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domingo, 5 de outubro de 2014

Património cultural

(Para que certas ideias não fiquem definitivamente sepultadas, retoco e divulgo estes dois documentos produzidos há alguns anos atrás, o primeiro dos quais não mereceu a atenção do jornal de grande circulação a que foi enviado, e o segundo teve praticamente o mesmo destino por parte das entidades publicas responsáveis.)



Especialistas do património histórico: dentro das “funções de soberania”


Estão em curso importantes reformas da organização do Estado e dos serviços de interesse público, da administração financeira e fiscal, e dos regimes laborais do funcionalismo público.
Pelo que se vai sabendo deste último processo, tem sido intenção firme dos governos restringir drasticamente o estatuto privilegiado de emprego (garantido) dos agentes do Estado, reservando-o apenas para um conjunto de carreiras e categorias adstritas a funções de soberania, passando os restantes progressivamente para o regime “de contrato de trabalho”, com condições que se aproximarão cada vez mais das dos assalariados do “sector privado”. 
Nas tais funções de soberania caberiam os profissionais das magistraturas, da diplomacia, das forças armadas, das forças de segurança, dos serviços de informações da República, das inspecções-gerais dos vários ministérios e talvez ainda dos impostos ou das finanças públicas.
Na nossa opinião, justificar-se-ia acrescentar a esta lista os especialistas da preservação do património histórico, incluindo nesta noção, nomeadamente: a biblioteca, os arquivos e museus nacionais; a academia das ciências e o instituto da língua portuguesa; a entidade responsável pelos monumentos nacionais; e alguma outra instituição de natureza equivalente. Falei apropriadamente de “especialistas” e não da totalidade dos actuais efectivos destes departamentos, muitos dos quais, embora funcionalmente indispensáveis, serão apenas coadjuvantes cujo estatuto laboral não justificaria nenhuma especial protecção.
Outro tanto não sucede, porém, com os referidos especialistas, todos superiormente qualificados do ponto de vista académico, e devidamente especializados no conhecimento científico, técnico e profissional dos respectivos domínios. Nestes casos, a relevância das tarefas e missões desempenhadas justifica a existência de um estatuto aparentado ao dos outros diversos “funcionários de soberania”, com regime de nomeação, proporcionando-lhes maiores reconhecimento, prestígio e segurança de emprego, e exigindo-lhes, em contrapartida, elevados padrões de dedicação, isenção e capacidade de ajuizamento histórico-cultural.
Ao contrário de domínios de soberania do Estado marcados pela urgência, iminência, segurança ou autoridade, não se trata aqui, geralmente, de nenhuma de tais características. Mas trata-se, sim, da responsabilidade de contribuir para a continuidade histórica da comunidade nacional, através da salvaguarda e vivificação de algumas das suas principais manifestações, vestígios e símbolos, que são elementos essenciais a uma identidade colectiva, como povo.
Talvez ainda não seja tarde para que os responsáveis por estas reformas considerem o que aqui foi evocado e lhe dêem a atenção e a concretização prática e operativa que julgamos merecerem.

***

Projecto de Regulamento para a Preservação da Memória Urbana


  1. A salvaguarda e preservação da memória do espaço urbano compete a toda a sociedade e, legalmente, aos poderes públicos, em particular aos órgãos municipais.
  2. Para além das normas legais existentes ligadas à classificação de edifícios ou conjuntos patrimoniais urbanos, aos monumentos nacionais e às comissões municipais de toponímia, o presente Regulamento cria um novo dispositivo de âmbito municipal exclusivamente dedicado à preservação da memória urbana.
  3. O órgão de direcção e deliberação relativo a este serviço é a Comissão Municipal para a Preservação da Memória Urbana (CMPMU), a inserir convenientemente na estrutura orgânica do município e no respectivo orçamento.
  4. São competências da CMPMU:
a)      Estabelecer as linhas gerais de orientação do serviço;
b)      Discutir e aprovar o plano anual para as actividades do serviço e respectiva proposta orçamental;
c)      Reunir ao menos uma vez por trimestre para discutir e aprovar propostas concretas de actuação do serviço;
d)     Discutir e dar parecer sobre o relatório anual de actividades do serviço e respectiva execução orçamental.
  1. A CMPMU terá a seguinte composição:
a)      O vereador da Câmara Municipal que tiver a tutela deste serviço, ou o funcionário superior municipal em quem aquele delegar tal competência, que presidirá;
b)      Dois funcionários superiores municipais titulares de funções relacionadas com o objecto deste Regulamento, por nomeação daquele vereador;
c)      Representantes do Departamento Ministerial da Cultura e do IGESPAR;
d)     Três professores doutorados de diferentes universidades especialistas em história, indicados por estas instituições;
e)      Dois professores de diferentes universidades especialistas em arquitectura ou urbanismo, indicados por estas instituições;
f)       Dois representantes designados por associações culturais sediados no concelho escolhidas pelo vereador acima referido;
g)      Três cidadãos de reconhecida competência no tema, cooptados pelos restantes membros da Comissão;
h)      O funcionário superior municipal responsável pelo serviço.
  1. A gestão e execução das actividades tuteladas pela CMPMU é confiada a um serviço permanente municipal, com a orgânica e os recursos humanos e materiais que lhe forem atribuídos.
  2. As actividades de Preservação da Memória Urbana serão publicamente divulgadas e disporão de modos de acolhimento facilitado para as sugestões apresentadas por cidadãos e qualquer entidade de natureza pública, económica, social ou cultural, no seu âmbito próprio.
  3. A materialização dos planos de actividades de Preservação da Memória Urbana faz-se através dos seguintes meios:
a)      Os Marcos da Memória Urbana;
b)      Os Nichos da Memória Urbana;
c)      Os meios complementares de informação pública.
  1. Os Marcos da Memória Urbana são uma das duas formas específicas de intervenção do serviço, consistentes em padrões normalizados implantados na via pública, assinalando o local da existência passada de um edifício, conjunto patrimonial urbano ou acontecimento histórico cuja memória deva ser preservada. Cada Marco da Memória Urbana conterá obrigatoriamente:
a)      Uma titulação e um texto descritivo, sintético, com as datações devidas, em língua portuguesa;
b)      Uma tradução do texto anterior, eventualmente abreviada, em língua inglesa;
c)      Uma representação figurativa simples da edificação, conjunto patrimonial ou acontecimento memorizado, de forma adequada mas perdurável.
  1. Os Nichos da Memória Urbana são a outra forma específica de intervenção do serviço, consistentes num espaço normalizado, em enclave, inserido em zona vestibular de qualquer edifício público construído no local da existência passada de um edifício, conjunto patrimonial urbano ou acontecimento histórico cuja memória deva ser preservada. Cada Nicho da Memória Urbana deverá incluir:
a)      Um espaço mínimo de 3 metros quadrados de área, visivelmente identificado e franqueado ao público utilizador desse edifício público nos horários normais do seu funcionamento;
b)      Textos descritivos do local memorizado, com as datações devidas, em língua portuguesa;
c)      Tradução do texto anterior, se necessário abreviada, em língua inglesa, e eventualmente outras;
d)     Representações figurativas da edificação, conjunto patrimonial ou acontecimento memorizado, de forma adequada (desenhos, fotografias, etc.), com referência a personalidades ou artefactos relevantes, com intencionalidade didáctica.
  1. Os meios complementares de informação pública serão utilizados de forma supletiva em relação aos anteriores, nomeadamente:
a)      Em publicações municipais, ou outras, editadas em papel, monográficas ou em série;
b)      Em suportes digitais, no âmbito dos programas e-cidade;
c)      Em outros suportes e meios de comunicação áudio-visual, com intenção informativa e vocação cultural.
  1. A decisão de implantação dos “Marcos” e dos “Nichos” será precedida da instrução de processos individuais que equacionem e sustentem a sua importância para a preservação da memória urbana. A iniciativa de abertura de cada processo pode ter origem na CMPMU, no próprio serviço municipal ou em sugestões recebidas do exterior.
  2. Normas internas aprovadas pela CMPMU definirão a autoria, a responsabilidade e o modo de aprovação dos textos e representações figurativas a fixar nos “Marcos” e nos “Nichos” acima referidos, no respeito pela legislação vigente.


JF / 5.Out.2014

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