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quarta-feira, 16 de junho de 2010

Bola, África e o mundo que vivemos

Os espectáculos futebolísticos do campeonato mundial na África do Sul mantêm entretidos durante algumas semanas milhões de tele-espectadores e fazem exultar o povo desse país. Para desagrado de alguns, o futebol tornou-se um fenómeno universal que diz muito acerca do nosso (baixo) grau de civilização mas que também nos igualiza nestas momentâneas ansiedades e emoções do jogo, que talvez substitua a guerra e outros impulsos de destruição.
Em meados dos anos 60, tendo já visitado as Américas, dois dos países “d’além-cortina de ferro”, as Áfricas e algumas das nações europeias, formulei reflectidamente a convicção de que seria na República da África do Sul que o mundo iria assistir, no final do século XX, às mais raivosas “lutas-de-classes”: aquelas que oporiam brancos e negros, no país mais desenvolvido de todo o continente (graças sobretudo ao esforço dos primeiros). Não supunha é que esse momento viesse a coincidir com o desabar do “socialismo real” nem que a transição fosse, afinal, tão pacífica. Honra e reconhecimento sejam prestados a Nelson Mandela pelo papel que então desempenhou no apaziguamento de paixões, tal como de resto à inteligência política de De Clerk para conter e chamar à realidade a minoria branca. Mas ainda hoje tenho dificuldade em compreender como esse white power cedeu e o novo black power prescindiu da posse da arma nuclear, que para tantos chefes nacionais constitui o meio desejado para defender ou impor os seus interesses na cena internacional. Talvez aí tenha ainda pesado a convergência das duas super-potências, uma das quais se encontrava então em plena decomposição…
Em contrapartida, não alinho no coro laudatório universal a Mandela que tende (como sempre) a varrer da consciência das pessoas comuns os aspectos menos convenientes da sua actuação. Por exemplo: diz-se que Mandela penou 28 anos na prisão, o que é verdade e testemunha da resistência moral do homem, mas omite-se dizer que isso aconteceu por ele se ter tornado adepto da estratégia da luta armada (acções de guerrilha e sabotagem) decidida pelo ANC em 1961 (com apoio do bloco comunista) e que, antes, este velho partido africano tinha actividade legal, mesmo debaixo das leis do apartheid introduzidas a partir de 1948, quando o país se desligou definitivamente da tutela britânica. E esquece-se que, no plano internacional, Mandela tem sido sempre defensor dos nacionalismos africanos contra os ocidentais, mesmo dos líderes mais infrequentáveis como Kadhafi da Líbia ou Mugabe do Zimbabué. Em todo o caso, a sua acção deve ser considerada globalmente meritória. Mas não impediu que a legitimação e a habituação ao uso da violência tenham, depois da vitória da maioria negra, degenerado em altas taxas de criminalidade civil, nem que as enormes desigualdades económicas existentes no seio das populações sul-africanas também contribuam para esse ambiente pouco seguro que se vive em muitos dos seus espaços públicos.
Deixemos aos fans (abreviatura inglesa de fanáticos) dos partidos futebolísticos as suas exultações e as suas frustrações. Ganhará a taça certamente a equipa que mostrar mais capacidades em campo. Mas celebremos desde já a alegria com que tanta gente simples e comum – pretos, brancos, castanhos ou amarelos – é capaz de se entregar a este espectáculo lúdico e universal. Sem esquecer que amanhã é dia de trabalho.
JF/16.Jun.2010

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