodeterminarem mentalmente, espiritualmente, e não serem meras reproduções do meio em que vivem;
- Depois, com base no anterior, a construção da individualidade. Hoje, confrontamo‑nos provavelmente com excessos deste processo. Quando falamos de individualismo, arrepiamo‑nos com a falta de solidariedade, etc. Mas à época, um século atrás, o atavismo social, as pressões sobre o comportamento individual eram de tal ordem (e isto em diversos meios sociais) que a libertação (para actos como o casamento ou a escolha da profissão) e a construção de condições de individualização própria parecia algo de fundamental. Contudo, os anarquistas, muito individualistas no melhor sentido do termo, nunca deixaram também de acentuar a importância das dinâmicas colectivas. Nomeadamente, os militantes tentaram encontrar formas de equilíbrio entre a integração na comunidade e a vivência da sua individualidade, o que não é fácil. Na minha tese académica sobre o movimento operário português, procurei evidenciar que os militantes estavam em parte em ruptura com o seu meio social de origem, com as famílias e com as mulheres que haviam escolhido para companheiras e, ao mesmo tempo, consideravam indispensável não se desligarem deles e delas, como condição para fazerem evoluir o seu meio. Tinham, portanto, um papel difícil e contraditório de “modernizadores”, mas ao mesmo tempo apoiavam-se num suporte que estava a ser minado pela sociedade moderna;
- E haveria ainda mais a assinalar relativamente a tópicos como a solidariedade e a cooperação, a ideia de emancipação social, a tentativa de compatibilização entre mundialismo e culturas locais e, por fim, a procura de um humanismo harmonizado com a Natureza.
Apesar destes enormes contributos, o anarquismo terá perdido no confronto com a influência marxista, que se agigantou e pareceu imparável durante várias décadas. Neste período, o anarquismo esgotou-se em querelas já ultrapassadas e fora de época (as discussões no seio da Iª Internacional, etc.) e não acompanhou o marxismo no alargamento da sua expansão para os campos da economia, da sociologia, do direito, da história, da pedagogia, da literatura, da arte, do desporto, etc.

3º andamento, andante, vivace – ou A sociologia contemporânea e as suas dificuldades

Em relação à sociologia contemporânea, frisarei apenas dois tópicos. Por um lado, aquela sociologia que acabou por vingar e que hoje existe, ensinada nas universidades e aplicada na análise social, é a que saiu da sociologia a que chamei académica, de Weber e Durkheim, não da doutrinária. Pode também verificar‑se que, ao longo das décadas do século XX, ninguém mais ousou propor uma “grande teoria” (como o marxismo), no campo da sociologia. O marxismo aparece disfarçadamente na sociologia das classes sociais, na sociologia política, na sociologia do desenvolvimento, etc., mas de forma diluída, não se constituindo como uma nova proposta ou uma resposta global, e por isso sendo mais correcto falar agora de “influência”. Aquilo que veio a desenvolver‑se foram, de facto, as teorias de médio alcance, ou seja, algo a meio caminho entre uma grande teoria (que ambicionava explicar todo o conjunto de fenómenos observáveis) mas que também superasse uma sociologia muito descritiva, muito agarrada aos próprios fenómenos e à empiria, sem uma visão um pouco mais ampla. E, neste campo, sucederam-se (e coexistem) o que se pode chamar de grandes “paradigmas teóricos”, uns gerados nas próprias ciências sociais (e em particular na sociologia), outros mais transversais e trandisciplinares: funcionalismo, estruturalismo, teoria dos sistemas, etc.
O segundo tópico que quero referir é o da análise do poder em sociologia, que, no dizer de Crozier, foi até há pouco tempo «um dos eternos ‘brancos’ (vazios) na teoria da acção social». Eis uma questão à qual o anarquismo foi sempre extremamente sensível. Como é que se constitui e mantém uma diferenciação vertical, hierárquica, ou uma desigualdade de condição económica que gera uma relação desequilibrada entre “actores”? É ela absoluta e inelutável? É algo de “negociável” e que pode evoluir? Eis, de facto, uma nova sensibilidade que encara a “exploração” (económica) como domínio (entre agentes, ou actores), e não tanto a ideia tradicional de exploração como apropriação desigual. Estamos, pois, perante uma concepção relacional do poder, que implica necessariamente um dominante e um dominado e que premonitoriamente tinha sido entrevista há séculos por um Étienne de la Boétie (em Discours sur la servitude volontaire).
Parece‑me ser este um ponto muito interessante para o anarquismo, que este autor colocou antes de qualquer outro e que vem a constituir um dos desenvolvimentos mais actuais da sociologia. A análise, dita estratégica, em termos de poder, não se usa hoje apenas para estudar o sistema político, as formas de governo, as relações internacionais ou a polemologia; aplica-se nas organizações e empresas, na compreensão dos processos de interacção pessoal, na família, no espaço público, no espaço privado, etc. Nota-se que Crozier, sendo um autor conhecido no seu domínio específico, não é um autor muito reconhecido, sendo geralmente considerado como relativamente conservador (como Darhendorf). Um contraste, por exemplo, com Bourdieu, a cujos textos reconhecemos uma grande subtileza e capacidade analítica, mas que se tornou realmente um “papa” da sociologia actual, parecendo fazer um jogo de póquer com base em conceitos marxistas e outros por ele inventados, e sendo um homem que simultaneamente se interessa por áreas temáticas especificas e requintadas que dizem respeito às classes altas, dominantes, mas tem uma presença (ou procura tê-la) nos movimentos sociais mais contestatários da actualidade. Por exemplo, o movimento ATTAC e o jornal Le Monde Diplomatique inspiram-se na herança de Bourdieu, e o seu simbólico apoio constituiu uma consagração e uma legitimação muito fortes a estas organizações. A questão que aqui se põe é, também e de novo, se os sociólogos não estarão muitas vezes a usar a cobertura da cientificidade para veicular as suas (legítimas) opções e opiniões pessoais e políticas.
Registando a emergência desta nova maior sensibilidade aos fenómenos do poder, aos fenómenos da opressão ou da dominação, parece‑me então mais significativo olhar para um autor muito menos conhecido que os anteriores, que é Eugène Enriquez. Não é sociólogo mas sim oriundo da psico‑sociologia ou da psiquiatria e questiona os processos de socialização individual, tudo o que pensamos quanto ao modo como as pessoas se desenvolvem nas fases iniciais da vida, infância e juventude. De facto, houve sempre uma grande preocupação em todas as escolas de pensamento social, e obviamente também no anarquismo, com a educação. Mas este autor chama a nossa atenção para o facto de termos vivido demasiado tempo com a ideia de que é possível criar uma sociedade onde a repressão e a alienação fossem banidas, “de uma vez por todas”. E ele nega esta possibilidade. Afirma que é da natureza da vida social e da vida dos indivíduos confrontarem‑se com o que “já está, antes deles”, com o status quo, serem “formatados” em conformidade e reagirem a essa “formatação”. Podem fazê-lo sob várias formas, a delinquência, a marginalização, etc., mas também através de processos mais racionais e compreensivos. Assim, o mais importante será tomar consciência destes processos e ser capaz de encontrar processos contrários de resposta, de desalienação. A conflitualidade existiu e existirá sempre, afirma – mas esta afirmação mina a ideia duma sociedade perfeita que animou todos os utópicos e também os anarquistas.

4º andamento, adagio, ou  O anarquismo negativo da pós-modernidade

Passo então ao meu último ponto. Há nos quatro temas que estamos examinando uma lógica de sucessão temporal, de épocas, e quero referir‑me agora à época que estamos a viver. E se evoco esta ideia de um anarquismo negativo, é porque foi essa a ideia que transpareceu para o espaço público, em particular na conjuntura que todos, ou parte, dos presentes viveram em Portugal a seguir ao 25 de Abril de 1974. Foi então claramente mais visível o anarquismo mordaz das “bocas” e inscrições murais dos “anarcas” do que as propostas sérias d’A Batalha, por exemplo – embora um tal estilo tenha vindo mais do movimento situacionista (de Debord e consortes) do que propriamente do anarquismo.
Já havido sido esta a imagem ilustrada dos muros de Paris em Maio de 68. E são do mesmo tipo as “provocações” e palavras-de-ordem que se repetiram em Espanha, após a morte de Franco. Tanto os mais antigos dos anarquistas como alguns dos mais novos ficaram incomodados e hesitantes em como lidar com este fenómeno. Socialmente, publicamente, o anarquismo em Portugal em 1975-76 não foi o do Emídio Santana ou o do Francisco Quintal; foi também mais do que o comício da Voz do Operário de 19 de Julho de 74 com os espanhóis clandestinos e essas grandes emoções momentâneas – foi, sobretudo, este anarquismo espontâneo, crítico mas inconsequente, que não cobrava direitos de autor.
Que vestígios, que sinais deste anarquismo comportamental parecem existir e perdurar na sociedade contemporânea? Existem essencialmente nos jovens, ávidos de prazeres, e nas classes médias, automobilizadas e computadorizadas e sem paciência para “aturar chatices”. Eu não julgo que eles se inscrevam propriamente no espaço da dominação, ou melhor, da resistência à dominação. Possivelmente não estarão também no espaço duma contestação radical. Mas diria que a liberdade de palavra e de comportamento é hoje maior do que nunca o foi – e isto pode ser entendido como o “céu” daquilo com que há algumas décadas os nossos antepassados anarquistas sonharam – mas que, simultaneamente, não é acompanhada por qualquer sentido de solidariedade social nem de responsabilidade moral.
Estamos nós hoje, uns e outros, de diversas sensibilidades, satisfeitos com este uso que é feito da liberdade de palavra e de comportamento? Tenho dúvidas. E essas dúvidas estendem-se até à nossa própria eventual responsabilidade de termos contribuído, através das nossas “fórmulas”, para essa desintegração e disrupção social. É certo que nunca o anarquismo ganhou uma revolução e exerceu duradouramente um poder político – o que é um dos seus bons méritos –, mas algumas poucas experiências históricas de “abolição do poder do Estado” auguraram pouco de aproveitável e bom para um futuro mais justo e pacífico.   
Em relação ao processo educativo, o que encontramos é mais a sua recusa e a evocação das suas dificuldades ou alheamento por parte dos educadores. Para muita gente, hoje, há sobretudo esta liberdade da ignorância, dos saberes parcelares e dos saberes erróneos, bebidos na televisão ou na Internet.
Na sexualidade, com certeza todos nós éramos unânimes a condenar a repressão (penal e social) que se exercia sobre certos comportamentos ou atitudes sexuais desviantes, contra certas pessoas e grupos minoritários. Hoje, não há já problema de repressão mas reclama-se contra a discriminação. Onde começa e onde acaba a discriminação e a repressão? E também o respeito pelos outros, pela maioria, quando parece já não se fazer diferença entre espaços públicos e espaços privados? É um terreno terrivelmente difícil. Mas parece‑me que grande parte das antigas aspirações a uma vida livre, do ponto de vista sexual, está mais ou menos assegurada. (Estamos a falar, é claro, duma região do mundo bem delimitada, mas que nos inclui a nós, portugueses).
Na expressão artística julgo que aquilo que domina é principalmente é a iconoclastia, o discurso anti-poder, a estética chocante e provocatória (contra quem? contra quê?). Na nossa actualidade “pós-moderna”, o anarquismo está, de facto, bem acompanhado. Mas será mesmo uma boa companhia?
Assim, um primeiro ponto de discussão seria o relativo aos efeitos do desaparecimento de obstáculos e constrangimentos à liberdade individual e colectiva: será que com tal mudança se criou o meio favorável à realização e ao desabrochamento pessoais a que antes se aspirava?
Um segundo e último ponto seria este: todos concordamos que há também vazios, obstáculos e bloqueios nos debates que se passam no meio anarquista. Por exemplo, o brasileiro Jorge Campos divulgou há algum tempo atrás Sete Teses sobre o Anarquismo onde enfatiza muito este tópico e formulou as suas alternativas e o que se deveria fazer, o que foi objecto de comentário pelo Carvalho Ferreira. António Franco evocou também recentemente a tendência liberal do anarquismo. Esta última plasma‑se hoje, por exemplo, num autor bem conhecido dos cientistas políticos que é Robert Nozick que, no fundo, propugna uma diminuição progressiva do Estado e um alargamento do espaço da sociedade civil, do espaço da “privatização”, mas possivelmente também da mercantilização (o chamado “Estado mínimo”). Não há tempo para discutirmos as teses deste autor mas posso assinalar que encontrei há poucos anos um inquérito sociológico feito nos Estados Unidos, que bem poderia ser replicado em Portugal e noutros países. Tratava-se de um inquérito de opinião simples, apenas com duas perguntas: perguntava-se às pessoas se, em relação ao presente, achavam que o Estado deveria intervir mais na economia (para a regular melhor, como agora se diz), ou menos. E no campo dos comportamentos individuais e da sociedade civil, se deveria haver mais ou menos leis ou intervenção do Estado do que aquela que hoje existe. Nos EUA (1996), a maioria pronunciou-se por uma maior intervenção do Estado na vida social e menor na economia (o que corresponde a uma atitude política interpretável como “conservadora”, que em Portugal poderia ser figurada pelo PSD). Das quatro alternativas de resposta possíveis, a posição menos apoiada foi a favorável a uma maior intervenção do Estado na economia e menor da sociedade (atitude que nos Estados Unidos é designada de “liberal” e que corresponderá a uma boa parte da nossa esquerda moderada, tipo PS). Finalmente duas atitudes surgem com idêntico score (na casa dos 23%): os “populistas”, que melhor seriam designados por “autoritários” porque reclamam maior intervenção do Estado tanto na economia como na vida social, e os “libertários” que, pelo contrário, desejariam ter menos intervenção do Estado quer na economia, quer na sociedade. Acho este resultado muito interessante se se quiser pensar o anarquismo em termos de acção política contemporânea e numa perspectiva eleitoral. Em termos de opinião pública, a sondagem parece mostrar claramente que haveria nos Estados Unidos espaço para um partido com um programa inspirado em Nozick. E convém saber que os candidatos apresentados pelo designado Partido Libertário em várias eleições presidenciais americanas recentes, Harry Browne (em 1996 e 2000) e Michael Badnarick (em 2004), obtiveram sempre scores na vizinhança dos 400 mil votos, a seguir ao “verde” Ralph Nader, embora longe dos candidatos dos dois partidos dominantes na vida política americana. É uma perspectiva que na Europa tem estado sempre amordaçada pelo peso histórico do movimento anarquista tradicional, que há um século chegou a ter peso social e político mas desde há muito carece de expressão e estratégia adequada aos nossos tempos.
JF / 20.Fev.2015

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