O vestuário define, em primeira aproximação, a
pessoa que o habita. Mas também, muito fortemente, ele ganha significado pela
forma como a pessoa dispõe publicamente do seu corpo: a postura, a pose, o
gesto. Por exemplo, lembremo-nos do caso do toureiro: com o seu trajo de luces (onde os dourados, sobretudo
sobre uma cor forte, fazem o mesmo efeito que nas representações dos santos
católicos), o homem paramenta-se para um possível/provável encontro com a
morte. Atente-se em especial no modo como ele coloca a montera na cabeça, bem transversal e carregada sobre os olhos, como
para tornar mais sombria essa perspectiva. Imaginemos agora a montera em posição mais horizontal e a
imagem já nos fará sorrir evocando talvez aqueles bandarilheiros de há um
século, algo barrigudos e com um “ar de bimbo” indisfarçável. Levemos, porém,
mais longe a imaginação: a montera
posta “às três pancadas”, para trás, ou, ainda pior, em diagonal – e só nos
ocorrerá a figura de um Cantinflas ou de um pobre “muleta negra” acampado à
porta do Campo Pequeno à pedincha de uma oportunidade. Do drama, passou-se num
instante para o burlesco. Só pela maneira como o homem se cobriu.
Música simples e música complexa. Em um século a
música evoluiu imenso (como tudo o resto). Persistem as orquestras sinfónicas,
a música de câmara, as representações operáticas, os grupos corais, as bandas
filarmónicas ou os instrumentistas e as cançonetas populares (estas agora com
um sucesso, na modalidade “pimba”, nunca antes alcançado). E surgiu de novo,
qual onda avassaladora, o agrupamento “rock”
(música feita “à pedrada”) em que uma “bateria”, duas guitarras electrónicas e
um vocalista, com gestos inusitados (e ar selvagem quanto possível), têm
conseguido pôr em transe sucessivas gerações de “fans” (v.g., fanáticos) em
concertos de massas e feito expandir exponencialmente a indústria discográfica.
Tudo isto é música simples, no sentido em que, com mais subtileza ou grandiosos uníssonos,
com mais ritmo e percussão ou harmonia, toda ela nos pode facilmente penetrar
pelos sentidos e produzir efeitos de agradável bem-estar, êxtase ou melancolia.
Que nos puxa para o movimento corporal, a dança, ou nos embala para doces
adormecimentos ou evasões. Mas é claro que não é música simples de fazer. Os
seus criadores ou intérpretes têm sempre que ser génios ou possuir dotes
extraordinários, ainda que para isso certos performers
contemporâneos recorram ao uso e ao abuso de drogas.
Outra coisa é a música que outros génios tiveram que
começar a inventar quando bateram contra o tecto da excelência que os seus
antecessores haviam deixado. A “ruptura epistemológica" ter-se-á dado
quando perceberam que não se podia ir além da perfeição que os clássicos haviam
atingido. Então, partindo do impressionismo francês (Ravel, etc.), inauguraram
um caminho de experimentação e pesquisa, paralelo e coevo com os primórdios da
pintura não-figurativa, rompendo com as noções da harmonia, ritmo e melodia,
essenciais na composição romântica anterior. Stockhausen terá sido a figura
crucial desta história, mas é significativo que Boulez, agora desaparecido,
tenha começado por fazer estudos de matemática. O pensamento e a análise estão
aqui presentes, ao menos tanto quanto as sensações. Daí também as incursões
feitas por alguns na chamada música electrónica e nos seus diversos aparelhos,
dos sintetizadores aos computadores. É isto música, ou antes jogos de sons? Que
exigem, em todo o caso, disponibilidade especial ao auditor para compreender a peça simultaneamente ao
que escuta (ou mesmo antes). Para além dos efeitos de moda, tão corrente nas
sociedades modernas, só poucos conseguem amar
este tipo de música. Ouvi uma vez Penderecki no Scala de Milão – considerado um
neo-clássico, por reacção ao experimentalismo, mas nem por isso menos seu
tributário – e não desgostei, mas foi talvez mais o ambiente (partitura,
execução e envolvência) que me induziu a “degustá-lo”. Porém, sou incapaz de me
concentrar, apreciar e fruir da maior parte destas produções musicais “do meu
tempo”. É verdade que sou um leigo na matéria mas ainda assim sensível à música
simples do século XIX, fosse ela
popular ou erudita (romântica e/ou nacionalista). Por isso, não receio errar
muito se classificar esta música complexa
como elitista. Não necessariamente para a elite social, mas decerto para uma
elite de conhecedores da matéria.
Em todo o caso, aproveito o ensejo para reconhecer e
louvar grandes iniciativas como são ‘Os Dias da Música’ ou ‘Serralves em Festa’
e, em geral, a programação de instituições públicas como o Centro Cultural de
Belém, a Casa da Música do Porto, a Fundação de Serralves, o Canal 2, a Antena
2 e mesmo alguns programas da Antena 1 da RTP e os canais de notícias (salvo o
excesso de futebolismo). Até os múltiplos “festivais de Verão” animam a
economia e entretêm muita gente sem interesses para mais. Mas, num cenário onde
predominam o barulho, o fogacho e o “mau gosto”, aqueles primeiros espaços
cumprem o mesmo papel de reencontro connosco mesmos, de reaprendizagens e de considerarmos
novas maneiras de olhar o mundo que cumprem as velhas igrejas hoje vazias que
subsistem nos centros das cidades fervilhantes.
Hoje em dia afirmam-se sem dúvida grandes escritores
mas talvez que a abundância lhes diminua a influência que outros tiveram nas
gerações de leitores do século XX. Em geral, sou tomado de entusiasmo pelas
imaginativas histórias ficcionadas de um Pérez-Reverte (por exemplo em A Pele do Tambor, que ainda não
conhecia). Mas ler (ou reler) Tolstoi, Malraux ou Kafka percute em nós de modo
intenso, ainda que os seus textos nos sejam mais distantes, na forma como relatam,
nos temas ou nos universos em que se inscrevem. Por exemplo, do primeiro, em Visions de Sébastopol, redescobri os
ambientes de guerra experimentados pela geração de meus avós e as diferentes expectativas
que alimentavam as classes sociais de então em uniforme, apesar do risco comum.
No francês, esforcei-me por interpretar a variedade e desmedida do seu léxico
no universo fechado dos aventureiros de La
Voie Royale, em confronto com a inesgotável selva oriental, a sensualidade,
a sombra do ópio, o sofrimento físico e tentação da morte. E no checo, tomando
como boas as traduções de La Métamorphose
e outros contos, pude seguir penosamente a tortuosa imaginação de um escritor
enredado nos meandros da depressão e do seu próprio desespero, num meio social
em crise apesar das lustrosas aparências e num tempo em que a Europa se
estraçalhava e, ali ao lado, a psicanálise estava ainda nos seus primeiros
balbuciamentos. Mas todos eles fazem parte de plêiade de criadores literários
que ajudaram a construir os fundamentos culturais da modernidade em que se formaram
as gerações actuais.
A Associação Portuguesa de Sociologia realizou no
Algarve o seu 9º congresso, testemunho de uma vitalidade associativa notável
para uma agremiação de cientistas apenas com três décadas de existência. A este
propósito, Ana Romão, João Teixeira Lopes e Paula Abreu subscreveram um
oportuno texto onde se afirma que a sociologia «é uma das maneiras mais
estimulantes de […] não desistirmos de encontrar as causas dos fenómenos […]» (Público, 5.Jul.2016). Não estou certo de
que esta ciência social se encontre no seu melhor período, mas partilho
inteiramente daquela mesma convicção. Outro tanto não direi da frase com que
aqueles estimados colegas encerram o seu texto, que remete para uma história
antiga, com mais de 150 anos: «trilhar os caminhos difíceis é a decisão mais
certa para, compreendendo-o, mudarmos o mundo». No meu modesto parecer, a
sociologia devia exigir-se tanto na compreensão dos sentidos das mudanças –
propostas ou encetadas – como nas razões das resistências e tentativas de
conservação dos acquis de épocas
anteriores. Os programas de “mudar do mundo” (“changer le monde, changer la vie”) tiveram e têm todo o cabimento
em certas confrarias (secretas ou não, laicas ou religiosas), em movimentos
sociais e (para aqueles que pretendem servir-se dos instrumento do poder de
Estado) em partidos políticos com tal vocação. Mas a confusão de motivações
pessoais pode não servir os propósitos de uma disciplina que, com dificuldade,
adquiriu o seu lugar no espaço da ciência moderna.
Fez 80 anos no passado dia 18 que os generais
espanhóis desencadearam um golpe-de-Estado militar contra a jovem República,
apoiados pelo falangismo e o que de mais conservador exista no país. O
operariado e os sindicatos, o povo de esquerda, o progressismo republicano,
fizeram-lhes frente nas grandes cidades frustrando os seus intentos. Mas, com o
apoio externo de Hitler e Mussolini, Franco ocupou grande parte das províncias
com o seu exército de marroquinos e instalou-se uma sangrenta guerra civil que
durou quase três anos. No final, a nação estava devastada e dividida, também
refugiada no exterior e profundamente ressentida por tempo de duas gerações.
Alguns nostálgicos do anti-fascismo ainda comemoram as esperanças desses dias
de mobilização e exaltação popular. Mas, à terceira geração, muita coisa muda
no sentido que atribuímos aos factos. No 25 de Abril, os capitães portugueses
viram-se de imediato sustentados pelo povo urbano em festa. No Egipto, foi a
força desse mesmo povo urbano que derrotou Mubarak, com a neutralidade do
exército; mas foi este que, com mão de ferro, travou a dinâmica de islamização
que se seguira. Agora, dá-se na Turquia o surpreendente levantamento de um
sector militar, sem que se percebesse bem quais as suas intenções. Parecia nas
primeiras horas estar a ter sucesso mas o apelo de um Erdogan (em fuga) para
que o povo saísse à rua e enfrentasse os soldados surtiu efeito: desta vez, os
populares bloquearam os tanques e os meios aéreos tornaram-se inúteis. Os
responsáveis e os comentadores ocidentais ficaram em suspenso perante tais
acontecimentos. E, como sempre, “ay de
los vencidos”. Mas é quase certo que a deriva de islamização do regime
turco vai acelerar-se e talvez se observe um reajustamento de todas as relações
internacionais na região. Com alastramento das frentes de guerra? A benefício
da Rússia? Em perda para o Ocidente? (pode ler-se a interessante análise de
Carlos Gaspar: “Berlim e a instabilidade europeia”, Público, 21.Jul.2016).
O campeonato da Europa de futebol foi um
acontecimento com surpresas e confirmações do que já se antevia. No plano
desportivo e tal como acontecera no último campeonato nacional, não ganhou o
conjunto que melhor futebol praticou, o da Alemanha. Mas a equipa portuguesa
realizou um feito notável com o seu triunfo, graças à inteligência operativa do
seleccionador Fernando Santos e à coesão que soube construir dentro e em redor
daquele lote de jogadores. Além disso, vencer a França na final teve um sabor
muito subjectivo, castigando o chauvinismo gaulês e dando uma rara e breve mas
genuína alegria a milhões de portugueses (que o amigo Paquete de Oliveira
infelizmente já não pôde partilhar). Porém, sobressaiu também a grande
uniformidade do jogo praticado sobre os relvados: predominância do poder físico
dos jogadores; acção distribuída sobre a totalidade do terreno; muito “pontapé
para o ar” e jogo de cabeça improdutivo; aborrecidos duelos de corpo-a-corpo
junto às linhas laterais; excesso de cruzamentos da bola sobre a grande área; e
estratégias assentes sobre a defensiva. Apesar de Ronaldo (em declínio),
notou-se a falta de grandes virtuosos, com o exemplo contrastante de um Eric
Dyer, formado nas escolas do Sporting e por este desprezado, ter conquistado um
ano depois um lugar fulcral no team
da Inglaterra. No plano social, o nacionalismo larvar existente nestes pleitos
não ultrapassou as suas marcas habituais e foram milhões as pessoas que
vibraram emocionalmente com a incerteza dos resultados: um bom espectáculo
mundializado! Mas, de novo, a agressividade patente em algumas minorias de
jovens acéfalos e encharcados em álcool justificou as acções de força
repressiva das polícias e as medidas securitárias tomadas pelo governo do país
organizador, o que não impediu mais uma noite de terror, desta vez em Nice, no quatorze juillet. Veremos como correm as
coisas nos Jogos Olímpicos de um Brasil em crise, onde esta espécie de guerra
simbólica entre nações se dissipa fortemente em favor da admiração do feito
atlético, mas onde a grande concentração de massas humanas e a exibição
mediática global criam sempre condições tentadoras para qualquer gesto
terrorista. Todos estes eventos desportivos tornados espectáculos universais
contêm tais potencialidades. Mas cada um deles inclui especificidades próprias
que agravam ou diluem os riscos e as fruições possíveis. Compare-se o futebol
com o ténis ou o boxe com o críquete! E imagine-se o que poderão ser os
próximos rendez-vous em Moscovo ou no
Qatar.
E porque falamos de emoções, vale lembrar que há
cinco pulsões essenciais da vida humana (que porventura só se tornam evidentes
para o próprio quando esta está prestes a esgotar-se): to eat, to act, to fuck, escape
the paine and to think. Os instintos naturais têm todos a mesma dignidade.
Mas a espécie humana distinguiu-se, desde o início, pela capacidade de pensar:
memória, acção deliberada, auto-reconhecimento, inter-relacionamento de factos,
compreensão de processos, abstracção teórica e especulativa, imaginação,
pensamento estratégico e outras propriedades. A agressividade natural existe e
deve ser reconhecida; mas, salvo casos patológicos, pode ser controlada. Se o
próprio o não consegue, exige-se a ajuda de terceiros, mais atentos e informados.
A actividade desportiva pode contribuir para tal. Mas no espectáculo de massas
isso é muito mais difícil de conseguir.
Atenção! Cidadãos comuns, apaguem agora os vossos
receptores. Esta é só para militares reformados… (porque já estão libertos do
quotidiano castrense e mais propensos a sorrir sobre aspectos cómicos das suas próprias
vivências).
Que me perdoem os antigos oficiais do exército mas,
desde que deixaram no museu os talabartes donde pendiam os seus pesados
chanfalhos, a maneira como os da marinha pegam na espada embainhada é muito,
mas muito mais, elegante e superior à sua. Os marujos cuidam da aparência e,
beneficiando também da maior leveza da sua tradicional arma branca,
transportam-na com esmero e donaire. Parados e à vontade, pegam nela com os
dois dedos menores na mão esquerda enfiados no guarda-mão; perfilados, mantêm a
posição, flectindo apenas ligeiramente o cotovelo; em marcha, agarram na bainha
entre as duas abraçadeiras, com a ponta para diante e a parte arqueada da
lâmina virada para cima. Tudo muito aristocrático e harmónico com as sucessivas
posturas corporais. E muito uniforme, tal como aprendido desde os tempos da
Escola Naval, mas feito com grande naturalidade.
Em total contraste, os “cinzentos” (que nunca se
preocuparam com esta estética) pegam na arma como qualquer paisano o faria, ou
o “almeida” na sua vassoura. Porque a sua espada não dispõe do pequeno fecho
que solidariza a arma com a bainha, não podem sustentá-la pelo guarda-mão,
mesmo se alguns metem um palito ou um pau de fósforo para tentar o travamento.
Mesmo assim, desajeitadamente e com frequentes insucessos, tendem a sustentá-la
com os copos debaixo do antebraço, apertando o instrumento lateralmente contra
o corpo, mas com isso reduzindo muito a liberdade de movimentos deste e da
própria mão esquerda. Pior é ainda com os sabres de cavalaria (também usados
pelos cadetes da Academia Militar), pelo maior volume do guarda-mão. Mas, mais
frequentemente pegam na arma pela bainha, abaixo da argola do talim,
projectando o punho para diante, como se estivessem a oferecer ao interlocutor
o uso da lâmina mortal com que desejam fazer-se trespassar. Ou, algo ingenuamente,
como se oferecessem o seu mais belo ramo de flores à dama por cujos olhos se
encontram apaixonados.
Mas termino com o relato abreviado de uma caricata
cena que se passou em tempos com um oficial da administração naval. Porque
nessas épocas os mesmos não comandavam forças em “ordem unida” e como, por
acidente, se tivesse partido a lâmina da sua espada, o nosso herói resolveu
substituí-la por um sarrafo de madeira, já que nunca seria chamado a
desembainhá-la e saía muito mais barato. Aconteceu-lhe, porém, no ultramar, ser
chamado de urgência a integrar um tribunal militar, onde as sentenças se liam
com os juízes de espada desembainhada, coisa que o nosso homem ignorava. Quando
chegou o momento supremo, a audiência só pode ter claudicado quanto ao
dramatismo habitual destas ocasiões. “Apresentar… sarrafos!”. E nem sequer, ao
menos, o réu terá aproveitado da circunstância.
Bom tempo de Verão! (para quem pode gozá-lo) Neste
dia em que começam a concentrar-se no Tejo os grandes navios veleiros do mundo,
simbolizando alguns dos nossos melhores sonhos.
JF / 22.Jul.2016
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