Habemus Papam! Com efeito, o conclave dos cardeais elegeu com alguma rapidez o argentino Bergoglio (diz-se “Bergólhio”) para suceder a Bento XVI. Os rituais foram cumpridos mas talvez nunca como desta vez o processo se tenha aparentado tanto a uma sucessão de liderança numa instituição laica. A expectativa sobre os papabili é habitual, mas não os conciliábulos e as “congregações” reportadas pelos mass media com rápidas declarações à entrada e à saída, como se fosse uma qualquer cimeira internacional. Sobretudo no clima de algum choque moral provocado pelas últimas revelações escandalosas que vieram afectar a credibilidade desta hierarquia religiosa. Terá a Igreja Católica querido jogar este jogo mediático ou, sem saber ainda bem como posicionar-se, foi surpreendida pela “comunicatividade” contemporânea?
Foi vivo o contraste, de pura casualidade, entre o processo desta surpreendente sucessão papal – moderna, racional, prosaica e comunicacional – e o final do reinado político de Hugo Chavez, carismático e “religioso” a ponto de fazer desatar em lágrimas uma parte significativa do seu povo.
O novo Papa Francisco (que faz talvez lembrar João XXIII) vai encontrar a inédita situação de dirigir uma Igreja em postura delicada e suscitando expectativas contraditórias, com o anterior titular ainda bem vivo e inteligente, embora talvez esgotado e amargurado.
De facto, apesar da sua reputação de teólogo conservador e dos modos incomodamente afectados da sua expressão pessoal, Ratzinger deu passos que vão talvez ser decisivos para a evolução deste movimento religioso. Com o seu gesto de renúncia, contribuiu para dessacralizar mais um pouco, aos olhos do mundo, a investidura divina do seu mandato. Depois do doloroso fim de João Paulo II, o alemão confessou-se simplesmente humano ao reconhecer não ser capaz de assumir todas as responsabilidades do cargo, ao mesmo tempo que denunciava com amargura contradições internas da Igreja de que só ele terá sabido medir a gravidade e a extensão. Prosseguindo embora a linha do polaco Wojtyla de humildemente pedir perdão por alguns dos principais crimes e erros do passado da sua Igreja, e de procurar o diálogo com outras religiões e obediências cristãs, Bento XVI não deixou no entanto de apontar criticamente alguns pontos doutrinários do islamismo que mais bolem com o humanismo contemporâneo. Mas, sobretudo, terão sido os pontos de polémica que desde há alguns anos atravessam a Igreja, agravados pelos escândalos vindos a público, que levaram à sua renúncia. Essas questões, com as suas raízes históricas e teológicas, poderão ter conduzido a sua consciência intelectual, mas também o seu espírito profundamente crente, a uma situação de inextricável solidão: “Pai, Pai, porque me abandonaste?”
As revelações dos últimos tempos sobre “lobbies” no interior da Cúria, negócios escuros, relatórios secretos, etc., só surpreendem porque a opinião pública das últimas décadas tinha-se desabituado delas desde meados do século XX, com o enfraquecimento do anti-clericalismo de inspiração maçónica-francesa e o esforço de aggiornamento tentado pelos “católicos progressistas” com a sua participação na resistência ao nazi-fascismo e o concílio Vaticano II. Mas a tradição de manobrismo político, hipocrisia diplomática, intriga pessoal e “subterrâneos financeiros” acompanha provavelmente toda a história da Igreja, adquirida ao longo de mais de um milénio de exercício de poder temporal dos Papas e que alimentou no século XIX uma vaga de anticlericalismo que, em parte, é puro ateísmo filosófico – como, por exemplo, quando Bákunine afirma em Deus e o Estado que “se Deus é a verdade, a justiça, o bem, o belo, o poder e a vida, o Homem só pode ser a mentira, a iniquidade, o mal, a fealdade, a impotência e a morte” – mas, por outro lado, é, antes de mais, uma vivaz literatura denunciadora de tais práticas. De resto, foi sobretudo nesta base que se originou a revolta de Lutero e a partir daí se desenvolveu todo o movimento da Reforma. O “Vatileaks” de que se fala, os livros de Nuzzi (Vaticano SA, e agora Sua Santidade - As Cartas Secretas de Bento XVI) e o que provavelmente virá ainda a público nos próximos tempos sobre estas matérias são apenas a versão actual desta muito antiga face secreta da Igreja, que as condições técnicas e morais vigentes nas nossas sociedades apenas estimulam e exploram à saciedade. Ter-se-á talvez Ratzinger perguntado: “Mas em quem posso eu afinal confiar?”
No campo da sexualidade, os abusos sobre menores praticados por sacerdotes, a castidade e o celibato destes ministros são decerto “apenas” problemas de regra e de disciplina (ou de justiça criminal) sem implicações doutrinárias, mas são também motivos de confronto com a cultura hoje dominante (ocidental e bem longe de ser maioritária no mundo, mas que apesar disso se impõe). Imaginemos que um próximo Papa alivia a regra da exclusividade do serviço religioso a que os padres hoje são obrigados, autorizando o seu casamento e procriação. O fim do celibato seria dissuasor da homossexualidade em meio sacerdotal. Mas como é que isso seria recebido num mundo que tem vindo a legalizar e a legitimar esses comportamentos? Por exemplo: alguém duvida que o movimento de reivindicação do casamento entre pessoas do mesmo sexo não deixaria de o exigir também para esses presbíteros? E por aí fora... Sobre a própria pedofilia – por agora unanimemente condenada na praça pública –, não me atrevo a imaginar como a encarará o mundo daqui a cem ou duzentos anos, um horizonte temporal insignificativo para qualquer de nós mas que um Papa não poderá deixar de ter em consideração em decisões institucionais de que só ele pode ter a iniciativa.
De modo semelhante, o funcionamento das estruturas hierárquicas da Igreja deve constituir um quebra-cabeças, tanto para o cerebral Ratzinger como para o “franciscano” Bergoglio. Com João XXIII e o concílio Vaticano II, a Igreja perdeu o latim como sua marca identitária unificadora, a benefício das igrejas nacionais e talvez aí tenha residido uma das chaves da sua mais recente expansão para a América Latina, África e Ásia. Mas que Papa será capaz de desmanchar o poder burocrático da Cúria? Ou de deslindar as complexas teias entre clero ordinário e clero regular, ou de amenizar as rivalidades existentes entre algumas ordens? As conferências episcopais, os sínodos e outras estruturas colegiais desenvolveram-se no último meio século, enfraquecendo a jurisdição própria dos bispados mas porventura ajudando a cavar diferenças mais acentuadas entre nações ou regiões do mundo, que se vieram acrescentar às tendências religiosas ou dogmáticas, que sempre existiram mas foram controladas no passado com uma mão-de-ferro (Tribunal do Santo Ofício, excomunhão, etc.), que hoje não tem a mesma eficácia ou não é sequer possível. E já há dentro da Igreja quem se interrogue sobre o processo de escolha papal, tendendo a confiar mais no “povo de Deus” do que na alta hierarquia do conclave dos cardeais, mas sem esclarecerem como isso se poderia fazer sem fanatismo nem eleitoralismo.
Talvez, sobretudo, o feminismo que crescentemente reclama o seu lugar dentro da Igreja possa constituir o problema mais delicado para a chefia do Vaticano. É que, para além de uma tradição milenar, e fruto dessa sua antiga inserção na história, o catolicismo bíblico constitui uma narrativa profundamente naturalística (e assimétrica, aos olhos contemporâneos) do que é o Homem e do que é a Mulher, na sociedade e na representação mítica do Universo. Rever radicalmente esta concepção pode ser a tarefa de um ainda longínquo concílio mas só um espírito religioso hoje acreditará que uma iluminação divina pudesse então dar uma resposta consensual e convincente a uma tal magna assembleia.
Entretanto, os católicos romanos continuarão a exercitar a sua fé e a crença no seu Deus misericordioso, omnisciente e omnipotente. Mas devem talvez rezar para que a sua Igreja, enquanto instituição humana, nunca esqueça a história em que mergulham as suas raízes e os contributos, positivos e negativos, que deu ao longo dela aos homens e mulheres comuns.
JF / 28.Mar.2013
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