Agora é que chegou a hora dos grandes apertos aos rendimentos dos portugueses que sustentam a vida económica da nação! Mas, mais uma vez, arranja-se um bode expiatório (o FMI e o governo) para esconjurar o espectro das nossas próprias contradições. Recordemos alguns momentos do passado recente.
No final do consulado do primeiro governo PS de José Sócrates, este partido e o PSD tinham chegado a um entendimento para uma reforma do poder autárquico (simplificando-o e economizando no seu exercício). Mas bastou uma mudança de liderança neste último partido para que tal acordo fosse inviabilizado.
No Verão de 2010 o novo líder do PSD Passos Coelho, com o ar cândido que sempre põe, lançou para a discussão pública um projecto de revisão constitucional onde, a par de medidas conformes ao seu credo relativamente liberal, propunha uma reconsideração das funções do Estado, numa altura em que a Assembleia tinha poderes para o fazer. Foi apostrofado de todos os lados, principalmente de dentro do seu próprio partido, o que o fez meter logo o projecto no saco. Nem a maioria (muda…), nem os comentadores (não é oportuno!), nem o país (distraído com o futebol e a telenovela do momento) queriam discutir a maneira como o Estado gastava e vinha exercendo as suas funções.
Alguém que é zero no país (João Freire), havia entretanto publicado um estudo (CIES e-Working Paper nº 97/2010 http://www.cies.iscte.pt/wp.jsp) sobre o crescimento aparentemente imparável do estado português nos últimos sessenta anos (fundamentalmente, do “Estado social”), com base na evolução dos efectivos do funcionalismo público e da Conta Geral do Estado, onde a acumulação da dívida era já perceptível. E antes havia publicado um artigo (“A reforma política”, A Ideia, nº 62, 2006) onde discutia, em termos práticos e ideológicos, várias das mais gritantes disfunções do Estado e do sistema político, e algumas alternativas para a sua superação.
Outras pessoas mais bem preparadas e com alcance público também decerto o fizeram, com muito maior rigor e profundidade; porém, igualmente sem conseguirem fazer-se ouvir. Os meios de comunicação social são hoje um actor político incontornável que condiciona decisivamente a vida das sociedades, mesmo sem saírem do seu espaço profissional. Basta que, “por critérios jornalísticos”, falem ou silenciem tal ou tal facto ou tomada de posição.
Na presente conjuntura, vai-se alargando a frente do descontentamento perante a acção governativa. A imprensa tem papel destacado nesta dinâmica, pela enfase que põe na forma de difusão das más notícias (os constantes “novos cortes” e “previsões falhadas”). Raros são agora os comentadores e opinion makers que conseguem manter uma posição crítica independente: a maior parte insere-se na corrente, reforçando-a. As oposições partidárias têm argumentos e rédea solta para subirem de tom na sua linguagem – “inaceitável”, “intolerável”, “ilegítimo”, etc. –, esquecendo-se o PS de quem foi o co-responsável do “monstro” e “do betão”, o principal responsável das PPP e o total responsável do tratamento dado ao caso-de-polícia do BPN.
Todos bramam unanimemente contra a austeridade, defendendo que é preciso relançar a economia e o emprego. As esquerdas dizem que compete ao Estado ser esse motor, promovendo o consumo interno, ao mesmo tempo que deve ser o guardião da coesão social e das “conquistas civilizacionais” alcançadas (mas antes sempre menosprezadas por insuficientes ou ilusórias) – só não dizendo onde vai encontrar esse dinheiro, uma vez que também consideram que o nível dos impostos não pode subir mais. As opiniões da direita do espectro político falam nesse relançamento pela via da atracção do investimento estrangeiro (que por enquanto só vai comprando por bom preço o que o governo põe à venda). E todos continuam à espera da facilitação de crédito às pequenas empresas e às “exportadoras de bens transacionáveis”. Só alguns, provavelmente mais realistas (como João Ferreira do Amaral, sempre batendo a tecla da saída do Euro), apontam que o reganho de competitividade externa do conjunto da economia portuguesa passaria pela perda de 30 ou 40% do rendimento nacional, para depois poder voltar a crescer – se… (a Europa crescer também), se… (entretanto conseguirmos um novo padrão produtivo para a nossa inserção na economia global), se... – tudo coisas que só desencorajam quem os escute (e que não rendem votos).
De facto, o governo actual tem mostrado inúmeras fragilidades, gafes, titubeamentos e incoerências – fazendo até lembrar, nesse aspecto, os piores momentos de Santana Lopes. Mas bem gostaria ele que esse relançamento surgisse. O mais provável é que as urgências financeiras a que o ministro Gaspar tem constantemente de fazer face (queda das receitas, novos “buracos”, impedimentos legais, atrasos e adiamentos nas “reformas estruturais”, abrandamento europeu, lentas reformas institucionais na UE, etc.) lhe imponham em cada dia novas medidas para encontrar o dinheiro necessário, onde esteja mais à mão. Há dias, avisou o insuspeito Nicolau Santos que em 2014 e 2015 vêm a vencimento empréstimos contraídos no exterior pelo estado português superiores a 15 mil milhões de Euros, que não sabemos como irão combinar-se com os famigerados 4 mil milhões de economias na despesa que têm trazido tudo em alvoroço. E logo a seguir outros jornais evidenciaram os prazos de liquidação dos empréstimos públicos nos próximos anos: coisa de meter medo!
Além disso – igual aos anteriores – o governo não toca nos interesses políticos instalados, que têm sido dos maiores beneficiários privados de perto de 40 anos de democracia, e procura tratar “nas palminhas” os principais grupos económicos (não vão eles levar o dinheiro para fora).
Os descontentes vociferantes reclamam cada vez mais abertamente eleições antecipadas. Seguirá o primeiro-ministro a sua (entrevista por alguns) trajectória sacrificial até às eleições de 2015 na convicção de que mais vale perder-se ele, se com isso se salvar o país? Mas quem acredita que o minoritário CDS o acompanhe até ao fim por dever de lealdade? E quem acredita que as “forças vivas” do PSD o sustentem em tal suicídio partidário? Talvez, ao menos, se moderem as trombetas triunfantes do “vencemos a crise!”, que libertariam de novo a máquina do consumismo! Tivemos nos últimos dia um cheirinho disto com a boa colocação de dívida nos mercados externos.
Porém, com ou sem eleições antecipadas e com uma derrota inevitável do PSD, é altamente improvável que o PS consiga governar sozinho, e lá teremos de novo a ameaça de “crise política”, que nem o Presidente deseja, nem será capaz de resolver sem grandes custos.
Nestes termos, e nos sisudos cenários que se avizinham, a única solução prática para o problema da governação nacional parece ser mesmo a de uma temporária “grande coligação” entre o PS e o PSD (com ou sem CDS). Não porque estes partidos o desejem ou mereçam. Mas como castigo, para amargarem o fel resultante da desgovernação com que trataram o país durante décadas.
Pode ser que desse purgatório saiam algo regenerados, ou sobretudo que ele permita a emergência de novas formações políticas, menos constrangidas por dogmas ideológicos envelhecidos e menos manietadas por vícios e interesses longamente alimentados.
JF / 31.Jan.2013
Excelente artigo; uma boa análise da situação atual, parabéns.
ResponderEliminarDieter Dellinger