Encerramos por aqui esta segunda série de crónicas desassombradas e ensaios sócio-lógicos, que já leva dois anos e meio de análises e reflexões.
Muitos dos textos inseridos referem-se à vida política, em particular na forma como ela vai sendo modelada em Portugal. Não se trata de uma fixação particular do autor neste tema, nem ele é geralmente muito agradável de tratar, mas apenas porque, numa perspectiva de cidadania e da polis como responsabilidade de todos e de cada um, a política sobrepõe-se, em última instância, a todos os outros aspectos das nossas vidas. Note-se, porém, que esta percepção só se tornou possível com a progressiva instalação da Modernidade (e do Estado-nação) pois que até então a política era, não só (como hoje) uma actividade exclusiva de uns poucos – os que detinham o poder e dominavam a sociedade, e os que procuravam conquistar tal posição –, como de facto a grande maioria das pessoas se concebia, pensava e agia fora de tais preocupações, dedicando-se antes a assegurar a sua sobrevivência material, a usufruir da felicidade possível, a tratar dos interesses e dos negócios, ou a cuidar da salvação da sua alma.
O mundo mudou imenso neste último meio-século, geralmente para melhor, mas também com aspectos negativos, que não podem ser ignorados e que é importante conhecer e combater.
Não sei se estas crónicas e análises irão ainda prosseguir. Dependerá das circunstâncias e da minha relação com elas. E também é certo que detesto repetir-me.
Parto da minha auto-análise. Olho para trás, para o que fiz, para o que pensei. O que é que isto pode revelar a respeito de mim próprio? Se não estou a ser demasiado auto-complacente, talvez uma hierarquia de três características o possa resumir. Primo: A orientação valorativa mais profunda, mais determinante, terá sido sempre a procura de respostas e de comportamentos pessoais éticos, isto é, que conseguissem distinguir o bem do mal, o melhor do menos bom, o princípio estruturante da mera circunstância, etc.; e de, assim clarificado o terreno, procurar em seguida um lugar e um caminho próprios (não será isto arrogância? soberba?), mesmo contra interesses pessoais vistos como legítimos pelos demais, ou pagando algum isolamento dentro do grupo de pertença face à necessidade de denúncia dos seus “pecados”. Sempre me marcou a frase de um histórico: “de mal com el-rei por amor dos homens, e de mal com os homens por amor d’el-rei”. Neste sentido, tal não pode deixar de tomar-se se não como um idealismo, quer isso tenha assumido temporariamente a forma de Deus, da pátria, de uma instituição, da liberdade, da Ciência ou da humanidade. Secundo: Posso talvez identificar a busca, sem interditos, de explicações racionais, lógicas, comprováveis, para tudo aquilo que nos rodeia, sobretudo no Homem e na Sociedade. Daí o interesse que, desde miúdo, nutri pela disciplina da História, a insatisfação para com o conhecimento consolidado enquanto verdade indiscutível partilhada com auto-satisfação por uma dada comunidade (a nação, a classe social, os colegas, a família). Foi talvez aquilo que Foucault chamou a “vontade de saber”. Mas sempre implicando uma atitude crítica para com o “instituído” e também uma necessária modéstia acerca do nosso saber face à imensidão do que desconhecemos. Tertio: Enfim, uma postura activa, de esforço pessoal e cooperativo – em suma: de trabalho –, não apenas como fonte de experiência directa mas talvez sobretudo como “transacção cultural”, que salda as dívidas de injustiças externas (a desigual distribuição da inteligência, da riqueza, da beleza, etc.) e de benefícios usufruídos imerecidamente (a educação recebida, uma carreira profissional bafejada pelas circunstâncias, etc.) com esta “postura de trabalhador”, que daí tira o seu principal orgulho.
Há sempre ventos, inesperados e cortantes, que vêm perturbar a calmaria em que nos instalamos ou as previsões mais pessimistas. Oxalá os próximos permitam a renovação das melhores esperanças que persistentemente têm alimentado a aventura humana.
João Freire / 21.Jun.2015
Sem comentários:
Enviar um comentário