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domingo, 4 de maio de 2014

Brincar com o fogo

Aqui há tempos, uma pessoa (que estimo) falava-me das suas angústias de sexagenário. Não, não eram os cortes na pensão de aposentado, que ainda lhe ia permitindo viver com dignidade. Não, não eram os desenganos com os ideais das esquerdas. Nem sequer sobre a falência demográfica e financeira do modelo social europeu, ciente que estava de que as novas gerações, mais bem preparadas do que as nossas, já estavam a dar respostas de adaptação ao fim dessa época. E também não eram os enfraquecimentos que o seu corpo ia registando ou o temor do que, nesse aspecto, lhe poderia sobrevir.
Embora com alguma confusão e atabalhoamento, o meu amigo foi-me falando da preocupação que lhe causava a actual evolução da escrita e da linguagem, mercê da disponibilização maciça dos artefactos das TIC (tecnologias de informação e comunicação) e de fenómenos sociais cada vez mais globais como sejam a emergência de uma única “cultura comunicacional”, a generalização da língua inglesa, a fragmentação do conhecimento que é ensinado nas escolas e a adopção irrecusável de modas comportamentais, sobretudo por parte das populações mais jovens. Ao proporcionarem meios de expressão individual como o telemóvel e a Internet, as pessoas ganharam uma liberdade antes inimaginável, mas também com riscos que a maioria nem sequer vislumbra. É da natureza deste tipo de mensagens que a linguagem nelas empregue se reduza a códigos sincréticos, culturalmente muito pobres. Por outro lado, com a enorme acentuação posta pelas sociedades actuais nos valores hedonistas, na sexualidade e no corpo, a “linguagem” falada no espaço público (e de seguida no inter-pessoal) é sobretudo a das emoções e dos afectos, o que tende a reduzir o leque de avaliação pessoal ao mínimo: gosto/não gosto; dá prazer/magoa-me; etc. Ao lado disto, sentencia-me ele que a questão do Acordo Ortográfico é uma coisa pequena.
Outro ponto das suas angústias, também a este ligado mas com outros protagonistas e responsáveis, era o da educação escolar que vamos deixando instalar. É excelente que todos saibam mais, que a maioria atinja e se aproprie de instrumentos básicos do conhecimento racional como são a linguagem formal (dita, lida, escrita e pensada), a matemática elementar e a estatística, as noções mais importantes do transformismo e adaptação da vida biológica às condições físico-químicas que o meio ambiente lhe impõe! – reconhecia ele. E prosseguia: – Deve ser com base nisto que as avaliações internacionais dos sistemas educativos, tipo PISA [* sobre o qual se pode ler o E-Working Paper de Anabela Serrão nº 162/2013 do CIES-IUL], têm vindo a ser cada vez mais baseadas na língua, na matemática e nas ciências físicas, o que corresponde, de facto, ao modelo da formação científica que foi sendo construído ao longo do século XX e à integração mundial que paulatinamente vai avançando! Mas, perguntava: E as humanidades? Os valores? A filosofia (ou outro qualquer questionamento lógico e humano que lhe faça as vezes)? A história? Estão a ficar estas matérias cada vez mais relegadas para os “particularismos locais” ou para uma espécie de arqueologia dos saberes, numa universidade(/universalidade) onde o que conta realmente é o poder e o domínio daquelas ciências que são imediatamente produtoras de tecnologias?
Suponho que o meu interlocutor provém da filosofia (quiçá talvez com laivos de espiritualidade ou longínquas influências da religião da sua infância), mas ele prossegue numa direcção que me interpela. Foi um erro termos deixado que as “humanidades”, as “letras”, fossem integradas e aceites na universidade como “ciência”! – diz-me ele. E continua: passámos a ter que respeitar metodologias de prova assentes em factos empíricos, mensuráveis, e isso retirou espaço à livre interrogação, à própria especulação. Se já não temos uma religião que nos dê, de barato, uma representação harmoniosa do mundo e da vida, o que nos resta? Sem filosofia, sem história, sem pensamento, sem poesia e imaginação criativa, tudo se reduz a números e fórmulas: no limite, à matemática e à economia. E nada melhor para confundir e manipular pessoas do que esgrimir estatísticas ou pôr fim a um questionamento pela invocação de uma “lei científica” que nos escapa! Como estes ingredientes, como pode alguém governar a sua vida, e as nações encontrarem racionalmente o seu caminho?
Tentei travar este discurso, que me estava a incomodar. Lembrei-lhe logo a frutuosa tensão que a sociologia moderna lograra com uso simultâneo dos “métodos quantitativos” de análise e dos estudos intensivos monográficos ou de “observação participante”, com um rigor incomparavelmente superior à “sociologia doutrinária” de há um século atrás. Não sei se ele se apercebeu disso, mas a minha argumentação neste sentido foi também logo diminuída pelas dúvidas que não deixam de me assaltar sobre as razões da incapacidade actual da minha ciência em forjar uma nova “mega-teoria”, compreensiva do mundo do século XXI. Ou sobre os “ataques” aos seus “domínios reservados” por parte de disciplinas vizinhas como a psicologia social ou a “história actual” (e em menor grau o “serviço social”, a “comunicação social” e a ciência política). Referi-lhe que aprofundara recentemente a leitura do triplo livro de Castells sobre a Era da Informação, e que o considerava o esforço analítico mais amplo e conseguido sobre a sociedade contemporânea, mas longe de ser uma nova “grande teoria”. O meu amigo não se impressionou; algo cinicamente, lá me deixou entender que eu estava era sobretudo preocupado em defender a “minha quinta”, ou mesmo o sentido da minha vida…
E ele mudou de tema. Era agora a fronteira cada vez mais ténue e porosa entre domínio público e domínio privado ou intimidade. – Quando estas matérias chegam ao campo do direito, é sabido que, em vez de maior racionalidade, o que se constituem e organizam mais eficazmente são grupos de interesse, lóbis, campanhas orquestradas e debates “trucados” na opinião publicada e na cabeça dos mais simples! Mas eu já quase não o escutava.
Recordo-me que o seu último tema era qualquer coisa que girava à volta do real e do virtual. Argumentava que, do mesmo modo que a escrita e a divulgação da imprensa constituiu uma revolução cultural fundamental na história da Humanidade, a “pequena caixa que mudou o mundo” há meio século abriu a porta para a emergência do áudio-visual e uma outra forma de pensar, comunicar e sentir: Magnífico! exclamou; mas também significa a jaula escancarada para a soltura de novos demónios! Etc. Esgotado, eu dei-lhe, desde logo, toda a razão…
Estava na hora de cada qual ir à sua vida. Pela minha parte, balbuciei ainda que ele via as coisas demasiado fortes, que esses processos nunca cumprem os piores presságios que nos atemorizam, que todas as grandes mudanças resolvem uns problemas e criam novos, ou que as sociedades evoluem por ciclos. Disse-me que sim, mas percebi claramente que continuava fixado nas suas.
Mas a conversa mexeu comigo. Será que ele teria mesmo uma parte, ao menos, de razão? E que, de andarmos todos a brincar com o fogo, ainda nos queimamos?

JF / 3.Mai.2014

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