Como filosofia política, o anarquismo foi sempre uma doutrina controversa. Alguns dos seus activistas enveredaram por caminhos violentos condenados ao insucesso (embora isso também se explique pelos contextos da época), mas a grande maioria foi gente abnegada e sinceramente devotada à realização de um mundo melhor. Em todo o caso, na linguagem corrente a “anarquia” tomou então o lugar que antes era ocupado pela “república” como situação onde “todos gritam e ninguém se entende”.
Apesar do tempo transcorrido, é ainda hoje instrutivo conhecer-se o fundamental do que escreveram os seus principais pensadores, a partir do início do século XIX.
O inglês Godwin arquitectou mentalmente uma sociedade reformada a partir de uma educação de base científica, em vez da religiosa-tradicional da sua época. O francês Proudhon foi um autodidacta imaginativo e contundente nas suas afirmações, criticando o regime de propriedade vigente e opondo um princípio federativo à organização centralizada do governo e do estado nacional. O alemão Stirner foi um descendente da filosofia hegeliana que evidenciou a singularidade genuína do “eu”, onde seguidamente se apoiaram os individualistas. O russo Bákunine foi apenas um discípulo sofrível da mesma escola mas, sobretudo, revelou-se um revolucionário de indomável energia que disputou com Marx a orientação ideológica do nascente movimento operário, escrevendo páginas veementes de crítica aos apóstolos de “Deus e o Estado”. Temperamentalmente bem diferente, o seu compatriota Kropótkine, de sangue real, foi pagem e jovem oficial do Czar, realizou importantes trabalhos de geografia mas, revoltando-se contra a situação, coube-lhe a prisão, a deportação e o exílio, onde de novo foi condenado pelos seus belos escritos sobre uma visão comunitarista do futuro e pela sua infatigável acção de apoio e incentivo às lutas populares. O também russo Tolstoi configurou nos seus romances e na sua própria vida apaixonada a ideia de um anarquismo místico, cristão, de feição não-violenta. O italiano Malatesta foi a última grande figura do anarquismo militante vinda do século XIX, que se opôs à carnificina da guerra europeia e veio a morrer sofrendo já as agruras do regime autoritário e populista do duce. Benjamin Tucker defendeu a propriedade privada para todos (em vez da sua abolição), bem como os tribunais com jurados, constituindo-se como o mais all-yankee dos libertários de além-Atlântico. E a russa-americana Emma Goldmann teve a enorme virtude de introduzir no pensamento anarquista a questão da emancipação da mulher.
Já bem dentro do século XX, devem ainda referir-se mais uma dúzia de nomes.
A brasileira Maria Lacerda de Moura associou aqueles apelos pacifista e feminista à vontade neo-malthusiana de uma procriação desejada e consciente. Na sequência da reivindicação do amor livre por Armand, o também francês Daniel Guérin escreveu algumas obras históricas mas talvez sobretudo tenha ajudado a retirar a homossexualidade do “gheto social e pecaminoso” a que era votada. Oriundo do marxismo, Castoriadis desenvolveu a sua análise sobre a burocracia dos países de socialismo-de-estado e deu outros contributos para uma focagem libertária da actualidade, de base psicanalítica, tal como também o fez Michel Foucault. O americano Paul Goodmann e o inglês Colin Ward rejuvenesceram esta corrente de pensamento nas condições das actuais sociedades urbanas e tecnológicas, com as suas múltiplas novas minorias. Murray Bookchin, americano, não sendo um cientista, foi sobretudo um ideólogo do pensamento ecologista, que tanta relevância atingiu nas últimas décadas. No plano da epistemologia, o americano Paul Fayerabend inovou ao tentar sustentar uma metodologia “anarquista” do conhecimento científico. O igualmente americano Robert Nozick é o autor do conceito de “Estado mínimo”, por isso rotulado de “anarco-capitalista”. E, finalmente, mais do que o filósofo francês Michel Onfray, há quem considere o linguista americano Noam Chomsky como o maior pensador anarquista ainda vivo, o que é bastante discutível, pois tal epíteto nada parece ter a ver com o seu importante contributo para a estrutura do pensamento humano articulado com a linguagem, mas antes com o seu persistente posicionamento político anti-americano.
Em suma, pode dizer-se que estes pensadores estiveram no século XIX essencialmente preocupados com a afirmação de uma cidadania política, e no século XX com a emergência de uma cidadania social.
JF / 30.Mar.2012
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sexta-feira, 30 de março de 2012
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