Prosseguimos estas achegas com uma indagação por temas mais introspectivos, sujeitos a mil e uma formas de abordagem, a partir da subjectividade do ângulo de visão de cada um. E ainda virá um terceiro texto, de idêntica natureza.
Algumas questões particulares (ou não?)
Será o Gay Movement um “movimento alegre”?
A mim parece-me que nestes movimentos sociais defensores da maior liberalidade em matéria sexual – que integram os movimentos ditos pós-modernos – se conjugam e convergem várias coisas diferentes: por um lado, uma compreensível, saudável, libertadora e emancipadora reacção contra a opressão e as discriminações de que foram alvo desde tempos recuados, e o desejável reconhecimento tolerante de “factos naturais”, umas vezes assumidos sem complexos nem exibicionismos pelos protagonistas, outras de forma culpabilizada e exorcizada em comportamentos parvos e provocadores, e em retóricas jurídico-antropológicas para épater la galerie. Por outro lado, enquanto atitudes sociais exibidas por estas minorias, cremos existir também:
- A libertação descontrolada do reprimido, ou mesmo a embriaguez dos tabus violados, com desapiedada agressão às pessoas “normais”;
- Uma cultura estética do estranho, do bizarro, do feio;
- Uma ética do “tudo é permitido”, com um evidente prazer na tentativa de violação dos constrangimentos que nos são impostos pela mãe-Natureza.
Por exemplo: os Gay Pride Days, que são uma manifestação pública de mau-gosto e provocação, não serão equiparáveis (ou piores) em agressão da sensibilidade das crianças aos espectáculos tauromáquicos tão condenados pelo discurso “politicamente correcto”? Ou veja-se o que aconteceu há anos quando Luís Vilas-Boas, responsável por uma casa-abrigo de crianças abandonadas, considerou a adopção de crianças por pares homossexuais como uma “infelicidade para elas” (Público, Fev. 2004): levantou-se imediatamente um coro de protestos, não só por parte dos grupos LGTB mas também de vários psicólogos considerando as suas referências científicas como “totalmente ultrapassadas”. Assim, parece já não interessar a esta gente discutir a felicidade ou infelicidade da criança à luz dos seus direitos morais e do que o conhecimento científico nos pode elucidar sobre esta matéria (a importância da socialização infantil), mas apenas assegurar na lei e nos centros de difusão de referências comportamentais para as massas (comunicação social, arte popular, etc.) a consagração dos mais amplos “direitos dos adultos”. A postura já adquirida pelos defensores da “liberdade de orientação sexual” é hoje – com a suposta caução da ciência, “do que se faz lá fora” e da prática legal ou tacitamente já aceite entre nós – a de já nem procurarem criticar os “homófobos”, mas apenas os tratar de “serôdios”.
Ainda que este pareça ser um caminho irreversível no nosso mundo ocidental, vale a pena confrontá-lo com o que também já se aprendeu acerca da função social do preconceito: o preconceito (sexual, mas também racial, ou outro, contra os handicapés, em relação à mulher, etc.) tem uma função positiva de manutenção da conservação identitária de um grupo ameaçado. E constitui uma referência normativa, mas racional, para orientação de cada indivíduo nele participante. Além disso, permite que os indivíduos se entendam sem terem que se explicar longamente. O que não impede que, noutro plano e em outras condições, as pessoas o discutam ou se comportem diferentemente. De facto, na prática social, ao lado e apesar do comportamento preconceituoso, existe também a tolerância, a compreensão, a admissão das excepções à regra. A crítica social (preconceituosa) é um sinal de aviso, e tem de ser assumida pelo desviante como tal. Se quer persistir no desvio, sabe que tem de pagar esse preço de estar a pôr em causa uma norma fundadora ou estruturante da identidade do grupo de que faz parte. Mau mesmo, é quando a norma se transforma em lei, cuja violação passa a ser objecto de um tratamento formal, burocrático e dependente, na sua forma de aplicação concreta, da boa ou má-vontade do agente da autoridade pública. Isto, quer a lei proteja um comportamento de minorias, quer o persiga ou criminalize – e, claro, desde que não estejam em causa a vida ou os direitos essenciais do ser humano.
Imaginemos o contrário: a permissividade total a qualquer comportamento. A sociedade torna-se num mero somatório de indivíduos indiferentes a tudo e a todos os que não lhe são estritamente necessários para a prossecução dos seus interesses e a realização dos seus desejos. Já é muito assim nas nossas sociedades avançados do Ocidente. Às vezes, pode-se cair morto ou ser atacado numa rua de Paris e os transeuntes mudarem de passeio para fazerem de conta que não vêem. Mas num país como a Grécia, por exemplo, as pessoas reagem, intervêm, ajudam o aflito ou invectivam e afugentam (ou “escovam”) o agressor. Eis um aspecto positivo do espírito comunitário (preconceituoso) que ainda consegue persistir na sociedade actual.
Passemos agora a um outro tópico que, embora tendo alguma ligação com o anterior, deve ser discutido de forma independente porque tem um alcance que largamente o ultrapassa.
Referimo-nos às experiências de dor e de prazer. Como poderia uma ciência como a sociologia tratar estas questões tão essencialmente humanas como as da dor e do prazer, de modo certamente diferentes daqueles que são praticadas pela medicina e neuro-biologia, e também pela psicologia?
A primeira questão seria, sobretudo, a de identificar as eventuais regularidades com que as marcas das aprendizagens, normas e valores sociais afectam cada um dos sujeitos individualmente. Do ponto de vista metodológico, esta abordagem partiria assim da diferenciação entre duas realidades (de resto interligados entre si, mas de maneira complexa): de um lado, a experiência pessoal, subjectiva e vivenciada de situações de dor e de prazer por parte de cada indivíduo; de outro lado, as observações e os registos feitos, nas condições práticas da vida quotidiana corrente, sobre a maneira como essas pessoas podem relatar o modo como viveram no passado tais situações. De uma certa maneira, esta distinção corresponde, nos sujeitos, à diferença entre sensação (de dor) e sentimentos (de dor), a primeira sobretudo ligada ao sofrimento físico, a segunda à forma com posteriormente ela é recordada pela pessoa.
Um programa de entrevistas feitas há meses na rádio a pessoas que foram torturadas pela PIDE (Ana Aranha, RDP, “No limite da dor”) permitiu evidenciar as dificuldades deste exercício de separação de uma coisa da outra. E permitiria porventura a um investigador científico do problema rememorar na ocasião as suas próprias reacções e sentimentos perante episódios de sofrimento físico já experimentados, ainda que fossem casos “banais” de doença, choques traumáticos devido a acidentes, etc., para tentar aquilatar a extensão e profundidade dos sentimentos relatados. Mas mais dificilmente se poderia fazer idêntica experiência para o caso das sensações e sentimentos de prazer (por exemplo, o da evasão onírica proporcionada pela toma de substâncias psicotrópicas ou a recordação de episódios de grande plenitude emocional), que parecem ser “mais únicos” e só vivenciáveis por cada indivíduo, e portanto apenas referenciáveis por qualquer um outro em “modo intelectual”.
Uma segunda questão a explorar seria a das eventuais ligações entre os fenómenos do prazer e da dor nos sujeitos submetidos a tais vivências. Serão situações opostas e simétricas? Haverá um “espaço neutro” entre ambas? Como é ele “preenchido”? Provisoriamente, poderíamos considerar que sim – que são estados contrapostos, com uma “terra de ninguém” entre eles –, para avançarmos um pouco mais nesta especulação. Não sei se isto é minimamente aceitável pelas teorias psicológicas e biomédicas vigentes, mas como objecto de estudo sociológico parece-me aceitável que estes pressupostos possam ser aceites sem enviesarem a construção lógico-dedutiva-argumentativa seguinte. Outrossim, deveriam poder servir de base de apoio para essa reflexão.
Relativamente à dor (ou ao sofrimento), consideremos o sujeito comum, adulto, não afectado por situações patológicas graves (deficiências físicas ou mentais) nem por uma história de vida e de relações interpessoais mutiladora de um desenvolvimento psico-afectivo normal da pessoa, como poderiam ser, por exemplo, eventos traumáticos como a perda dos pais na infância/adolescência, violação sexual, o sofrimento ou presenciação de outras violências, ocorrência de acidentes, uma exclusão social grave (objecto de comportamentos racistas, perseguições religiosas ou outras). A dor aqui considerada seria, antes de mais, física, fisiológica, embora ela deixe marcas no psiquismo e comportamentos futuros do indivíduo. Mas não podemos deixar de lado o sentimento de dor puramente psicológico, por vezes tão ou mais violento sobre o sujeito do que a dor física, como acontece com o presenciar do sofrimento de entes queridos, com o “sentimento de perda” de alguém, o traumatismo ou desgosto profundo provocado por uma notícia grave (malformação congénita, um cancro, uma doença ou lesão incurável, um acidente devastador), uma surpresa de droga ou crime, ou mesmo a privação de elementos materiais ou simbólicos de especial significado para a pessoa.
Os “indicadores sociológicos” que possibilitariam a análise das manifestações de dor como fenómeno social – permitindo fazer comparações entre experiências individuais, tipificar diversos modos de vivência do fenómeno, etc. – deveriam provavelmente incluir registos estandardizados sobre a memória desses factos retida pelos sujeitos quanto à sua profundidade ou intensidade, localização/dispersão, ritmo, reacções mentais ou psicológicas, efeitos duradouros e comportamentos de compensação, temperamentos pessoais e alteração das opiniões e atitudes, etc. Isto porque partimos da hipótese de que a dor é essencialmente “externa” (animal): reagimos a ela, procurando afastar a sua fonte ou reduzir o seu efeito. Mas podemos também “interiorizá-la”, comprazendo-nos com ela até certo ponto (e não estamos aqui a pensar em situações psicopáticas); sublimá-la, da forma que se nos torna viável; ou combatê-la vigorosamente e mesmo “negá-la” – consoante as características e capacidades da nossa constituição psíquica e da história da nossa personalidade. Nestas condições, o “meio envolvente” será talvez apenas um coadjuvante externo ou um factor adicional de sofrimento e agressão, e não um factor determinante da forma como a dor nos atinge realmente.
Pelo contrário, o prazer parece ter uma base sensorial e fisiológica muito mais limitada, seja ela de natureza sexual, alimentar ou devida a um ambiente envolvente próximo (em termos de temperatura, humidade, pressão atmosférica, oxigenação, sonoridade, luminosidade, quietude ou vibração, etc.). Essa vivência pode ser intensa mas sempre muito mais efémera do que as opostas sensações de dor. O prazer será, essencialmente, um estado psíquico culturalmente construído.
Implicará provavelmente uma existência enriquecida por várias ordens de razão: imaginários (cenários idílicos idealizados que, às vezes, ganham concretização; ou outras vezes são frustrados, causando amargura, como algo que corre mal no casamento); contextos (de situações desejadas; relacionais, exigindo a presença e participação de outras pessoas); histórias vividas (referências comuns); ou projectos (amadurecidos e saborosamente acariciados). Para recorrer a uma situação extrema, parece plausível que um acto criminoso premeditado possa proporcionar um prazer profundo a quem o pratica, mesmo que ele seja de seguida socialmente sancionado e até sinceramente repudiado pelo seu autor.
Os prazeres solitários, apelam menos à presença de outros (realmente, parecem prescindir dela), mas muito à imaginação, ao intelectivo (por exemplo à descoberta ou à concretização de um objectivo sonhado).
Os prazeres interindividuais exigem a presença de um ou mais parceiros e tandem a concretizar-se num clima colectivo de comunhão, êxtase ou paroxismo vivido intensamente entre as pessoas envolvidas (o par amoroso; a amizade profunda; ou a afectividade pais-filhos). O número dos envolvidos não pode ser muito grande: uma grande bacanal implicará certamente falhanços e talvez até sofrimentos, que traem o objectivo do grande “gozo colectivo e ininterrupto” (uma imagem forjada sob o modelo do Céu cristão ou do Nirvana).
Entre o individual e o interindividual há talvez ainda lugar para considerar os prazeres solitários “em correspondência”, quando existe uma comunicação ou um diálogo entre seres que vai acrescentar alguma coisa mais ao que cada um já conhecia ou possuía. É frequente entre membros de determinadas elites (artísticas, científicas, religiosas ou espirituais) ou, às vezes, em formas de amor não concretizado ou impossível, mas desvendado.
Os prazeres colectivos são ainda mais parciais, limitados e ambíguos: podem ser uns dias de arrebatamento revolucionário; umas horas de catarse emocional após uma vitória guerreira ou desportiva; uns momentos de encantamento perante a excelência estética ou mágica de um espectáculo (de música, representação teatral ou circense, etc.). As suas vivências podem ser profundas e intensas mas estão longe de preencher ou esgotar a capacidade/necessidade de prazer dos indivíduos. Por isso é frequente em tais momentos de emoção colectiva que os sujeitos se aproveitem do clima e do contexto para tentarem ou experimentarem outras formas de prazer: interindividuais, intelectivo, etc.
Caso exista, o referido “espaço neutro” entre prazer e dor deverá ser essencialmente estruturado por uma “normalidade emocional” decorrente do temperamento de cada pessoa, dos valores que orientam as suas acções, do efeito das experiências já vivenciadas, da racionalidade que organiza o seu pensamento ou das crenças a que esse indivíduo adere sem reservas (visões, ideologias ou explicações religiosas). Em paralelo, existirá também o restrito espaço contraditório do prazer-dor onde (além dos casos patológicos do sado-masoquismo) as duas sensações se combinam de forma fugaz e complexa, como pode acontecer em certos instantes do acto sexual ou nas sensações de “alívio relativo” do sofrimento físico.
Finalmente, uma nota breve sobre sentimentos humanos como a inveja e a vaidade, e a relação que eles possam ter com valores como a igualdade e a liberdade.
Estamos aqui perante traços culturais profundos dos indivíduos que acabam por marcar e transparecer nas atitudes sociais. Entre nós – referimo-nos porventura, em geral, à sociedade humana mas, mais em particular, à sociedade portuguesa, caso se possa aceitar que exista um “temperamento nacional” – é frequente referir-se que as pessoas são sobretudo movidas por sentimentos como a inveja e a vaidade, embora possam camuflá-los sob o pretexto de valores considerados nobres como a igualdade ou a liberdade. Tais características parecem ser ainda mais acentuadas em determinados meios profissionais ou campos de interacção humana, como o artístico, o da ciência, o da política e outros. Lembremo-nos que o primeiro-ministro António Guterres deu nas vistas quando qualificou como “movidas pela inveja” as reivindicações de aumento de remunerações que começavam a ultrapassar a sua conhecida “capacidade de diálogo”. Até que ponto é realmente a inveja que sustenta alguma espécie de conflitualidade social ou, pelo, contrário, uma atitude positiva referente à justiça ou à equidade?
Tem sido notado que o último verso com que Camões encerra Os Lusíadas se refere justamente ao sentimento da inveja: «[…] De sorte que Alexandre em vós se veja / Sem à dita de Aquiles ter enveja.». Este choque de sentimentos entre heróis históricos e gregos míticos seria a maneira subtil de denunciar o que teria largo curso na pátria, já em época «[…] Duma austera, apagada e vil tristeza. […]». Também António Lobo Antunes, “psicanalista da alma portuguesa”, escreveu um dia com a mordacidade de que é capaz que, «com o passar do tempo, há dois sentimentos que desaparecem: a vaidade e a inveja. A inveja é um sentimento horrível. Ninguém sofre tanto como um invejoso. E a vaidade faz-me pensar no milionário Howard Hughes. Quando ele morreu, os jornalistas perguntaram ao advogado: ‘Quanto é que ele deixou?’. O advogado respondeu: ‘Deixou tudo’» (Diário de Notícias, 2004).
A convocação da morte ou de um definitivo e inapelável julgamento divino são hoje de pouca eficácia para moderar os comportamentos humanos, e torná-los mais reflectidos, racionais e cooperantes. Decerto que a educação – no seu sentido mais amplo, e passando pelo quadro familiar, a primeira socialização, a escolaridade e o galgar da sempre perturbante adolescência, mais a entrada na idade adulta – detém um peso e uma responsabilidade muito maiores, como não tem deixado de acentuar o psicanalista Daniel Sampaio (que, recuperando a expressão de D. João de Castro e já utilizada pelo historiador Luis Filipe Barreto, reeditou recentemente o livro Lavrar o Mar, onde se procura «um novo olhar sobre o relacionamento entre pais e filhos»). Mas o “meio envolvente” dos sujeitos – a comunidade de base, a classe social, o quadro ecológico onde se vive, a governação política, a comunicação social e a cultura de massas (a que é impossível fugir) – constitui uma “escola” tão ou mais importante do que aquela. E nem a primeira é exercida sempre no melhor sentido, nem a segunda deixa muitas vezes de ser “deseducadora” e fonte de maus exemplos, de entre os quais cito três: a exibição de imagens de destruição e violência (nas notícias, no cinema, etc.) de maneira quase-obsessiva; muita expressão de criação artística “pós-moderna” de tipo niilista e doentiamente narcísica; e frequentes casos de inaceitável comportamento pessoal por parte de governantes e de outras figuras públicas de referência, que não são sancionados com o rigor que mereciam, antes passam geralmente impunes.
O valor da liberdade é absolutamente fundamental, tanto para a realização pessoal como para a estruturação de uma sociedade emancipada. Mas a solidariedade, a tolerância e a justiça são não menos indispensáveis para a construção de uma vida colectiva humanizada. Ora, a primeira encontra-se actualmente consagrada nos países ocidentais e em boa parte do mundo marcando decisivamente a comunicação e a cultura universais, porém, de uma forma muitas vezes excessiva e desregrada ou libertina e, sobretudo, sem atender minimamente aos valores da “igualdade e fraternidade” também proclamados pelas Revoluções Modernas. A solidariedade existe em algumas magníficas iniciativas da sociedade civil e, com mais dificuldade, em mecanismos institucionais no interior dos Estados e na comunidade internacional; mas a agitação e agressividade da vida urbana quase a fizeram desaparecer nos comportamentos dos cidadãos e nas relações de proximidade (de residência ou de trabalho). A tolerância (ou compreensão/aceitação) face à diferença está inscrita em muitas leis formais (devido ao voluntarismo de juristas e militantes de certas causas) mas está longe de ser observada nos comportamentos sociais: uns julgam-se no direito vindicativo de resgatarem submissões históricas ou descobrem as delícias proselitistas dos neófitos num mundo que quase baniu a espiritualidade; outros, sentem-se agredidos injustamente e ameaçados num quadro de vida racional que julgavam partilhável por todos; alguns envolvem-se mesmo no paroxismo da destruição e da violência; e a maioria refugia-se no isolamento do seu quotidiano, defensivo e desconfiado de tudo e de todos. E a justiça institucionalmente organizada – tal como a governação – vem perdendo credibilidade em muitos países, desde alguma periferia europeia até regiões semi-desenvolvidas de outros continentes, mercê de fundadas suspeitas de corrupção, nepotismo e conluios de interesses entre ricos, governantes e poderosos, ainda que todos façam declarações de isenção e dedicação à causa pública.
Note-se que estamos aqui a falar sobretudo de valores legitimados pela reflexão científica e doutrinária, como é o caso da aceitação das diferenças, da igualdade ou da justiça. O pensamento legítimo – da filosofia, da cultura ou da ciência – define os seus valores como conformes, elevados e absolutos: bem/mal; amor/ódio; individuais/colectivos; conceptuais/senso comum; etc. Ao lado destes, a inveja ou a vaidade, a ganância ou o apetite de poder, são valores hoje não-legitimados, considerados rasteiros, mesquinhos, impuros. Contudo, são estes talvez os mais permanentes da “alma humana” e por isso tão bem retratados no teatro grego da antiguidade como nas obras de Camões, Cervantes ou Shakespeare, ou talvez ainda em Pessoa.
As interacções sociais, especialmente as do âmbito inter-individual e dos restritos grupos de conhecimento pessoal, são, de facto, muito marcadas por sentimentos como a inveja, o ciúme, a vaidade, a competição, a mania da superioridade ou mesmo a tentação de dominar ou apoucar terceiros. Mas, como é óbvio, também existem acções desencadeadas pela entreajuda espontânea, a simpatia, a delicadeza ou a compaixão, que são referências que consideramos altruístas, fonte e produto de humanidade. Neste plano, pouco valem as leis, as grandes proclamações ou mesmo as “regularidades sociológicas” que alguns possam sabiamente formular sobre os nossos comportamentos colectivos. Vale, como dissemos, a educação, bem como a capacidade para reagir do melhor modo ao meio social envolvente, com a carga de aspectos positivos e negativos que este necessariamente contém.
Um último tópico que aqui queremos referir de passagem prende-se com as noções de cortesia, etiqueta e boas maneiras, tema que me foi sugerido por alguém que muito prezo, embora eu lhe tivesse logo respondido que me seria difícil fugir aos confrontos com as “receitas” de Paula Bobone ou a supostas nostalgias aristocráticas.
Como se imagina, os rituais de corte na Europa, particularmente entre os séculos XVII e XIX, consistiam sobretudo em gestos e reverências sofisticadas que tinham a função de colocar cada qual dos membros (ou convidados) da corte real no seu devido lugar, o qual era, em última análise, determinado pela vontade arbitrária do Rei. A concessão de graus nobiliárquicos (com a sua rigorosa hierarquia), a atribuição de cargos e funções políticas, executivas ou simbólicas, a dádiva de quaisquer mercês ou os apetites (sexuais ou outros) do monarca determinavam largamente esses lugares mas, antes de se chegar à sua última palavra, havia um larguíssimo campo de manobra para todas as intrigas, seduções, armadilhas e mesmo conspirações. Tudo, porém, sempre dentro de um rafinement de poses, gestos e ditos nunca mais alcançado. E com larga prodigalidade para com os artistas de corte. Isto seria matéria de estudo talvez para uma antropologia das classes nobiliárquicas, como foi matéria e objecto de denúncia e escândalo (por desprezo e desigualdade social – porque não conheciam o que se passava em outras partidas do mundo) para os exaltados revolucionários republicanos que, em Paris, demoliram um dia as paredes da Bastilha e cortaram o pescoço aos seus reis. Contudo, se as poses e os gestos são encenações (neste caso, muito cuidadas e ensaiadas), os ditos e as falas são bem mais interessantes do que isso. Porque revelam um domínio alargado da linguagem e a inteligência de a saber usar em momentos próprios (absolutamente irrepetíveis), com as entoações requeridas e as intencionalidades apenas desveladas pela equivalente inteligência dos interlocutores ou ouvintes – ou, como se costuma dizer, com segundas intenções (ou terceiras… ou quartas…) – e inevitavelmente sujeita a réplicas sem fim. Molière, por exemplo, que era um homem do povo, teve o talento e a perspicácia de compreender a fundo estes “jogos de corte”, de com eles fazer rir os próprios cortesãos e assegurar algum tempo de subsistência à sua troupe, ao mesmo que minava as bases da instituição. Sobretudo, graças à excelência da palavra.
Ora, é talvez sobretudo essa excelência do texto e do dizer que tememos esteja actualmente em desaparecimento. É claro que, assim como nos relacionamentos amorosos a delicadeza dos gestos e dos jogos de sedução elevam a excitação e o prazer sexuais a níveis superiores de humanidade, muito cima do coito banal (respeitável, mas essencialmente biológico), também a elegância e sofisticação dos relacionamentos interpessoais acrescenta interesse e valor a qualquer contacto entre pessoas. Isto passa por posturas corporais, gestos e regras de vida em sociedade (fórmulas de tratamento, precedências, deferências, etc.) que não caem do céu, e só se apreendem e mantêm quando são praticados e ensinados aos mais novos ou aos que só agora chegam às fronteiras de uma cultura particular que até então desconheciam. A família, os cerimoniais civis e os círculos de convivência seleccionados têm aqui um papel preponderante; a escola, nem tanto (embora se admita que deva fazer um esforço nesse sentido). E são as modificações em curso na estrutura e nas trocas familiares, bem como a des-formalização (ou re-formalização) das festividades e celebrações sociais que, ao menos transitoriamente, estarão a contribuir de modo profundo para a perda de tais refinamentos. Com o que isso implica de abaixamento da qualidade da vida colectiva. A democracia devia aspirar também, não ao luxo das classes dominantes, mas à maior extensão possível do usufruto dos melhores bens culturais que, durante uma época, foi também monopólio dessa elite.
JF / 16.Dez.2014
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