(Para que uma ideia não fique definitivamente sepultada nas cinzas da nossa papelada, divulgo este breve ensaio produzido já há alguns anos.)
A vida quotidiana nas nossas sociedades contemporâneas mais amadurecidas é alimentada por dinâmicas económicas imparáveis que a acção política (sobretudo a prosseguida pelos governos nacionais) tenta, com melhor ou pior sucesso, controlar ou corrigir em função das suas orientações próprias. Porém, aquele dinamismo económico, fundado na plasticidade dos mercados e na iniciativa de múltiplos agentes, e potenciado nas últimas décadas pelos novos meios de comunicação e informação, que ajudaram a abater as barreiras ainda subsistentes (o bloco dos países socialistas, as fronteiras de pobreza do “terceiro mundo” ou as diversas culturas locais), tem vindo a ser contido (ao mesmo tempo de desenvolvido) em determinadas plataformas tecnológicas consistentes, que sucessivamente são superadas por outras com maiores potencialidades, que umas vezes inviabilizam as antecedentes, e outras vezes as preservam, acomodando-as apenas num papel algo diferente e um pouco menos importante do que até aí.
Se pensarmos no último meio-século, estamos agora a sofrer, em pleno, os efeitos dos automatismos de base electrónica, dos materiais “artificiais”, da tele-informática, da bio-genética e das tecnologias aero-espaciais. Mais de longe vêm as aplicações generalizadas da electricidade e do motor-de-explosão, que se têm mantido estáveis desde há praticamente um século. A física nuclear aplicada estagnou um tanto, por força de reacções sociais temerosas dos riscos que comporta. Enquanto, por outro lado, a máquina-a-vapor e o uso do carvão como combustível quase foram erradicados pelas vantagens económicas e produtivas de sistemas alternativos.
Neste contexto, a reprodução de modelos de relações e de representações sociais tem sido fortíssima e cada vez mais alargada, estruturando-se em contextos urbanos e massificados, em torno da função económica do consumo e na exibição do self em espaço público, no uso de uma língua-veículo cada mais vez mais universal (o “americano”) e em padrões culturais “ocidentalizados”, como a música ou a moda de vestir/parecer, ainda que inspirando-se em sonoridades ou adereços exóticos.
Num tal quadro, as formas tradicionais de controlo social, como a educação familiar, as crenças religiosas, a moralidade pública ou a repressão policial, revelam cada vez mais claramente a sua incapacidade e desajustamento perante tão grandes cenários de mudança, e as tentativas para criar novas formas de controlo social, como a prolongada escolarização geral da população juvenil ou os ensaios para uma cidadania mais activa e responsável, não produziram os resultados esperados, ou ainda não tiveram tempo de capitalizar de maneira durável um modelo de socialização de comportamentos e atitudes sociais de novo tipo.
Face a este défice, continua a imperar a incessante promoção da publicidade para a posse e dissipação de bens materiais e para a difusão de certos mitos estético-simbólicos – o automóvel e a star saída do anonimato são receitas de êxito garantido –, ao mesmo tempo que, nos últimos anos, se tem assistido a um irresistível avanço do apelo à diferenciação (a notícia-choque, a criatividade, as minorias, os gestos radicais, o “individualismo”) e a tentativa continuada para a legitimação das subjectividades e afectos (as “orientações” sexuais, “o directo” de-microfone-aberto à reacção do indivíduo indiferenciado, as oportunidades “para nos exprimirmos e cruzarmos experiências”, a ascensão do ficcionismo literário e a correlativa perda do discurso lógico e racional, etc.), onde antes se discutiam e confrontavam conceitos e ideologias.
Que estas saídas não são satisfatórias para o conjunto do sistema social e para muitas das pessoas que o compõem, parecem sugeri-lo vários tipos de indicadores ao nosso alcance: a opinião discordante de fracções significativas das populações, quando perguntadas a tal respeito em inquirições técnica e cientificamente controladas; a infelicidade existencial de muitos indivíduos, cujos casos mais agudos se manifestam por patologias de que os médicos especialistas muitas vezes dão conta; o “efeito perverso” da dissensão comportamental simples (que pode ir desde a fuga-aos-impostos até à violação discreta de várias normas prosaicas de conduta social, como o código da estrada, por exemplo); as práticas de vandalismo e de “violência urbana”; e, enfim, as vertigens do aniquilamento, pessoais ou grupais, auto-infligidas ou dirigidas a terceiros, naquilo que elas constituam de resposta específica a estes condicionamentos e angústias, e não como mera manifestação de criminalidade ou de desvio social, em geral.
Esta breve e arriscada síntese, pareceu-nos necessária para situar o nosso objecto de reflexão e proposta de trabalho. Mas podemos, já a seguir, avançar certas tomadas-de-posição por ela suscitadas, com consequências práticas imediatas.
Uma primeira dessas assunções é de natureza ética e exprime-se pela não-aceitação da negatividade, da dor e da destruição. Deploramo-las e desejaríamos preveni-las e evitá-las; no mínimo, procuraremos reduzi-las.
Outra postura que assumimos é a da centragem sobre o concreto, a micro-escala e “as pessoas” (comportamento, entendimento e sentidos simbólicos), naturalmente sem ignorar a insignificância de tal fixação face às “tendências pesadas” e às grandes mudanças (políticas, em particular) que modelam a evolução das sociedades. Tal opção estriba-se, porém, no desinteresse pelas intervenções ditadas a partir das posições de poder, bem como pela recusa do encerramento em quadros teóricos de médio e longo alcance.
Em sentido semelhante, também prescindimos do contributo do estudo histórico que, cerceando decerto a compreensão dos fenómenos, pouco acrescentaria aos out puts previstos, que propomos deverem ser essencialmente de carácter prático, pontual ou mesmo elementar, embora difundível, reprodutível e perfectível pela análise do uso público e da experiência.
Nestas condições, esclarecemos que os referidos resultados deveriam desejavelmente configurar um modelo conceptual susceptível de registo legal como patente ou modelo, e não a natureza de uma norma jurídica que viesse a ser tornada obrigatória por imposição de um poder político legítimo.
E em quinto lugar, estabelecemos como indispensável a metodologia do trabalho-em-grupo pluridisciplinar, envolvendo nomeadamente arquitectos (ou designers), engenheiros (ou tecnólogos), economistas (ou gestores), psicólogos e sociólogos (e talvez outros ainda, mas de forma mais pontual), assim como adoptamos o princípio metodológico da acção-participada-com-os-actores, em especial com os agentes económicos (responsáveis de empresas) e dirigentes públicos (autarcas, etc.), sem excluir o contributo pontual dos “utilizadores” e futuros beneficiários dos out puts deste trabalho colectivo.
Posto isto, definimos, de forma fundadora e prescritiva, que a nossa problemática de estudo, projecto e intervenção deverá ser a da qualidade dos espaços públicos de uso quotidiano.
Algumas precisões, sobre cada um dos termos incluídos nesta definição.
A qualidade constitui uma procura social do nosso tempo. Não nos encerraremos na perspectiva normativista que marca algumas das preocupações dos poderes públicos contemporâneos, bem como da comunidade internacional, mas assumimos a melhoria da qualidade existente dos equipamentos, dos dispositivos e dos processos como a possibilidade e a conveniência de responder a uma expectativa civilizacional aceitável e positiva.
Consideramos espaços públicos todos aqueles que são franqueados ao acesso livre das pessoas, incluindo, portanto, os espaços comerciais, de prestação-de-serviços e de lazeres pagos, para além dos espaços de uso comum de toda a população (as ruas, as praças e jardins, os parques, etc.) e dos edifícios e equipamentos de serviço público (como as escolas, os centros de saúde, as repartições de finanças e municipais, as “lojas do cidadão”, as cabinas telefónicas, etc.).
Finalmente, o uso quotidiano, quase implícito no conceito anterior, justifica-se sobretudo como uma indicação de prioridade e também de universalidade e polivalência do equipamento, face a outros “objectos” de uso mais raro (por exemplo, os hospitais ou os cemitérios) ou mais especializado (como as salas-de-visita das prisões ou as áreas sujeitas a servidão militar ou especial protecção ambiental). Neste sentido, os cafés e restaurantes, embora de propriedade empresarial privada, representam espaços e equipamentos de bastante relevância para este projecto, talvez equiparáveis à via pública pedonal ou aos veículos de transportes urbanos de passageiros. Correspondem aos chafarizes, aos mercados e aos lavadouros de outros tempos.
Poderíamos exemplificar, com vários casos passíveis de se constituírem como objectos de estudo, projecto e intervenção, não fôra o risco de poderem limitar a nossa imaginação e o campo de brain storming futuro. Apesar disso, podemos evocar “coisas” como: a organização e compatibilização de espaços para fumadores e não-fumadores; a desincentivação/inibição de zonas físicas a certo tipo de pessoas; os procedimentos e dispositivos (telefónicos e presenciais) de atendimento de utentes e indivíduos em busca de informações; a preservação do “efeito-marca” de certas instituições contra o “novo-riquismo” das siglas e dos “projectos”; a segurança, higiene, luta contra o vandalismo e incentivação à cidadania em espaços públicos anónimos; a dissuasão de comportamentos automobilísticos “assassinos”; a adopção de linguagens mais “amigáveis” para a operação de máquinas de serve yourself (distribuidoras de bilhetes e outras); etc.
Mas não desejaríamos fazer este apelo sem avançar alguma coisa de concreto e palpável. Assim, começaríamos pelo alvitre de quatro projectos-piloto, que talvez pudessem servir de teste e experimentação pedagógica para esta forma de conceber, trabalhar e intervir no espaço público quotidiano, envolvendo diferentes actores sociais, interesses e tempos de aplicação. Ei-los, bem simples, ou mesmo elementares:
- o balcão de café;
- a paragem de autocarro;
- o banco de jardim;
- e ainda talvez sobre a suficiência de um só passeio pedonal (em certos casos, paralelo a uma pista “ciclável”) em vias de circulação semi-urbana, com os locais de atravessamento aconselháveis.
São todos artefactos ou dispositivos modestos. Et pourtant…
JF / 31.Ago.2014
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