Estamos de novo a viver um período difícil, na vida
política internacional e igualmente em muitos países.
Até ao século XIX, com regimes monárquicos
hereditários e sem escrutínios públicos, o recurso à eliminação física de
adversários ou rivais ocorria com alguma frequência, incluindo entre pessoas
com laços familiares entre si. Além das guerras, a morte era aceita para a
investigação da verdade e nos veredictos da justiça. Só a consciência
individual ou o receito da violação de leis divinas constituíam travões a tais
práticas.
Por outro lado, esses mesmos poderes absolutos da
realeza não precisavam de se preocupar minimamente em falar verdade: os seus
discursos eram apenas ditados pela sua vontade ou seguindo o conselho dos seus
ministros. Apenas em raros momentos de audição pública colectiva – as Cortes ou
órgãos equivalentes –, perante embaixadores ou os próprios reis estrangeiros, ou
entidades detentoras de outros poderes (senhores feudais, municípios e
corporações, condestáveis, bispos, judeus prestamistas, etc.) os monarcas de
então eram constrangidos usar justificações e argumentos com alguma
verosimilhança e racionalidade. Normalmente, para eles, a verdade ou a mentira
eram meramente discricionárias ou apenas instrumentais para a obtenção de
certos fins ou interesses inconfessáveis.
Evidentemente que houve sempre reis e senhores que
se guiaram pela bondade e amor dos seus súbditos, e procuraram falar verdade.
Em geral, foram os mais apreciados pelos povos que dirigiam, quando estes
tiveram a possibilidade e a oportunidade de forjar uma opinião própria.
Esta dependência do carácter pessoal do monarca
acabou com a instauração dos regimes constitucionais e, mais consolidadamente,
com a generalização das repúblicas. Porque estas se fundaram e foram
duradouramente alimentadas por uma ideologia de “direitos e deveres iguais” de
todos os cidadãos; porque as instituições judiciais e policiais e a própria
guerra passaram a estar sob a alçada de leis que traduziam aqueles princípios;
porque, nessas condições, uma imprensa livre passou a vigiar eficazmente o
exercício dos poderes públicos e se foi assim construindo uma opinião pública
mais vigilante e capaz de se indignar e manifestar-se nas ruas ou nos
parlamentos perante desmandos dos governantes – as populações destas sociedades
ocidentais puderam beneficiar e habituar-se a acreditar razoavelmente nas
proclamações e comunicados oficiais.
O século XX viu, contudo, graves violações e
inversões destes princípios. Depois da Primeira Guerra Mundial, foi na própria
Europa que líderes populistas como Mussolini, primeiro, e Hitler, depois,
instauraram práticas da mentira descarada como expressão normal da clique
governante (com a rádio a ajudar à sua amplificação). Nisto, foram acompanhados
pelo poder “soviético” instalado na sequência da revolução de 1917 que havia
derrubado o czarismo. Nisto e na facilidade e indiferença com que mandaram
assassinar adversários políticos e, por fim, comunidades inteiras (como milhões
de judeus ou “agentes ocidentais”) que pereceram nos fornos crematórios ou nos gulags siberianos.
Obviamente, fora deste espaço ocidental onde os
Direitos do Homem tinham alguma aplicação, não eram poucos os países onde se
matava com ligeireza e impunidade, por obra de regimes ditatoriais de diversos
matizes. Mas também existiram casos de espécie: o Japão foi uma potência
imperialista e militarista que causou indesculpáveis estragos e massacres em
povos vizinhos, mas a mentira não fazia parte do seu discurso político.
Diversamente, a URSS criou um estilo de argumentação estereotipada
(“língua-de-pau”), rapidamente copiado pelos partidos-irmãos, em que, como
escreveu George Orwell, a verdade passa a ser mentira e a mentira circula como
verdade. E desde há muito que as opiniões públicas ocidentais se habituaram a
não acreditar grandemente nas declarações e promessas dos estadistas árabes,
genericamente considerados como pouco fiáveis. É certamente um preconceito, mas
por alguma razão ganhou raízes em diversos sectores de opinião.
O espírito crítico e não fanático ou sectário foi
geralmente capaz de “dar desconto” e se precaver, nos regimes democráticos,
contra as omissões, inverdades ou “pequenas mentiras” a que mesmo os
governantes mais honestos estão sujeitos, às vezes por “razões de Estado”,
algumas das quais atendíveis, outras vezes por mero eleitoralismo, ou excesso
de empenho na luta inter-partidária.
O que agora nos aflige é que grandes potências tenham
actualmente lideranças que nos estão a habituar a, sistematicamente, afirmar
uma verdade entre cada duas mentiras, sempre com a mesma impassibilidade de
expressão facial. A Coreia do Norte, as Filipinas, o Irão, a Rússia do senhor
Putin, a Turquia de Erdogan ou a Síria de Assad (além da China, claro) estão
talvez à frente dos regimes que praticam este tipo de discurso. E têm o
deplorável hábito de eliminar (ou, pelo menos, tentam fazê-lo) aqueles que se
lhes opõem ou os podem desmascarar. A tanto não chegam a Venezuela ou o próprio
Brasil, mas, como vários outros, são estados onde a mentira baila alegremente
na boca dos seus dirigentes. Nestes casos, a corrupção e o negocismo
aparecem-lhes muitas vezes associados.
Finalmente, o espaço da mentira quase-institucional
acabou de ganhar um importante alargamento com o surgimento do senhor Donald
Trump, catapultado para a cabeça da mais poderosa nação do mundo, em grande
parte devido ao seu discurso super-demagógico, primário e mentiroso. E a
combinação vergonhosa da mentira com a violência e a morte tem vindo a campear
nas terras da Síria e do Iraque setentrionais, primeiro pelos bárbaros do
“Estado Islâmico”, e depois, sobretudo nos últimos tempos, com o castigo que
tem estado a ser infligido à cidade-mártir de Alepo, onde nunca sabemos quem
são os rebeldes e os resistentes, mas conhecemos sempre donde vêm os aviões e
as granadas e os mísseis que arrasam a cidade e dizimam a sua população civil.
JF / 16.Dez.2016
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