Paul Lafargue, francês dos trópicos e genro de Karl Marx, escreveu um dia um ensaio intitulado “O direito à preguiça”, encarniçando-se contra a doença produtivista que parecia ter assaltado toda a gente nesse século XIX, desde os industriais e economistas até aos ideólogos do movimento operário. Para ele, pelo contrário, havia que recuperar e reivindicar os deleites do fare niente e a primazia do “produzir-para-viver”, em vez do “viver-para-produzir”. Sábias palavras, apenas ditas fora de tempo, ou ilusão utópica e enganadora?
Cem anos depois, houve quem pensasse que uma drástica redução do tempo de trabalho permitida pelas tecnologias automatizadas iria transformar o nosso modo de vida. Contudo, a “civilização dos lazeres” veio, sim, mas sobretudo como nova forma negócio e de ocupação para pessoas mais despertas, ao mesmo tempo que envolvia milhões e milhões de indivíduos em todo o mundo, como público, clientes ou espectadores. Em alguns casos, pode mesmo pensar-se simbolicamente que foi o circo romano que voltou, agora à escala do planeta. E hoje percebemos melhor que o trabalho não é só “mercadoria”.
As crises – com abrandamento, estagnação ou mesmo retrocesso da produção – sempre existiram em economias abertas e são bem conhecidas dos especialistas, sobretudo na época do capitalismo. “Nós” (nós, destas gerações vivas; nós, portugueses; nós, Europa; nós, categorias sociais privilegiadas) é que nunca as havíamos realmente conhecido, como está agora a acontecer, ao ponto de pensarmos como definitivamente adquirido o rendimento e o quase-pleno-emprego de que usufruímos nas últimas décadas.
Para os pequenos empresários que encerram portas (e ressalvando as aldrabices de alguns), a cessação da actividade é quase sempre acompanhada por uma queda na consideração social, quando não na “proletarização”.
Para os assalariados, a própria dependência do subsídio de desemprego, se se prolonga, corresponde muitas vezes a um desmoronamento da auto-estima.
Para quase todos, a inactividade forçada projecta-se num sentimento de vazio ou inutilidade, ou em reexames do sentido das próprias vidas que tanto podem levar a reacções positivas como à depressão e a outras doenças mentais.
Para os que, mais ou menos descuidadamente, se envolveram com encargos financeiros de longo prazo, ocorre com frequência o drama da devolução dos bens possuídos ou o despejo da casa.
Aos pequenos proprietários e sobretudo aos idosos ou inválidos que vêem minguar o poder de compra das suas rendas e pensões, aflige-os a perspectiva do dia em que terão de recorrer à “sopa do Sidónio” ou à caridade de uma IPSS.
E quando o desempregado tem pessoas a seu cargo ou acabam os últimos dinheiros custosamente amealhados ou provenientes do subsídio cujo prazo expirou, chega-se nalguns casos ao desespero.
Ironicamente, só os muito ricos e os já antecipadamente pobres passam incólumes as épocas de crise económica.
Por tudo isto, é decisivo que, individualmente e com a ajuda de próximos, cada um de nós seja capaz de reagir à adversidade e de procurar formas alternativas (realistas mas moralmente lícitas) de sobrevivência. E, colectivamente, que a sociedade desenvolva iniciativas de entreajuda directa, sem se deixar embalar pelos discursos inflamados que, nestas alturas, tendem sempre a apontar “bodes expiatórios”. Finalmente, não devemos esquecer esta rude experiência da crise para tentar evitar que, no futuro, elas voltem a acontecer.
JF / 24.Fev.2012
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