Vem esta crónica a propósito de mais um caso que foi noticiado há tempos pela imprensa de litígio jurídico laboral sobre o uso privado de instrumentos de telecomunicações por um trabalhador durante o período de trabalho.
De facto, o uso do telemóvel entrou de tal maneira fundo nos hábitos pessoais que as pessoas, desde muito jovens, tendem a recorrer a esse meio de comunicação interpessoal de modo absolutamente irrestrito, atropelando alegremente pela mesma ocasião outro tipo de conversas, de deveres ou comportamentos. Lembremo-nos do “nível de voz” com que muitas pessoas falam ao telemóvel em espaços públicos, supostos serem zonas onde é possível a conversação interpessoal com um nível de ruído-ambiente compatível (o chamado bruá-á), tais como salas de espera, veículos de transporte público, estabelecimentos de cafetaria ou restauração, mas em que tais pessoas não têm pejo em incomodar visivelmente todos os outros com o despacho dos seus assuntos profissionais, a exploração dos seus negócios ou a exibição dos seus assuntos privados, não raras vezes com manifestações de claro exibicionismo. E sabemos também como, já com preocupações de dissimulação, outras pessoas não resistem a fazer uso do telemóvel em zonas de silêncio ou situações absolutamente impróprias tais como salas de aula, bibliotecas, museus, salas de espectáculo, durante uma consulta ou acto profissional, sessões solenes, funerais ou mesmo no decorrer de serviços religiosos. E apesar das perseguições policiais, muitos insistem em fazê-lo ao mesmo tempo que conduzem automóveis.
No presente caso-pretexto, a questão põe-se sempre que usar o telemóvel para comunicar com alguém ou atender as suas chamadas interrompe ou prejudica a execução da tarefa laboral que está (ou devia estar) a ser executada. Naturalmente, há casos em que a urgência ou a gravidade que motiva essa comunicação deve sobrepor-se aos deveres laborais do trabalhador. Mas, fora desses casos, não será um abuso tal tipo de comportamento, sobretudo quando sai prejudicada a eficácia produtiva? No local de trabalho, o assalariado é pago em função do tempo que ai passa e de uma determinada capacidade produtiva esperada, e não é indiferente a este resultado qualquer interrupção ou perturbação que possa ocorrer, muito menos uma prática que tende a tornar-se norma social. Os formalistas mais rigorosos dirão mesmo que o que o empregador comprou foi justamente o tempo do assalariado, que assim deixa de pertencer a este em pleno.
É claro que sindicalistas e juristas do trabalho dirão que o usufruto do tempo de trabalho de um assalariado não é um valor absoluto e não pode beliscar certos direitos humanos, entre os quais hoje se justificaria integrar este “direito de comunicação”. Têm razão nisso, mas só até certo ponto. E como o estabelecimento de regras formais (leis, regulamentos, termos contratuais) tem de obedecer a critérios de universalidade e não ad hominem, deveríamos concluir que o ajuizamento da justificação imperiosa, da razoabilidade ou do abuso do recurso ao telemóvel durante o tempo de trabalho deveria ficar sob a alçada (disciplinar ou outra) da gestão empresarial, em diálogo de compreensão (tanto num sentido como no outro) com o trabalhador.
Um problema da mesma ordem se coloca quanto ao uso do computador no espaço de trabalho. O aparelho é pertença da empresa, que também paga a manutenção das suas ligações externas e internas. Pois já têm sido noticiados casos de litígios jurídicos porque o empregador sancionou um trabalhador que dele se servia para fins pessoais, jogos distractivos ou até para actividades profissionais por conta própria, surgindo a defesa a argumentar com “direito de acesso às tecnologias de informação” do cidadão.
O que se passa hoje quotidianamente nos espaços de trabalho, passa-se igualmente em outras circunstâncias, com consequências menos graves nuns casos, mas mais graves noutros. Nos postos de atendimento ao público, seja em empresas, seja em serviços oficiais, o mesmo comportamento do trabalhador interromper a sua tarefa para responder ao telemóvel e embrenhar-se numa conversa privada atinge também, directamente, o cliente em vias de ser atendido ou aqueles que esperam a sua vez. Dir-se-á que a situação recíproca também ocorre e que, por isso, o cliente tenderá sempre a ser tolerante e compreensivo para com essa interrupção. Trata-se, pois, de uma falha de comportamento laboral relativamente pouco grave, até porque, se a situação se prolonga ou toma laivos de excessiva, desencadeará por parte do cliente uma reacção de desagrado ou censura que pode até ser o melhor antídoto para combater tais abusos.
Mais grave é, porém, quando se trata do exercício de funções militares operacionais, de tarefas de segurança, de investigação criminal, de fiscalização ou inspecção nas quais a tempestividade, a urgência ou a gravidade que podem decorrer da interrupção das execuções assumem muitas vezes um carácter dramático ou decisivo, incluindo o risco de vidas humanas. Aqui, as restrições ao uso destas novas tecnologias de informação e comunicação por parte dos cidadãos vão-se impondo paulatinamente, as mais das vezes fora dos olhares da opinião pública, o que tem vantagens (porque a tecnicidade das soluções não é compatível com as emoções colectivas) e também inconvenientes (de os especialistas decidirem passos gravosos para o conjunto dos cidadãos, dolosamente ou, imbuídos da sua cultura técnica ou profissional, sem consciência de que o fazem).
Também a penitência – que ainda existe, implícita e envergonhada, nas sanções penais de privação da liberdade – foi, de alguma maneira, surpreendida pela difusão e possibilidades permitidas pelos telemóveis ou pelos portáteis acedentes à Internet. O seu acesso autorizado a reclusos deve ser hoje ponderado individualmente, ao mesmo título do que o direito ao recreio, à leitura de imprensa, a visitas ou à posse de um receptor rádio ou de sinal televisivo. Estes condicionamentos devem estar sob a alçada da administração penitenciária (assessorada pelos indispensáveis especialistas psicólogos ou assistentes sociais) e ser geridos adequadamente com sentido de justiça para os indivíduos e segurança para a colectividade, mas não ficarem sujeitos, à partida, à suspeição de violarem os direitos dos presos – isto, desde que sejam sempre respeitados os princípios internacionais que impedem a existência de penas ou condições de detenção cruéis, degradantes ou desumanas. Todos se lembrarão dos chefes dos gangues de traficantes de droga no Brasil e outros países da América Latina que, de dentro das prisões, comunicavam ordens-de-comando aos seus pistoleiros arregimentados que, no exterior, desencadeavam tal ou tal operação de tráfico, de pressão sobre vítimas coagidas (reféns e outras) ou mesmo de afrontamento armado às autoridades – para cuidarmos de não nos equivocarmos quando falamos de “direitos humanos” individuais e porventura nos esquecemos do direito a uma vida livre e com razoáveis condições de dignidade e segurança que deve ser assegurado ao conjunto da sociedade.
É verdade que, como antecipavam Orwell e outros visionários pessimistas de meados do século passado, já estamos a começar a viver no presente o panóptico tecnológico espionante, que nos conhece (por vezes com mais informação do que nós próprios) sem que de tal nos apercebamos. Seja em aplicações comerciais – que nos sacam informações, dinheiro ou decisões e, ipso facto, vão dar lucro, trabalho e auto-justificação a terceiros –, seja com justificações securitárias – que supostamente nos protegem contra alguém ou algum mal –, o certo é que a tele-informática se instalou já no terreno com uma potência universal invencível, tanto pelas suas fantásticas capacidades técnicas como pelas reacções humanas que suscita.
De facto, para além do gap cultural profundo que separa os “info-excluídos” do “mundo moderno” (mas que tenderá a esbater-se com a renovação das gerações), parece irrecusável o reconhecimento das suas vantagens económicas, comunicativas e sociais, e daí a extraordinária adesão que obtém junto das camadas sociais mais jovens e escolarizadas de todo o planeta. Mas, por outro lado, levantam-se ondas de indignação na opinião pública quando algum especialista “do sistema” revela segredos-de-Estado no âmbito dos “serviços de informação”, clamando contra mais um atropelo dos governantes às liberdades e aos direitos humanos. Contudo, o mais provável (e problemático!) é que esses “serviços de informação” tenham de facto violado normas legais existentes mas permitido desse modo desarmar conspirações ou ataques que poriam em causa o way-of-life de que goza, ou aspira a gozar um dia, a esmagadora maioria das populações (pelo menos, no terço do mundo mais rico). Eis uma das contradições estruturais mais importantes do nosso tempo.
JF / 7.Set.2013
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