A actual omnipresença da economia no debate público – empobrecendo-o de todas as outras dimensões sociais, culturais, políticas, morais, etc. – não tem só inconvenientes. Como tem sido apontado por alguns analistas, obriga-nos a algum choque-de-realidade, a despeito do facto de “os números” se prestarem tanto ou mais do que “as ideias” à manipulação e à confusão intencional (que se vem juntar à dificuldade de entender os próprios fenómenos, que toda a gente hoje não dispensa de qualificar de “complexos”).
Não escreveram certos utópicos do século XIX que, na sociedade emancipada do futuro (uma qualquer forma de socialismo), o “governo dos homens” seria desejavelmente substituído pela “administração das coisas”?
Em certa medida, a vacuidade do discurso político em que persistem as forças partidárias tem a ver com uma certa oligarquização do poder democrático, onde se combinam a lógica da conservação/contestação dos instrumentos de governo, a cristalização de ideologias de outro tempo e os interesses materiais e psicológicos criados por essas elites.
Mas, por outro lado, mercê dos efeitos conjugados da economia e da tecnologia, pode dizer-se que o campo de incidência dos ditos fenómenos passou definitivamente – salvo catástrofe – do “nacional” para o “global”, havendo por isso um importante gap em relação às instituições e mecanismos de organização do poder político de uma sociedade, bem como a uma parte ainda significativa das mentalidades e representações mentais das pessoas comuns, maioritariamente ancoradas no grupo social, no país ou na sua particular cultura étnica ou religiosa.
Lembremos apenas quatro acontecimentos (da vida económico-financeira, mas com evidentes impactos sociais e sempre sujeitos a tratamento político) que têm agitado a nossa comunicação social nos últimos tempos.
1º As “privatizações” do que restava de capitais públicos em algumas grandes empresas já só causam repulsa aos sectores de esquerda que falam da importância “estratégica” da energia, da banca ou das telecomunicações, ou aos que ainda vibram com a “companhia de bandeira” no transporte aéreo. (“Privatização” é uma palavra equívoca nesta classe de empresas porque, se os interesses e as decisões são particulares, o escrutínio a que estão sujeitas é claramente público, e mais apertado do que em muitas “repartições” do Estado.) É certo que, numa perspectiva de independência nacional, estas actividades podem contar, mas não mais do que a marinha ou as reservas alimentares e de combustíveis (E como estaremos nós nestes capítulos?). No mundo de hoje, a soberania do Estado-nação está a léguas do que foi ainda há meio-século. O sistema de integração económica e política internacional, a solidez das alianças defensivas e a (intacta) capacidade governamental para “regular” certos sectores de actividade ou decretar discricionariamente medidas de interesse vital parecem ser aqui bem mais decisivos. Todavia, a localização da sede das empresas (por causa dos impostos que pagam e do eventual condicionamento de algumas das suas decisões), o regime de concorrência existente em cada sector (crucial para os consumidores e utentes) e, no conjunto, a balança comercial externa do país são, de facto, factores decisivos do bem-estar económico da sua população.
2º Há semanas, uma suposta denúncia do bispo de Beja da existência de “escravatura” no Alentejo levou a Antena 1, em alvoroço, a organizar uma entrevista colectiva com aquela entidade eclesiástica e responsáveis públicos das migrações, da Autoridade para as Condições de Trabalho e outros. Afinal, no decorrer do debate ouvimos indicações convergentes sobre a normalidade em que ali laboram trabalhadores imigrantes estrangeiros e até sobre a melhoria das condições de alojamento verificadas nos últimos anos. Percebeu-se então, sobretudo através do depoimento embaraçado do prelado, que este apenas fizera referência a uns rumores que lhe tinham chegado aos ouvidos e à mera hipótese de tal existir ainda hoje, no âmbito dos votos e preocupações formulados pelo Papa no dia internacional das migrações. Numa palavra: fôra a “rádio pública” a criar alarme, pela forma como se lançou, capitosa, sobre o “furo jornalístico” que tal notícia constituiria. Factos destes não são raros na nossa comunicação social.
3º Não se pode aceitar que, como o governo tem feito sem reservas, se tratem os salários dos funcionários públicos e as pensões dos reformados como se fossem uma mesma coisa. Num caso, estamos perante a contrapartida de um trabalho; no outro, perante um rendimento não convertido em consumo e de que o Estado ficou garante para assegurar ao trabalhador já aposentado uma sobrevivência económica para o resto dos seus dias. É certo que a evidência deste mecanismo sai esbatida pelo facto da obrigatoriedade dos descontos durante a vida activa (o que só mostra a inviabilidade dos sistemas de poupança individual para assegurar um fim-de-vida condigno à totalidade de uma população ou, se se quiser, as oposições de lógicas de interesse entre indivíduo e sociedade). Mas isso não obsta a que o Estado tenha que ser o fiel depositário das poupanças (forçadas) dos trabalhadores, que lhes devem ser restituídas a partir do momento da sua aposentação.
4º Nos actos médicos do Serviço Nacional de Saúde, os aumentos de preços agora praticados já só abusivamente permitem considerar estes como “taxas moderadoras” – isto é, para desincentivar um uso não justificado –, pois trata-se antes de uma verdadeira comparticipação nos custos. É uma filosofia diferente da “universalidade” dos cuidados de saúde que pode ser explicitada e defendida sem vergonha – sobretudo quando se isentam os cidadãos de menores recursos desse esforço financeiro e não se prejudica o atendimento dos casos de urgência com trâmites burocráticos. O balanço entre custos e receitas do sistema pode perfeitamente justificar tais medidas, mas só se ganharia em credibilidade e mais clara compreensão dos problemas com o emprego de uma linguagem de verdade, em vez das piruetas jurídico-terminológicas do tipo do “tendencialmente gratuito”.
A estatização da economia e da nossa vida social é tão forte e interiorizada pelos cidadãos que perdemos toda a confiança nas iniciativas da sociedade (nas empresas, mas também nas associações sem fins lucrativos, sendo ainda os trabalhadores talvez aqueles que mais confiam… porque não têm outra saída) e, hoje, perante o risco concreto de bancarrota pública (É mentira que, se falharmos as metas da troika, deixa logo de haver dinheiro para pagar aos funcionários e pensionistas?), também no próprio Estado.
JF / 20.Jan.2011
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sexta-feira, 20 de janeiro de 2012
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