Noticiou hoje o jornal Público (ver aqui) que, neste momento, “existem 11 milhões de casas vazias para 4,1 milhões de sem-abrigo na Europa”. E, mais adiante, transcreve a opinião de Freek Spinnewijn, director da Federação Europeia das Organizações Nacionais que Trabalham com os Sem Abrigo (FEANTSA, ver aqui), uma organização que trabalha com estas pessoas nos países da União Europeia. Diz este jovem socialista: «"Os governos devem fazer o máximo possível para colocar as casas vazias no mercado". Acreditamos nas boas intenções desta declaração, vinda numa altura em que a pobreza nesta Europa (com gente) «rica» não tem parado de aumentar nas últimas décadas. A sua intervenção traz à luz do dia, na imprensa europeia respeitável, essa constatação, que foi traduzida neste mote por jovens libertários há alguns anos a esta parte: «Tanta gente sem casa, tanta casa sem gente». E isso acontece também quando se começam a organizar grupos de cidadãos em torno do «direito a um rendimento incondicional mínimo», quando também na Alemanha se fala na redução do horário de trabalho como forma de diminuir o elevado desemprego gerado pelas políticas liberais combinadas com os enormes ganhos de produtividade.
Contudo, o director da FEANTSA deveria saber que as casas vazias que pululam por toda a Europa no rescaldo do festim especulativo imobiliário, são bens que estão no mercado. E que, precisamente porque estão no mercado, é que estão vazias. Não se vendem porque não há compradores. E, nesse processo, um número crescente de pessoas ficou «fora do mercado». Ou por terem sido despedidas ou porque nunca encontraram um emprego decente. Ou por terem visto uma grande redução dos seus salários. Ou porque os jovens nesta economia liberal-corporativa não encontram empregos, apenas biscates, bem abaixo do investimento que fizeram na sua educação.
Essas pessoas enfileiram na categoria «rejeitados» da moderna economia industrial (Marx chamou-lhes lumpenproletariat). Em palavras mais simples: estão impróprios para consumo pelas empresas e estão incapazes de consumir. Estão incapazes, enfim, de aceder ao mercado. E eles sabem disso, por muito que esperneiem. Ou porque não têm emprego ou porque o trabalho que arranjam não é suficiente para adquirir ou para alugar uma casa, são chamados agora "excluídos" pelos maus plagiadores de Marx. São excluídos muito embora estejam cá dentro e não se possam excluir desta sociedade por muita vontade que tenham de o fazer. Esse é o problema deles. Existem para lembrar aos restantes, a todos nós, que podemos ter essa sorte também. São, pois, excluídos de quê, senão do acesso ao mercado? Eles têm uma função essencial na sociedade. O de levar os restantes a aceitar tudo de uma qualquer entidade salvífica para não cair na mesma sorte. Quando caem no chão, literalmente, estes excluídos tornam-se visíveis, incomodam, desafiam a imagem piedosa que temos da Europa democrática, e passam à categoria de «sem-abrigo». E, como tal, tornam-se objecto destas novas formas de caridade laica institucionalizada que engrossam a categoria das ONGs. Sob a bandeira do apoio social, competem neste espaço assistencialista com as igrejas, que tranquilizam o espírito público.
A ideia tranquilizadora, que frequentemente se pretende fazer passar junto do público nesta Europa «civilizada», considera os «sem-abrigo» como uma categoria especial de pessoas, gente que não se enquadra nas regras morais vigentes ou nas situações de normalidade social e que, por isso, acaba por ser punida com a rua. Seriam, enfim, os alcoólicos, os toxicodependentes, os ex-presidiários e outros desafortunados que, por qualquer razão, não podem contar com o apoio familiar em momento crítico. Noutro lugar, num artigo intitulado «Nós precisamos de uma política para os Sem-Abrigo» (é caso para perguntar o que tem andando a esquerda para-lamentar a fazer estes anos todos…), Spinnewijn acaba por reconhecer que qualquer cidadão europeu poderá engrossar este grupo. Diz ele: “There are multiple pathways into homelessness. Often, individual experiences such as relationship breakdown, illness, addiction, eviction or experience of violence combine with external factors to cause homelessness. External factors can be structural; poor access to decent affordable housing, unemployment, precarious employment and discrimination and stigmatisation. They can also be institutional - release from institutions such as prisons, medical or children's institutions, poorly structured and administrated benefits systems and lack of service coordination”. (Europost, 29.Maio.2011). Afinal, a igualdade de oportunidades, propalada em fóruns sociais democratas como um ideal, existe já para a maioria da população: ela foi metida numa rampa inclinada que tem vindo a ser bem encerada.
No essencial, há que evitar a ideia que estes destinos individuais não são construções sociais violentas levadas a cabo por alguém que estabelece as regras sociais de forma imperativa (pedindo de empréstimo o vocabulário weberiano). Se, por hipótese absurda, um grupo de jovens sem rendimentos começasse a ocupar apartamentos vazios, ou antigos casarões abandonados que apodrecem no centro das cidades, em manifesto desrespeito pela lei, ou ainda imóveis desocupados que foram parar às mãos dos bancos (que têm sido subsidiados com o dinheiro de quem trabalha); se, enfim, esses jovens tentassem resolver essa impossibilidade no acesso à habitação por via da ocupação, numa acção directa, o mais certo seria terem de enfrentar a fúria dos governos democráticos, da polícia de choque, os maus tratos e a prisão. No essencial, para os guardiões desta economia de mercado é preferível ter as casas entaipadas e a apodrecer no centro das cidades do que serem ocupadas por «excluídos». Prédios devolutos e apartamentos vazios são apenas bens que se encontram em pousio, que aguardam a próxima retoma económica para se revalorizarem. Na melhor das hipóteses, os guardiões municipais podem tornar a paisagem urbana menos deprimente recorrendo às pinturas grafitosas sobre prédios entaipados, artes antes ilegais, mas agora encomendadas para não desagradar aos turistas. É uma solução que parece ter entrado no moderno manual do bom autarca. O desafio para os homens públicos é descobrir um esquema qualquer para que esses bens possam dar lucro aos seus proprietários. Infelizmente, o expediente dos «vistos dourados», adoptado recentemente pelo governo português, serve para os apartamentos do Oriente mas deixa de fora os milhares de T2 da da linha de Sintra. E se, por hipótese absurda, um governo tivesse capacidade para obrigar os capitalistas e os proprietários, por via fiscal ou por outra forma qualquer, a vender ou a arrendar esses prédios vazios a qualquer preço, quando foram pensados noutro contexto para encaixotar devidamente a «classe média» ou para dar lugar a mega-projectos especulativos, não me admiraria que esses velhos prédios entaipados, e outros que nunca foram estreados, começassem a ser demolidos para não «estragar o mercado». That's just business!
Recorde-se ainda, a este respeito, que os espaços colectivos de vida e cultura alternativas, que funcionaram durante décadas inseridas nos tecidos urbanos em edifícios ocupados, têm sido encerrados nos últimos anos, numa onda aparentemente concertada, sempre com o recurso à violência policial, em acções levadas a cabo por governos europeus de todas as cores. Outras tentativas recentes para ocupar espaços abandonados, com o objectivo de desenvolver projectos culturais alternativos têm tido a mesma sorte. Entre nós, as sucessivas leis liberalizadoras dos arrendamentos urbanos vêm ameaçar a sobrevivência de muitas associações e espaços de sociabilidade colectiva. São fenómenos políticos (situados fora da grande discussão retórica pelo cargo político, em torno de um objecto de «interesse público») que passam, por vezes, à margem da grande informação.
O artigo 25º, nº 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem afirma que: "Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência música e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou outros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade". A constituição portuguesa saída do 25 de Abril atribuía ao Estado deveres especiais nesta matéria, atribuindo ainda um papel especial às cooperativas. Esses deveres foram retirados e entregues à iniciativa privada nas revisões posteriores. Um direito humano básico voltou a constituir-se como puro negócio novamente, depois do interregno corporativo. O campo é fértil para todas as demagogias.
PG
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