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sábado, 17 de dezembro de 2016

Mentira e morte, em política

Estamos de novo a viver um período difícil, na vida política internacional e igualmente em muitos países.
Até ao século XIX, com regimes monárquicos hereditários e sem escrutínios públicos, o recurso à eliminação física de adversários ou rivais ocorria com alguma frequência, incluindo entre pessoas com laços familiares entre si. Além das guerras, a morte era aceita para a investigação da verdade e nos veredictos da justiça. Só a consciência individual ou o receito da violação de leis divinas constituíam travões a tais práticas.

Por outro lado, esses mesmos poderes absolutos da realeza não precisavam de se preocupar minimamente em falar verdade: os seus discursos eram apenas ditados pela sua vontade ou seguindo o conselho dos seus ministros. Apenas em raros momentos de audição pública colectiva – as Cortes ou órgãos equivalentes –, perante embaixadores ou os próprios reis estrangeiros, ou entidades detentoras de outros poderes (senhores feudais, municípios e corporações, condestáveis, bispos, judeus prestamistas, etc.) os monarcas de então eram constrangidos usar justificações e argumentos com alguma verosimilhança e racionalidade. Normalmente, para eles, a verdade ou a mentira eram meramente discricionárias ou apenas instrumentais para a obtenção de certos fins ou interesses inconfessáveis. 

Evidentemente que houve sempre reis e senhores que se guiaram pela bondade e amor dos seus súbditos, e procuraram falar verdade. Em geral, foram os mais apreciados pelos povos que dirigiam, quando estes tiveram a possibilidade e a oportunidade de forjar uma opinião própria.

Esta dependência do carácter pessoal do monarca acabou com a instauração dos regimes constitucionais e, mais consolidadamente, com a generalização das repúblicas. Porque estas se fundaram e foram duradouramente alimentadas por uma ideologia de “direitos e deveres iguais” de todos os cidadãos; porque as instituições judiciais e policiais e a própria guerra passaram a estar sob a alçada de leis que traduziam aqueles princípios; porque, nessas condições, uma imprensa livre passou a vigiar eficazmente o exercício dos poderes públicos e se foi assim construindo uma opinião pública mais vigilante e capaz de se indignar e manifestar-se nas ruas ou nos parlamentos perante desmandos dos governantes – as populações destas sociedades ocidentais puderam beneficiar e habituar-se a acreditar razoavelmente nas proclamações e comunicados oficiais.

O século XX viu, contudo, graves violações e inversões destes princípios. Depois da Primeira Guerra Mundial, foi na própria Europa que líderes populistas como Mussolini, primeiro, e Hitler, depois, instauraram práticas da mentira descarada como expressão normal da clique governante (com a rádio a ajudar à sua amplificação). Nisto, foram acompanhados pelo poder “soviético” instalado na sequência da revolução de 1917 que havia derrubado o czarismo. Nisto e na facilidade e indiferença com que mandaram assassinar adversários políticos e, por fim, comunidades inteiras (como milhões de judeus ou “agentes ocidentais”) que pereceram nos fornos crematórios ou nos gulags siberianos.

Obviamente, fora deste espaço ocidental onde os Direitos do Homem tinham alguma aplicação, não eram poucos os países onde se matava com ligeireza e impunidade, por obra de regimes ditatoriais de diversos matizes. Mas também existiram casos de espécie: o Japão foi uma potência imperialista e militarista que causou indesculpáveis estragos e massacres em povos vizinhos, mas a mentira não fazia parte do seu discurso político. Diversamente, a URSS criou um estilo de argumentação estereotipada (“língua-de-pau”), rapidamente copiado pelos partidos-irmãos, em que, como escreveu George Orwell, a verdade passa a ser mentira e a mentira circula como verdade. E desde há muito que as opiniões públicas ocidentais se habituaram a não acreditar grandemente nas declarações e promessas dos estadistas árabes, genericamente considerados como pouco fiáveis. É certamente um preconceito, mas por alguma razão ganhou raízes em diversos sectores de opinião.

O espírito crítico e não fanático ou sectário foi geralmente capaz de “dar desconto” e se precaver, nos regimes democráticos, contra as omissões, inverdades ou “pequenas mentiras” a que mesmo os governantes mais honestos estão sujeitos, às vezes por “razões de Estado”, algumas das quais atendíveis, outras vezes por mero eleitoralismo, ou excesso de empenho na luta inter-partidária.      

O que agora nos aflige é que grandes potências tenham actualmente lideranças que nos estão a habituar a, sistematicamente, afirmar uma verdade entre cada duas mentiras, sempre com a mesma impassibilidade de expressão facial. A Coreia do Norte, as Filipinas, o Irão, a Rússia do senhor Putin, a Turquia de Erdogan ou a Síria de Assad (além da China, claro) estão talvez à frente dos regimes que praticam este tipo de discurso. E têm o deplorável hábito de eliminar (ou, pelo menos, tentam fazê-lo) aqueles que se lhes opõem ou os podem desmascarar. A tanto não chegam a Venezuela ou o próprio Brasil, mas, como vários outros, são estados onde a mentira baila alegremente na boca dos seus dirigentes. Nestes casos, a corrupção e o negocismo aparecem-lhes muitas vezes associados.

Finalmente, o espaço da mentira quase-institucional acabou de ganhar um importante alargamento com o surgimento do senhor Donald Trump, catapultado para a cabeça da mais poderosa nação do mundo, em grande parte devido ao seu discurso super-demagógico, primário e mentiroso. E a combinação vergonhosa da mentira com a violência e a morte tem vindo a campear nas terras da Síria e do Iraque setentrionais, primeiro pelos bárbaros do “Estado Islâmico”, e depois, sobretudo nos últimos tempos, com o castigo que tem estado a ser infligido à cidade-mártir de Alepo, onde nunca sabemos quem são os rebeldes e os resistentes, mas conhecemos sempre donde vêm os aviões e as granadas e os mísseis que arrasam a cidade e dizimam a sua população civil.


JF / 16.Dez.2016

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