Os dias de meados de Agosto de 2013 devem ficar assinalados para muitos e por muito tempo como os de uma terrível carnificina de que foram vítimas milhares de pessoas de religião islâmica nas ruas do Cairo. Mas o caso merece mais aprofundamento do que a imediata responsabilização do governo ou dos militares por tais acontecimentos.
Comecemos por lembrar que o Egipto é um grande país do próximo-oriente, de 80 milhões de habitantes, com uma história fabulosa e uma localização geo-estratégica ímpar naquela região, de ligação da África à Ásia Menor e do Mediterrâneo ao Mar Vermelho e ao Oceano Índico. Por isso foi durante os últimos séculos ocupado pelo império turco-otomano, assaltado por Napoleão e controlado militarmente por ingleses e economicamente também por franceses (por intermédio da Companhia do Canal de Suez) até meados do século passado.
Ainda hoje a sua economia assenta em grande parte nas taxas que cobra à navegação que ali passa obrigatoriamente, bem como no turismo que nas últimas décadas se desenvolveu à sombra das suas riquezas arqueológicas, nas suas capacidades de produção de energia (carvão, petróleo, gás e exploração hidroeléctrica) e numa agricultura que alimenta a metade da população que actualmente habita enormes cidades de arredores pobres e vive sobretudo do pequeno comércio e da prestação de serviços pessoais.
Todos falam o árabe e 90% da população é de religião muçulmana sunita mas existe uma importante e antiga minoria cristã copta (9%). O Cairo e Alexandria, sobretudo, são centros urbanos cosmopolitas e modernos, com núcleos sociais ocidentalizados que ocupam as posições de maior estatuto simbólico e rendimento económico, nas empresas, na cultura e na administração pública. Mas as desigualdades económicas e sociais são muitíssimo acentuadas com uma enorme fracção da população vivendo em situação de pobreza ou miséria.
A instituição social mais importante do país é provavelmente a das Forças Armadas, aureoladas pelo prestígio nacionalista que lhe foi conferido pelos “oficiais livres” que derrubaram a monarquia e combateram contra Israel, mas com quem também assinaram a paz, a troco dos dólares dos americanos, que lhes actualizaram o armamento e a instrução. Dispõem de moderno equipamento e 450 mil homens, suficientemente bem pagos, ao ponto de se manterem unidos e obedecerem aos seus chefes, sem se deixarem até agora infiltrar por dissidências políticas ou religiosas. E, como aconteceu em tempos em Portugal e noutros países, estes militares têm tido sobretudo um papel político interno de manutenção da integridade do país e da unidade do Estado, mais do que de defesa nacional contra ameaças externas, como se considera ser hoje a sua função. Tudo isso acompanhado, claro está, de benesses e favores de que está excluída a esmagadora maioria da população. Acresce que, no caso do Egipto, o exército assegurou praticamente a governação do país durante meio século (tendo as eleições e o parlamento papéis menores), teceu laços de interesse económico com os mais ricos e organizou a polícia e uma guarda republicana protectoras deste regime.
Por seu lado, a Irmandade Muçulmana é um movimento sócio-político de carácter religioso, fundado no Egipto em 1928 e ilegalizado desde os anos 50 mas que criou fortes raízes na sociedade, sobretudo através de instituições escolares e de ajuda aos mais desgraçados. Defendendo uma vertente secular e política do Islão, tem sido vista por alguns como uma força relativamente moderada (comparada com a Al Qaeda, por exemplo), que poderia aceitar as regras do jogo democrático, e por outros como perseguindo (sem o afirmar) o estabelecimento da charia e de um estado confessional islâmico.
Mas recordemos a cronologia dos principais acontecimentos: em Janeiro-Fevereiro de 2011 Mubarak é derrubado por um impressionante movimento urbano de contestação que reclama liberdades e um governo democrático, com os militares a absterem-se de o contrariar; em 2012 realizam-se eleições, acabando por ser escolhido para a presidência da República o “irmão muçulmano” Morsi, com um pouco mais de 50% dos votos; sob o impulso deste, terão sido decretadas medidas e nomeados altos responsáveis que fazem os laicos, os democratas e as minorias religiosas temerem uma evolução “islamizadora” do país; a 30 de Junho de 2013, no aniversário da sua posse, milhões de egípcios descem às ruas para reclamar a saída de Morsi (com talvez 16 mortos no terreno, sendo estes números sempre duvidosos), o que encoraja o exército a fazer um ultimato ao presidente; depois de mais uma vintena de vítimas mortais na véspera, no dia 3 de Julho os militares, chefiados pelo general el-Sissi, fazem o seu golpe-de-estado prendendo Morsi e pondo interinamente no seu lugar o presidente do tribunal constitucional Mansour; a Irmandade Muçulmana lança para a rua milhares de manifestantes, reprimidos pela polícia e pela tropa com carros blindados a bloquear determinadas artérias e com o resultado de um número crescente de mortos: 4 no dia 4 de Julho; talvez 48 no dia 8 frente às instalações da guarda republicana onde supõem estar preso Morsi; mais 10 no dia 22; e talvez 800 (e milhares de feridos) no dia 14 de Agosto e seguintes, quando é decretado o estado de emergência e o recolher obrigatório. Do lado das forças da ordem somam-se também dezenas de mortos e centenas de feridos, pois os protestos dos “irmãos” não são propriamente pacíficos: além de encherem certos locais de trânsito na cidade do Cairo com barricadas pesadas protegendo os seus acampamentos, respondem frequentemente com balas e “coktails Molotov” às “operações de limpeza” e outras investidas policiais. E já passaram ao assassinato de três dezenas de polícias reféns, além da devastação de igrejas cristãs, etc.
Dada a desproporção de meios de força, só podem qualificar-se de massacre estas acções de reposição-da-ordem. Mas parece ser esse precisamente o efeito procurado pelos Irmãos Muçulmanos. Não se trata (ainda) de tácticas de guerra civil ou de terrorismo bombista como aquilo que se vem praticando na Síria ou no Iraque. Trata-se, sim, da exploração da assimetria de papéis, recursos e disposições que caracterizam militares e islamistas no presente cenário.
A despeito da detenção nos últimos dias de muitos dos seus dirigentes e de milhares de militantes ou adeptos, as chefias militares parecem ainda hesitar entre estender a mão ao movimento convidando-o a participar no processo político democrático (um pouco como no nosso 25 de Novembro de 1975 foi a posição de Melo Antunes para com o PCP e a extrema esquerda) ou, pelo contrário, criminalizá-lo sob o labéu de “terrorista”, decapitando a sua direcção, ilegalizando-o, perseguindo as suas obras e actividades, e esmagando as suas veleidades de existência e predomínio.
Mais uma vez, repete-se a situação historicamente conhecida de uma fracção significativa da sociedade política, porventura minoritária mas imbuída de um “projecto redentor”, obter nas urnas um resultado que lhe permite o acesso ao poder, do qual fará uso para impor a todos esse mesmo projecto e negando às outras expressões políticas a possibilidade de, do mesmo modo democrático, a desapossarem das rédeas da governação.
Nestas condições, com embaraço para a Europa e os Estados Unidos, a dinâmica interna desta conflitualidade aguda de forças sociais contrapostas vai prevalecer sobre todos os outros factores em presença. Mas as perspectivas económicas serão porventura mais determinantes para o futuro a médio-prazo do que o contexto internacional envolvente. Por agora, são os petro-dólares do Qatar ou da Arábia que compensam a quebra do turismo ou da venda de hidrocarbonetos aos países vizinhos, mais as restrições comerciais que o Ocidente venha a impor. Porém, acreditando que o exército se manterá coeso (condição sine qua non para evitar uma guerra civil clássica) mas também que o conflito pode entrar numa fase de violência latente prolongada – que contudo não chegará a pôr em causa a rota marítima do Suez (o que alteraria radicalmente os dados do problema) –, tal bastará para que o turismo não recupere e o país mergulhe numa crise económica progressivamente mais acentuada, que alimentará cada vez mais ódios contra o poder militar governante. Acresce que o Egipto é, para além das suas bolsas profundas de pobreza, também um país moderno, complexo, que já não é gerível por uma junta de generais. Os militares “donos-da-ordem” teriam de ser capazes de fazer uma qualquer aliança política com forças sociais com peso real na sociedade, na economia, na cultura e nos saberes técnico-científicos. O que não parece ser uma tarefa fácil.
O Egipto é um tesouro cultural da humanidade, um país e um povo estimável, que merece melhor sorte.
JF / 23.Ago.2013
Excelente artigo que retrata bem a situação egípcia, parabéns.
ResponderEliminarCumprimentos
Dieter Dellionger