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domingo, 28 de dezembro de 2014

Achegas soltas sobre a sociedade em que vivemos (III)

E finalizamos hoje estas achegas com alguns pontos de discussão adicionais, de novo sobre questões mais objectivas, mas sempre ligadas a vivências do quotidiano e que podem ser experienciadas por qualquer pessoa de espírito minimamente disponível para tal. Mas seguir-se-ão mais algumas reflexões, essas derivadas de uma convivência íntima com a Sociologia, durante muitos anos.

O mundo urbano
Desde 2008 que, segundo dados da ONU, mais de metade da população mundial vive em cidades. Este galgar de fronteira estatística deve ser motivo para reflectirmos sobre esta fantástica mudança incrementada pela Modernidade, desde um tempo em que a principal força social se inseria no mundo rural e na paisagem natural e que, aliás, ainda foi o vivido pela maior parte da geração dos avós daqueles que constituem hoje a “terceira idade”.
O povoamento disperso ao sabor dos retalhos da propriedade rústica sobre a geografia e as aldeias congregadas pelas vantagens da convivência e da entreajuda marcavam ainda há apenas cem anos o habitat da maioria da população portuguesa, tal como acontece hoje em larguíssimas parcelas da Ásia, da África e da América Latina. Nestas regiões, porém, as condições de subsistência das populações camponesas e a miragem de uma vida melhor na cidade levaram já muitos milhões de pessoas a concentrarem-se em “bairros de lata” miseráveis nos subúrbios de grandes cidades, tornando-se urbanos, sim, mas geralmente de muito pior qualidade do que aquela que tinham nos seus anteriores lugares de residência. Podem agora aceder a luz eléctrica, água potável e beneficiar mesmo de alguns apoios proporcionados pelas autoridades públicas (saúde, escola, etc.), além das oportunidades de um mercado de compradores para pequenos produtos que sejam capazes de confeccionar, roubar ou revender; mas, em contrapartida, perderam os laços identitários das comunidades a que pertenciam e os saberes ancestrais de tirar sobrevivência dos recursos proporcionados pela natureza, e ficaram fragilizados face aos exploradores do seu trabalho ou às solicitações da droga, do álcool, da delinquência ou da criminalidade. É difícil apurar um balanço global desta mudança, mas uma coisa é certa: a responsabilidade do “bem-estar” destas populações deixou de estar nas suas próprias mãos para depender, em grande medida, de terceiros: de empregadores, de clientes e, sobretudo, dos agentes políticos, sejam eles de âmbito local ou nacional. As dinâmicas económicas e os orçamentos públicos contarão doravante mais para esse resultado do que a sua capacidade de trabalho, o aleatório do clima ou a sabedoria dos seus chefes tribais ou de clã familiar.
É claro que existem também populações com culturas urbanas profundamente enraizadas em que a identidade de bairro, de profissão ou classe social constitui um amparo, um recurso e uma orientação muito vivazes para os indivíduos. O progresso verdadeiro – simbolizado na legenda latina fortius, citius, altius (que se lê “fórcius”, “cícius”, “álcius”, significando mais forte, mais rápido, mais alto) a que se tem de acrescentar o saber e a moral, com o conforto material conveniente – resulta muito desta concentração e das interacções que ela engendra. As dificuldades maiores surgem porém é nas combinações entre aqueles diversos “mundos” e os tempos do seu agenciamento mútuo, sempre agravadas pelos efeitos de escala e o gigantismo destas aglomerações urbanas.
É nestas condições de cidade – física, material, antes de se atingir um plano de cidadania – que hoje se vão reformulando os termos e as fronteiras entre “o privado” e “o público”, entre os espaços (lugares, mas também momentos) de exclusiva interacção individual e as “terras de ninguém” do território que é de todos e onde se impõe especialmente uma responsabilidade da autoridade política (municipal, das leis nacionais, etc.) – com os respectivos comportamentos humanos adequados a cada uma destas situações (por exemplo: todos podem andar nus em suas residências; mas a sociedade proíbe que o mesmo se faça na rua).
Vejamos alguns exemplos decorrentes desta divisão.
Habitar implica escolhas e decisões arbitradas pelos sujeitos; porém, dentro de limites e barreiras definidas por constrangimentos económicos e sociais. Mas, secundariamente, revela também os seus gostos e preferências. O tamanho da habitação, a sua escala, tem logicamente a algo a ver com a dimensão da família, mas sobretudo com o nível de riqueza, real ou ambicionado, do habitante. E neste último caso entram em jogo não somente as facilidades do crédito (hoje aparentemente tão fácil de obter e às vezes tão difícil de honrar, no médio-prazo) como também o “exibicionismo” da família, quer se trate das mansões de luxo que enchem o olho da classe-média-alta, quer sejam as “maisons” dos nossos emigrantes ou as vistosas casas dos “brasileiros” do outro século.
Quem tem o poder de decidir uma determinada habitação, edificando-a de raiz ou aproveitando uma já existente, enfrenta sempre o dilema de que a mesma se submeta à ordem arquitectónica dominante na zona ou rompa com a mesma. Num ambiente urbano, foram os resultados destas escolhas que, paulatinamente, provocaram a renovação do tecido construído ou configuraram bairros novos e “cascos antigos”, conforme também os ditames das autoridades dos lugares, sujeitas a outras racionalidades. Hoje, parece que o gosto de inovação dos especialistas penetrou também nas províncias rompendo a aparente harmonia do povoamento existente nos ambientes naturais, com a “casinha rústica” do camponês pobre, o ocasional solar aristocrático e a aldeia homogénea (com os seus lugares funcionais e simbólicos bem distinguidos, como eram a igreja, a mairie, o lavadouro comum ou a residência do notável) a serem concorrenciados pela penetração das “vivendas de arquitecto”.
A vida urbana contemporânea está em permanente reinvenção. O “passeio público” oitocentista é hoje representado, não apenas pelas ruas, as praças e os jardins das nossas cidades, mas sobretudo pelos locais de encontro e de visibilidade geral onde as pessoas se mostram e se vêem e onde também são reconhecidas algumas “figuras públicas”, logo apontadas a dedo (ou apenas por cochichos): são os grandes espectáculos ou exibições culturais; numa versão modesta, são os centros comerciais, as esplanadas e praias; para públicos mais homogéneos, serão “as docas”, “a 24 de Julho”, “a noite” (em discotecas e bares), o Bairro Alto, o cais de Gaia ou a Ribeira do Porto; pode também ser a Basílica da Estrela, como acolhimento mortuário para qualquer personalidade mais conhecida; e, finalmente, é a televisão, que a cada volta projecta para o éter as imagens de figuras do jet set, de pivots e outros profissionais da comunicação, e de gente do povo em busca do seu momento de glória – ou seja, o espaço mediático por excelência. E, neste sentido, o meio urbano torna-se mais igualitário e quase-universal, estendendo-se nacionalmente a todo o território, incluindo as vilas e aldeias mais afastadas, e mundialmente, por momentos, sempre que estão em causa grandes espectáculos como uma entronização real (ou papal), uma noite de óscares, uns Jogos Olímpicos ou “Mundiais” de futebol.
Além do espaço público e do espaço privado, há ainda um outro “território” que é o espaço íntimo, este essencialmente psicológico, embora o exibicionismo comunicativo actual também esteja a atacar os contornos tradicionais desta reserva pessoal. No passado, a prisão, além da privação da liberdade de movimentos, actuava também impiedosamente este desnudar do indivíduo face às regras impessoais e ao poder absoluto do carcereiro: o espaço íntimo era então praticamente anulado. Hoje, qualquer coisa parecida com esta é repudiada socialmente sob o epíteto (óh quanto flexível!) de “humilhação”. Em contrapartida, desvendamentos voluntários de intimidades em “directos” televisivos (tipo Casa dos Segredos) fazem sucessos de audiência, promoção dos seus intérpretes e filas intermináveis de seguidores nas “redes sociais”!
Deixemos, porém, estes terrenos mais melindrosos e concentremo-nos apenas naquilo que se pode entender por domesticidades.
Etimologicamente, doméstico vem do latim domus, casa, com um sentido de proximidade e intimidade familiar, que se opõe ao espaço público, onde impera uma ordem determinada pelo poder estatal. Daí também as reservas legais que protegiam esse âmbito pessoal, desde a criminalização da “violação de domicílio” até à da “violação da correspondência”. Por outro lado, recorrendo a uma famosa figura-de-estilo cunhada pelo psicólogo Serge Moscovici – “Homens domésticos e homens selvagens” –, a casa familiar representa também, de uma certa forma, a domesticação dos impulsos e da agressividade natural que marca de maneira tão forte a vida animal.
Sob este prisma, se o espaço público anónimo é o cenário ocasional dos enamoramentos e das paixões (vide Alberoni), a casa e o espaço doméstico são o quadro habitual da expansão dos afectos e do amor, também dos hábitos e rituais mais particulares da cada individualidade e de cada relação inter-individual íntima: gestos, palavras, comportamentos e objectos materiais úteis ou decorativos que contêm significados únicos para aquelas pessoas. Porém, como diz a fadista, “Se é português, fala de dor / Mas quem o fez, fê-lo de amor”. Ou vice-versa. E os nossos tempos mais recentes encontraram maneira de derrubar algumas destas paredes, descobrindo o que de violência, dos mais fortes sobre os mais fracos (geralmente mulheres, crianças ou idosos) também podia abrigar-se atrás das paredes do “lar, doce lar”. Não é uma novidade. Mas também não devemos cair nos exageros que hoje nos impingem os meios de comunicação social, os juristas e os apóstolos de certas “boas causas”. Já Eça de Queiroz em registo de romance (n’ O Primo Bazílio e talvez mais algum outro) nos tinha advertido que uma criada de quarto podia ser tão perversa e exploradora dos descuidos da sua patroa como esta ser escravizadora daquela. E, não por acaso, o velho Código Civil “de Seabra” dedicava um dos seus artigos a regular o «contrato de albergaria ou pousada», para tentar defender “hóspedes” e “alugadores” dos excessos e ousadias que podiam entrever-se nessa forma de habitação próxima-mas-não-íntima que no nosso tempo, sobretudo depois de Abril de 74, caiu praticamente em desuso.
De facto, a nossa actual democracia trouxe alguma clarificação e mais verdade às relações entre familiaridade, dependência e exploração. Trouxe também alguma inovação à divisão-do-trabalho doméstico, agora um pouco mais partilhada (sobretudo na classe média) entre a mulher, o marido, os filhos, outros eventuais conviventes, as empregadas (externas e internas, estas hoje raras) e a externalização de serviços que anteriormente se realizavam portas-a-dentro (comida cozinhada, lavandarias, creches, etc.). Mas a resistência dos homens a assumir essa partilha tem prolongado a sobrecarga que impende sobre a mulher, hoje agravada pela sua plena participação externa no trabalho profissional.
Da domesticidade participam também os animais “de companhia”, que desde há milénios são vistos como os melhores amigos do Homem. Mas também aqui há lugar para todos os exageros e perversões, desde pessoas carentes que se afeiçoam mais aos animais do que aos filhos até aos bichos que supostamente são “de defesa” mas se transformam num instante em ferozes atacantes, passando pelos prosélitos da “protecção dos animais” à outrance.
Por último, uma referência aos comportamentos urbanos que se diferenciam dos rurais. Os portugueses já aprenderam a não cuspir para o chão nas cidades, que era um hábito que tanto repugnava os europeus que nos visitavam ainda há quarenta anos atrás (e esses já não davam facilmente com pessoas a urinar pelos cantos…). Mas, uma coisa é desfazer-se dessas excreções (aliás perigosas) no meio de um campo lavrado ou na floresta; outra, conspurcar assim o espaço público. Actualmente, é ainda impressionante observar na televisão esses gestos dos futebolistas, mas compreende-se que se trata de mecanismos biológicos inevitáveis, e onde não seria fácil ou possível proceder imediatamente à limpeza ou desinfecção do terreno, como se vê fazer nos campos in-door do vólei ou do andebol. De facto, tudo tem de ser ajustado às circunstâncias.
Passemos agora a encarar algumas manifestações visíveis do nosso corpo, nas sociedades de hoje.
Começamos por referir algumas posturas corporais, e o que elas podem significar.
Quanto à marcha, atente-se nas posturas de andamento das pessoas. Três situações se podem facilmente descortinar, além de outras: 1ª, a forma de andar em meio urbano e piso regularizado, previsível (calçada, soalho doméstico ou profissional, espaços públicos de lazer e consumo, escadas, ascensores, tapetes rolantes, etc.); 2ª, a forma de andar em caminhos ou carreiros rurais (apenas desmatados pelo uso ou aplanados rudimentarmente); e 3ª, a forma de andar a corta-mato, pelo terreno natural ou agricultado, irregular e não adaptado para a marcha ou o trânsito.
Pensemos nas vantagens e consequências do “trabalho da civilização”: para a 1ª situação, basta-nos a percepção do espaço a percorrer, que interiorizamos como padrão e que o nosso inconsciente utiliza para programar “automaticamente” os nossos movimentos e posições de pernas e pés sem termos que mobilizar para isso o nosso olhar e o nosso raciocínio. Estes ficam assim disponíveis para qualquer outra ocupação mais importante, útil ou agradável. Diferentemente, no caminho rural já devemos mobilizar uma parte na nossa atenção para, na marcha, não pormos um pé de maneira a que nos lesionemos, ou coloca-lo de modo a evitar o ramo, a pedra ou a cova. Finalmente, na deslocação a corta-mato temos forçosamente, não só de nos empenharmos quase completamente na adaptação ao terreno e na descoberta da melhor maneira de lhe superar as dificuldades, como somos forçados a ocupar uma parte da nossa inteligência com a resolução de problemas de orientação, com a “estratégia” da deslocação, bem para além das facilidades ou dos obstáculos que se encontrem nas proximidades.
Nós, os urbanos, esquecemos facilmente (ou nunca descobrimos) estas circunstâncias do nosso viver quotidiano. Esquecemos os privilégios de que usufruímos sem dar por isso. Que tal foi conseguido graças à experiência civilizacional, ao trabalho de gerações de trabalhadores e ao talento de muitos conceptualizadores, investigadores, arquitectos e engenheiros.
Nós, os urbanos, esquecemos facilmente (ou nunca descobrimos) que este nosso terreno plano de marcha não existe assim por todo o lado, em todo o mundo. Que milhões de indivíduos ainda hoje se descolam em caminhos rurais ou a corta-mato e não podem, pois, beneficiar do “automatismo” de deslocação dos urbanos. Têm mesmo de olhar para o chão que pisam e não podem, por isso, vislumbrar muito mais além dessa forma de sobreviver. Mas que também eles podem ser felizes assim, e são-no, frequentemente.
Aproveitemos, pois – nós, os urbanos – o nosso terreno liso e previsível (apesar de algumas pedras de calçada deslocadas e, às vezes, das fezes de animais domesticados), não apenas para acelerar o nosso passo e caminhar mais rápido (como temos vindo a fazer em cada vez mais aspectos da vida moderna), mas também para, marchando com segurança, poder pensar ou estar atentos a outras coisas. Aos outros, por exemplo.
A postura de sentados é totalmente diferente das anteriores, embora com elas articulada. A marcha contínua obriga a interrupções de descanso físico para as quais a posição sentada é a mais próxima e mais fácil. A quietude do sentado, sobretudo em artefacto adequado (a cadeira) é já um gesto de civilização, que mobilizou tanto sábias reflexões sobre a anatomia humana como a procura de uma postura humanamente digna, nem majestosa (como seria a monte equestre), nem rebaixada (como a genuflexão), e tão repousante como decisora, de trabalho complexo ou permitindo a troca convivial.  
Caso paradoxal e ambivalente é o sentado no chão. Se é uma postura voluntária, tal posição coloca a pessoa numa relação de proximidade à Terra que o viu nascer, que tende a igualizar todos os indivíduos entre si e nos convida a relativizar e fazer esboroar todo o castelo de vaidades e ambições que comandam a vida dos Homens. É, supostamente, essa busca que leva muitos dos jovens urbanos de hoje a sentarem-se no chão com facilidade, também talvez porque lhes chegaram ecos das técnicas de seat-in contestatário da geração dos seus avós. Se, porém, a posição é forçada, por imposição de alguém (caso dos prisioneiros de guerra), remete o obediente para o mais baixo da escala da dignidade humana.
Num parêntesis, referira-se o caso do escândalo mundial causado quando apareceram na imprensa fotos de prisioneiros árabes no Iraque em poses de tortura/sadismo sexual orquestradas pelos seus guardas americanos. Não deveria haver espanto: esse tipo de posturas correm banalmente em certa imprensa, na Net, em filmes, na cultura musical popular, etc., como fetiches de sexualidade sado-masoquista. Provavelmente, era esse universo de imagens, banalizado e tolerado, que estava na cabeça dos soldados que realizaram tais hapenings.
Finalmente, a estação jacente, para além do repouso do corpo (e da mente) que lhe é indispensável para dar continuidade à vida, é aquela posição, excepcional e momentânea, onde por uma vez somos capazes de encarar de frente metade do universo e onde, em definitivo, tudo se reduz simbolicamente a pó.
O vestuário e o arranjo visual do corpo merecem também umas linhas de comentário e reflexão.
Deixemos de lado os aspectos funcionais do vestuário como protecção do corpo contra o frio, a humidade ou o calor. Passemos também sobre a evolução dos gostos de época que podem ser observados nos bons museus do traje e os efeitos das modas temporárias que, de vez em quando, dão origem a exposições ou reportagens fotográficas elucidativas ou ficam plasmadas nos nossos álbuns familiares de recordações.
A apresentação em público das pessoas é geralmente comandada por preocupações de “bem parecer” ou como afirmação da sua personalidade. E uma das suas mais fortes motivações, sobretudo nas mulheres, é a de enfrentar os padrões sociais da fealdade e da beleza. (Umberto Eco já publicou livros acerca disto.) Obviamente, trata-se sempre de convenções de época e de meio socio-cultural, podendo as formas gorduchas e arredondadas serem muito apreciadas num tempo, e a magreza e os seios escassos fascinarem em um outro tempo. A maquilhagem de embelezamento feminina é antiga de milhares de anos. Mas os homens nem sempre ficaram de fora destas práticas e a tendência actual parece ser a de alguma sua renovação.
Mais complicado é o estigma social do “feio”, que muitas vezes afecta a auto-estima e mesmo o equilíbrio psíquico da pessoa: traços mais salientes e considerados desagradáveis no rosto (nariz grande, adunco, torto, de porquinho ou arrebitado; olhos mínimos e encovados ou demasiado grandes, ou estrabismo; bec de lièvre, lábios demasiado finos ou demasiado grossos; dentes encavalitados, faltosos ou estragados, má oclusão maxilar; cabelo encarapinhado, calvície, etc.); mãos sapudas, ossudas, polegares martelados, unhas em garra; pelosidade em excesso; obesidade ou magreza, com membros balofos ou então tubulares, busto e nádegas desmesuradas, etc. – eis características físicas que qualquer pessoa pode verificar possuir e que, sendo pouco apreciadas pelos seus congéneres, procurará corrigir, disfarçar ou acentuar pelo recurso à maquilhagem, a um penteado intencional ou a um talhe da barba conveniente, à dieta, à depilação, a um uso apropriado do vestuário ou mesmo à cirurgia plástica, hoje tão prodigalizada e já a preços um pouco mais acessíveis ou com cobertura financeira pelos serviços públicos de saúde.     
Por exemplo: na nossa época, ser gordo não corresponde aos gostos estéticos dominantes. Para o homem é mau; para a mulher, péssimo. Os atributos físicos observáveis – o look, o aspecto – são mais importantes para mulher porque, nos antigos códigos sexistas, era suposto serem elas a personificação da atracção e do despertar do desejo sexual, que vem desde o mito fundador (na nossa antiquíssima cultura judeo-cristã) de Adão e Eva. Mas a gordura mantém certos atractivos, por exemplo no que toca aos seios femininos. Aqui, o excesso é talvez pouco belo e certamente muito incómodo para a mulher que os carrega. Mas sempre se pode tomar tal excesso à conta da generosidade – da mãe-natureza ou da própria, dependendo da postura desta – a que se não deve ficar insensível. Também os volumes fofos e arredondados das nádegas da mulher sempre devem ter sugerido apetites particulares de índole sensual, tanto por similitude com a morfologia dos seios como devido ao apelo das abordagens traseiras, sobretudo em sociedades ou épocas de abrandamento dos interditos sexuais, como a nossa, depois de algumas outras registadas na história. Mas, rabos e mamas podem ser disfarçados e até tornados mais sugestivos, pela ocultação e porte do vestuário.
A boca e os olhos são os elementos mais expressivos do rosto da mulher. Imagino que qualquer adulta (e cada vez mais a adolescente) se deve interrogar sempre, ao espelho, ao menos uma vez na vida (e, frequentemente, muitas) sobre como responder ao desafio social da beleza. Apresentar-se de cara lavada, “tal como Deus quis”, ou corrigir-se, melhorar-se e maquilhar-se? Ao que se acrescenta necessariamente o corte dos cabelos mais condizente com a atracção da face. Na sua caracterização cénica, o palhaço necessariamente exagera, para despertar o riso; o comediante acentua, para ser percebido a distância; a mulher, essa tem de ser mais subtil, para chamar a atenção desde o longe e tornar-se irresistível ao perto.
As mãos e as unhas vêm logo de seguida. Órgãos anatómicos úteis e indispensáveis, também eles estão na primeira linha do modo pessoal, absolutamente único, de cada pessoa se exprimir e relacionar. Na mulher, as pulseiras e os anéis de adorno, e o corte e a própria cobertura das unhas por vernizes coloridos são de uso antiquíssimo nas câmaras reais ou nos lupanares mais sofisticados, cuja explicação remete necessariamente para a esfera da estimulação dos apetites sexuais masculinos. Um dia, casualmente, observei numa linda jovem marroquina em viagem de núpcias umas discretas pinturas ao longo dos seus membros, sugerindo jeitos e meneios de cobra, que só pude interpretar como sendo uma prenda de casamento especial, preparada em atenção ao seu noivo!
Nos últimos anos, a incessante inovação estética que predomina nas nossas sociedades atacou também esta área. À tradicional coloração vermelha dos lábios e das unhas femininas – procurada pelo seu efeito chamativo –, e aos mais discretos sombreados que rodeavam os olhos, seguiu-se o uso das mais bizarras cores e combinações de formas. Agora, quatro mulheres urbanas em cada cinco passeiam-se de unhas pintadas com as várias cores da paleta, abrangendo neste universo cada vez mais as adolescentes e mesmo crianças: parece que a atracção sexual está sendo substituída pela infantilidade do que é, simplesmente, “fun”. O negro repugnante dos excêntricos gotics é um sinal distintivo de marginalidade e provocação mas, além disso, esta não-cor tem hoje uma presença muito marcada noutras formas de afirmação pessoal, sem nada que ver com a moda “existencialista” parisiense dos anos 50. Um mistério permanece, contudo, por desvendar, nas modas actuais. Porquê tantas mulheres porfiam em pintar as unhas dos seus pés, quanto é certo que geralmente essas extremidades são pouco bonitas, irregulares, assimétricas e muito deformadas pelas calosidades e durezas do andar descalço, pelas ossificações trazidas pela idade ou pelas deformações provocadas pelo calçado a que hoje os pés são obrigados durante a maior parte da nossa existência?! Tratar-se-á de inusitadas formas de excitação erótica ou apenas o resultado de campanhas de marketing com lucros alargados para a indústria cosmética? Qualquer dia toca a vez aos homens…
De modo semelhante, os piercings e as tatuagens corporais invadiram em poucos anos grupos populacionais extensos, atravessando nações, idades e classes sociais (que apesar de tudo deixam nelas as suas marcas distintivas, como não deixaria de assinalar o sociólogo Bourdieu). Obviamente, esta moda, está ligada à procura desesperada de exibição narcísica do próprio corpo, mas é também resultado de uma dinâmica competitiva de inovação, que se assemelha talvez à dos graffiti que vão enchendo as paredes das nossas cidades.
Muitas vezes a barba crescida é, para a condição masculina, uma trincheira atrás da qual o sujeito se abriga contra as primeiras investidas dos olhares e questionamentos dos outros, procurando um tempo de retardamento para preparar a resposta mais adequada a cada nova situação, ou então, como a maquilhagem feminina, lhe serve de matéria de composição de uma imagem pública mais elaborada e correspondente a um arquétipo desejado. Alternativamente, a cara rapada, diariamente renovada (uma tarefa chatíssima, para a maioria), significa, de alguma maneira, um desnudamento face ao mundo que as mulheres não sentem, porque já são assim. A higiene tem aqui o seu peso mas a moda da barba-de-três-dias mostra como tudo isso conta pouco perante o maior cuidado com que os homens contemporâneos se arranjam para a vida social e para o confronto afectivo-sexual com parceiros certos ou eventuais. O vestuário é ainda o que mais conta mas os cuidados-do-corpo vão em crescendo.
Diferentemente de épocas anteriores e do que se passa noutras civilizações, as sociedades do “mundo ocidental” desenvolvem pressões industriais e modernizadoras para a igualdade no trajar. Os fatos de cerimónia das elites foram substituídos pelas “fardetas de palco” com que aparecem na televisão as estrelas do cinema e do futebol, e para os dirigentes políticos ou eclesiásticos o traje “formal” é agora o vestuário-de-classe-média, cada vez mais sem gravata para os homens e com as costas bem ao léu para as senhoras. As altas figuras da ciência e da cultura, essas vestem-se negligentemente, como se fossem “pés rapados”. Só os militares e os juízes ainda conservam os seus dólman’s ou becas tradicionais, mas cada vez mais fugidiamente, como se pedissem desculpa quando têm de os envergar para os respectivos actos cerimoniais. As hierarquias sociais parecem hoje fundidas numa única classe e gosto vestimentário; e até as roupas de homens e mulheres se confundem cada vez mais, e cada vez menos a “aliança” no dedo distingue a condição de casados e solteiros.    
Porém, simultaneamente, o individualismo, competição e narcisismo omnipresentes nessas mesmas sociedades constantemente desencadeiam comportamentos opostos àqueles, no sentido da diferenciação, singularidade e evidenciação, que só se obtêm pela inovação no porte e no vestuário, e frequentemente pelo arrojado e o estrambólico.
Por exemplo, as ousadias femininas passaram do decote ou da cava das mangas, sempre anunciando os seios, para a exibição da cintura, do umbigo e mesmo dos quadris, convidando mais directa e explicitamente a uma visita do olhar às imediações dos seus órgãos genitais/anais. O fato de banho “fio dental” – que deve ser extremamente incomodativo – ou a cueca do mesmo corte que se entrevê sob a calça de tecido fino, vão no mesmo sentido. E, sejam gordas ou elegantes, as roupas justas à pele desenham hoje o corpo de uma mulher, mesmo passeando na rua ou no centro comercial: no caso de uma paixão súbita, o amoroso já não tem surpresas quando chega ao quarto. Neste aspecto, a tolerância social alargou-se consideravelmente quanto aos cânones do “bom gosto” e todos se sentem no direito de exibiram as suas gorduras ou as suas magrezas, sem receio de dichotes ou reacções de espanto. E os homens não têm pejo de circularem pela cidade como se estivessem na praia, de xanatos e sovacos à mostra, demonstrando uma total insensibilidade aos odores fortes que se desprendem em lugares apertados, como é o caso dos transportes públicos. Aliás, mesmo no Inverno, muita gente se veste hoje quase tão ligeiramente como no Verão, de barriguinha à mostra e dispensando o uso de meias ou os abrigos impermeáveis contra a chuva.
Pensei em tempos realizar um exercício de observação sociológica sobre o uso do fato-de-treino como “analisador” de uma fase nesta evolução contraditória. Nesta peça de vestuário concentrar-se-iam, para as classes de baixo rendimento económico, as vantagens do prático, do simples, do barato, do igual, do normal, da rotina, do funcional (com a devida licença dos verdadeiros atletas) – no trabalho, no lazer, na vida doméstica, no cinema, na ficção científica. O decorativo, o rocócó, o diferente, o complicado, o caro, o distinto, o excepcional… – esses atributos teriam ficado definitivamente agarrados a uma época ultrapassada, agora só evocada em representações documentais ou teatralizadas, e já não vividas. Foi um projecto não concretizado, de que restaram umas ideias soltas que o meu colega sociólogo José Machado Pais poderia decerto explorar com a competência que se lhe reconhece, sobretudo quando focado nos meios juvenis e populares.
E foi pensando justamente nos jovens que então anotei o hipotético conceito (a desenvolver) de “vestar-se”: um barbarismo que procuraria concentrar numa única palavra a ideia de vestir, mas para ser-visto.
De facto, o espaço público indiferenciado é hoje o lugar de excelência da exibição e do jogo social dos confrontos de imagem dos mais novos. Raparigas com rapazes; rapazes com rapazes; raparigas com raparigas – com tendência para ignorar o que se passa à sua volta. Aí, comportam-se, face aos outros (aos mais velhos, aos profissionais em serviço ou aos agentes públicos), sem lógica nem respeito. Obviamente, não têm quaisquer valores que os orientem para serem atenciosos e reverentes para com as senhoras, os idosos ou os deficientes, serviciais para com as crianças e os necessitados, compreensivos para com os estranhos e forasteiros. Mas só aqueles a quem o meio familiar e a escola transmitiram referenciais lógicos que hierarquizem, estruturem ou valorizem prioridades ou partições, se isto é desejável ou aquilo indesejável, é que são capazes de aproveitar da melhor maneira – as mais das vezes em grupo fechado de amigos – a alegria do convívio ou da festa, como acontece actualmente com a proliferação de “festivais” de música ao ar livre onde acorrem milhares de jovens de todas as classes e nacionalidades. Aos outros, resta a bebedeira, a droga ou o disparate e a frustração. É certo que, como os primeiros, usam a fundo o benefício da desenvoltura e da liberdade: fazem o que querem, dizem o que lhes vem à cabeça. Porém, em tudo o resto, aceitam a “selva”, a lei do mais forte.
A “sociedade da abundância” colocou a “classe jovem” no centro do palco, mesmo quando já barbudos ainda se vestem com calções a cair dos quadris e o gancho entre os joelhos, como “bèbèzões”. Também os desviou da ética do trabalho e do valor intrínseco do esforço, devidamente recompensado. (E agora, em época de crise económica, nega-lhes o acesso ao emprego.) Ainda há duas gerações atrás, as relações pais-filhos eram marcadas pelo cumprimento de tradições e pela rigidez de papéis; hoje, são-no pela informalidade e o companheirismo. Os filhos são decerto tão amados como dantes, mas mais talvez para o prazer dos progenitores do que por um sentimento de dever. E sentem-se sempre pouco compreendidos, antes por incomunicação, agora pelas ocupações externas dos pais, que os compensam com exagerado acesso a brinquedos e outros bens lúdicos. Finalmente, o provimento de recursos educativos é-lhes dado mais pela escola (que o faz mais ou menos eficazmente na aquisição de conhecimentos objectivos) do que pela família, sem que ninguém consiga suprir este défice de transmissão de valores morais e de sensibilidade humana.
Para já, os resultados desta ascensão social da juventude não parecem ser muito encorajadores. Mas será caso para se falar de alguma “infantilização da sociedade”?
Por seu lado, usufruindo de um bem-estar nunca antes conhecido em termos de saúde e cuidados específicos, os velhos são hoje cada vez mais um “encargo” que a sociedade suporta com dificuldade, numa altura em que, pessoalmente, se é tentado pelo fascínio das grandes sínteses. Neste sentido, a dimensão “histórica” (à medida daquilo que cada um viveu) e as visões globais (racionais ou místicas, optimistas ou pessimistas) ganham uma nova atractividade para os sujeitos, no conforto das suas tamanquinhas, no grupo de pares que se entretém no jogo ou na conversa sem objectivo, ou sob o sol que aquece o banco de jardim. Quando se chega a essa altura da vida, olha-se para o lado e sentimo-nos alheios à maior parte das querelas que empolgam os nossos antigos colegas de trabalho ou que abrem os noticiários e telejornais. Quantos daqueles temas e problemas subsistirão daqui a vinte, quiçá dez, anos?
A experiência de uma longa vida tende também a tornar os idosos mais cépticos e desconfiados das mudanças. Agarram-se àquilo que conheceram, avaliam-lhe os aspectos positivos e negativos mas desconfiam dos que acreditam que “agora irá ser muito diferente”. Ouviram falar os velhos das duas gerações anteriores e medem melhor o alcance e os limites das desconfianças daqueles quanto ao que viria a seguir, que foi o decurso das suas próprias vidas. Tornam-se também mais cínicos, como podem ser disso exemplo as seguintes “tiradas”, um pouco ao jeito do magnífico “vencido da vida” que é Vasco Pulido Valente:
- Filosofar, é a atitude de quem coloca boas questões mas não dispõe de conhecimentos científicos para lhes dar um princípio de resposta!
- Os vaidosos nunca são tão inteligentes quanto se crêem!
- A quem não é brilhante, resta-lhe ser organizado!
(E em versão agravada:)
- A quem não é brilhante, resta-lhe ser honesto!
- Homem pequenino, carros enormes!
- Quanto mais escrevo sobre os outros, mais revelo de mim próprio! (incautamente)
- O anarquismo, tal como todos os revolucionarismos ou como a igreja, é um excelente meio para se passar por lá; não para permanecer!
- Viver com o povo é cansativo para quem tem a sorte de dispor de recursos de conhecimento mais avançados. Mas é sempre mais elucidativo do que não sair do círculo de pares!
Nos casos mais tristonhos, há ambientes “de reformados” (lares de idosos, salas de atendimento da segurança social, centros de saúde, etc.) que fazem evocar Dante face ao Inferno, dizendo à italiana: Voi che entrate qui, lasciate fuori ogni speranza.
Lendo há pouco tempo um livro brilhante sobre a história de França aí pelo século XIV, no período da guerra dos cem anos, saltou-me à evidência o contraste flagrante entre a idade provecta dos “chefes” das sociedades tradicionais de base camponesa (o conselho de anciãos da aldeia, o patriarca da família alargada nómada, o régulo africano, etc.) e a juventude imberbe que por aquelas épocas assumia a direcção política das nações europeias nascentes. No primeiro caso, sobrelevavam os valores da preservação do colectivo humano, os seus equilíbrios internos e a defesa contra as agressões vindas do exterior, fossem naturais ou de outros grupos populacionais mais belicosos. Naturalmente, a sociedade estagnava nos seus padrões habituais mas integrava fortemente todos os seus membros; e os maiores temores provinham dos arrebatamentos do clima e das devastações provocadas por epidemias, que as crenças religiosas (animistas ou deístas) procuravam apaziguar. No segundo caso – o dos reis e príncipes europeus, que ascendiam cedíssimo à governação pela morte precoce dos seus antecessores ou devido a manobras diplomáticas e guerreiras –, as decisões destes senhores primavam geralmente pelo empolgamento, a impetuosidade, a vingança, o desafio ou a aventura, só os moderando o conselho de algum bom ministro.  
Eis uma dicotomia que se extinguiu com o trunfo da Modernidade, onde as lideranças políticas são quase necessariamente “populistas”: nem ditadas por dirigentes impulsivos e irreflectidos, nem pelo amadurecimento dos mais experientes. Nestas circunstâncias, é também uma sorte que a capacidade para se fazer entender pelas largas massas da população possa aliar-se, na mesma pessoa, ao discernimento, coragem e visão do mundo indispensáveis para prosseguir uma orientação condizente com o “bem comum” de toda a sociedade.   
JF / 28.Dez.2014

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