A revolta política na Ucrânia (antigamente, o “celeiro da Europa”) deitou abaixo o presidente legal e o seu grupo de apoio mas levou a uma crise internacional de que ainda não vemos todos os contornos e consequências.
O que se passou na Crimeia poucos dias depois da vitória dos revoltosos na praça Maidan foi, no plano “técnico”, uma demonstração de força que, sem dar um tiro, teve imediato sucesso político: disse claramente a todos que a Rússia tinha interesses estratégicos no país que não podiam ser menosprezados; encorajou as populações russófonas da península a imporem a força da sua maioria; deu às do leste da Ucrânia o sinal de que poderão contar com o seu poder militar e político até onde for necessário; e enviou um sinal de conforto às expressivas minorias russas dos países bálticos e das antigas repúblicas soviéticas do Cáucaso. À Europa e aos Estados Unidos, lembrou que ela é ainda a segunda potência nuclear do mundo, que tem no gás natural uma importante arma de pressão económica (embora, naturalmente, de efeitos ambivalentes) e que o Ártico está na sua zona de jurisdição. Tal demonstração pode também ser útil face aos seus vizinhos do mundo islâmico, enquanto a China nada parece ter a temer, nem a Rússia a recear dela, dado o tampão territorial que representa por agora a imensa Sibéria, quase desértica de povoamento.
Houve jornalistas excitados que logo falaram de “guerra”. E só quando todos os políticos do Ocidente afirmaram que, longe disso, havia que encontrar uma saída negociada e diplomática para a crise (a despeito da firmeza das suas palavras e da ameaça de sanções), é que perceberam que ninguém tinha o mínimo interesse nisso. Além do mais, pelo que se depreende nas entrelinhas, Putin terá sempre argumentado nas suas conversas telefónicas com os líderes ocidentais que, em nenhum momento, os russos terão cometido qualquer ilegalidade ou violação de compromissos externos formais. As tropas movimentadas na Crimeia terão actuado sempre dentro dos limites dos acordos bilaterais existentes, desde a “doação” da Crimeia feita em 1954 por Krutchev à Ucrânia com salvaguarda da base naval de Sebastopol até ao tratado de independência deste país na sequência da dissolução da URSS. E agora, com a realização do referendo em que a população da Crimeia votou no sentido da independência em relação à Ucrânia ou da sua reunião à pátria russa, Putin consegue transformar esta sua acção estratégica num processo de auto-determinação do povo da Crimeia, isto é, na emergência de uma nova questão nacional, aparentemente tão legítima como a da partição checo-eslováca, a do Kosovo ou amanhã a da Escócia, da Catalunha ou do País Basco, ainda por cima decidida por meio de uma votação, provavelmente ilegal mas indiscutivelmente democrática (dentro das limitações inerentes a este tipo de decisões).
É claro que nenhum diplomata, militar ou político ocidental se deixou enganar por estes estratagemas e se tratou de uma “anexação” que viola claramente o habitus das relações internacionais das últimas décadas. O Ocidente está a retaliar diplomaticamente, e este “gelo” vai durar. Mas a eficácia das suas pressões tem os principais limites na interdependência económica existente entre todos. A Rússia não montou deliberadamente esta estratégia, embora tal ambição estivesse apenas à espreita de uma oportunidade. Por outro lado, existe um contencioso histórico de animosidade entre russos, ucranianos e tártaros que passou, ao longo do século XX, por uma guerra civil dos nacionalistas de Petliura (e dos generais “brancos” Denikine e Wrangel) contra os bolchevistas e da revolta camponesa anarquista de Maknho contra ambos (1918-1921), pela colectivização agrícola imposta por Estáline, a colaboração de muitos ucranianos e tártaros com o ocupante alemão, com deportações destes últimos depois da 2ª guerra mundial. Agora, sentindo-se ameaçada pela instabilidade e perda de influência no seu flanco sul (com o acesso ao Mediterrâneo, apesar do ponto de apoio que tem na Síria e amanhã talvez no Egipto), a Rússia aproveitou bem e rapidamente a crise financeira e a debilidade económica actuais da Europa e da América para se afirmar, com uma determinação que não conhecíamos desde 1991 (apesar do já demonstrado na Tchetchenia e na Geórgia).
No estado actual das trocas comerciais e financeiras no mundo, a economia é contra as relações internacionais, em particular nas suas formas mais rudes, como a guerra. Mas este caso veio lembrar-nos que a geo-política ainda existe, e que ela não deve ser confundida com os conflitos que de tempos a tempos assolam certas regiões de África. Nem com a radicalização das massas e as manobras de bastidores existentes no mundo islâmico. De facto, ela é um instrumento da acção externa dos estados maduros, racional e realista, mas também completamente imune a referências históricas ou valores humanistas ou de liberdade.
Não fariam os Estados Unidos algo de semelhante se amanhã o Estado Libre Asociado de Puerto Rico ou o sul da Califórnia (desanexado militarmente do México em 1850 e hoje com uma percentagem de 40% ou mais de latino-americanos) começassem a reivindicar a sua plena autonomia estimulados por um imaginário governo do México adquirido às teses “bolivarianas”? Mostraram-no já com Cuba em 1961 e com o apoio dado a todos os governos autoritários da América do Sul contra as guerrilhas ou outras manifestações políticas anti-Yankees, sempre que julgaram posta em causa a sua defesa estratégica. É certo que se estava então na “guerra fria”, que se estendia a todo o mundo, com um escasso lugar para verdadeiros neutros. Mas nem o genuíno federalismo e democratismo da Constituição americana prevê (creio) o abandono da União por parte de algum dos seus estados federados que, por reiterada vontade da sua população, assim o pretendesse. Não foi isso que levou à sangrenta guerra civil em 1861?
E por que razão Portugal se empenha tanto em afirmar a sua soberania sobre as ilhas Selvagens, a meio-caminho entre a Madeira e as Canárias, se não pelo reflexo imediato que isso tem sobre a Zona Económica Exclusiva que nos é reconhecida, embora a exploração útil de tal património esteja por agora fora do nosso alcance e será quiçá qualquer dia alugada a quem tiver meios económicos e tecnológicos para o fazer, de modo idêntico ao que Timor faz com o petróleo submarino existente perto das suas costas? Verdade seja dita que aqui não existem populações humanas envolvidas, mas também é certo que são os interesses económicos e da realpolitik dos estados que comandam, e não as razões da promoção do conhecimento científico ou da protecção da natureza.
Outro ponto. Este caso recente de revolta popular urbana chama-nos a atenção para o papel desta nova “táctica” de acção na obtenção (ou tentativa) de rupturas políticas. As forças sociais e os agrupamentos políticos mais radicais que não se revêem nas regras do sistema político instalado tendem agora, talvez na última meia-dúzia de anos e no contexto mundializado que vivemos (globalização económica e informativa, bloqueio do sistema internacional, crescimento-e-crise em alguns grandes blocos ou regiões do mundo), a dirigir os seus esforços para a mobilização popular (usando apropriadamente as TIC e os media) com vista à ocupação cívica de espaços públicos emblemáticos dos principais centros urbanos e, a partir daí, para a resistência física às ordens governamentais da sua evacuação, recorrendo ao uso de meios rudimentares de força defensiva e contra-ofensiva (como os acampamentos e barricadas, os bastões, as pedradas e os cocktail molotov, o incêndio e ocasionalmente as armas de fogo). É o que se tem observado em países como a Tunísia, o Egipto, a Grécia, a Espanha, os Estados Unidos, a Venezuela, a Turquia, a Birmânia, a Tailândia, o Brasil ou agora a Ucrânia. Longe estão a acção terrorista e o bombismo, a “luta armada” em meio urbano, a guerrilha guevarista ou maoista, ou as insurreições de fracções do exército regular. Mas também é verdade que a “violência branda” assim desencadeada pode não chegar para o derrube do governo ou do poder político instituído e prolongarem-se as situações de crise, caso em que geralmente se abrem oportunidades não apenas para os “incontrolados” darem vazão aos seus instintos mas, sobretudo, para a acção deliberada de “grupos armados” (de obediência política ou religiosa), com formação, cadeias logísticas e financiamento, planeamento e alguma forma de comando, entrando-se então em fases de verdadeira guerra civil, como aconteceu na Líbia e na Síria.
Felizmente, na Europa ocidental estamos longe disso. Contudo, só agora os mais radicais da ETA parecem realmente dispostos a renunciar às acções armadas e espera-se que os seus equivalentes do IRA não tenham a tentação de, sob um pretexto qualquer ou perante um incidente, voltarem a pegar em armas. Porém, o terreno político onde diversas forças sociais organizadas disputam o poder supremo – corporizado pelos governos dos estados-nação, com acesso directo à possibilidade de impor medidas legais, usar os dinheiros públicos e dispor do monopólio da violência – é hoje constituído por uma vasta panóplia de recursos de acção, de influência e de negociação. E se estes recursos são inerentes aos detentores do poder político, do lado do mais fraco também não estão excluídas formas de acção como a pressão (uma manifestação ou uma greve), a chantagem (quando o alvo tem “pecados” inconfessáveis), a ameaça, a provocação (por exemplo, violando deliberadamente uma norma legal para desencadear uma reacção e o agente se constituir como “vítima”) e mesmo a pequena violência, em doses controladas para não perder a legitimidade face a um adversário com fraco apoio na opinião pública.
Neste quadro, vários são os estados europeus que defrontam agora processos dinâmicos de separatismo de algumas das suas regiões ou de nações culturais desde há séculos neles incorporadas. Não será o caso de Portugal, da Grécia, dos países nórdicos ou mesmo da Alemanha, onde as realizações e as tragédias da sua história recente a terão melhor unificado do que qualquer sonho imperial. No caso da França, a fortíssima centralização do seu Estado e da acção política que ele organiza tem sido suficiente para conter as veleidades autonomistas das suas mais afirmadas periferias geográficas e culturais. Mas na Itália, unificada apenas em meados do século XIX, uma Liga do Norte não perde oportunidades para se distanciar criticamente de romanos, napolitanos, calabreses, sicilianos e sardos. A Bélgica só parece subsistir graças ao papel unificador da Casa Real, ao seu sistema de segurança social e às vantagens de ser sede das instituições europeias. No fundo, é sistema de estados herdado dos séculos anteriores e reajustados por ocasião de cada nova guerra que agora abre fissuras e revela o arbitrário ou a precariedade de muitas das soluções então encontradas. Mas é nas ilhas britânicas e na península hispânica que estas questões se colocam com maior acuidade e a mais curto prazo.
O Reino Unido (da Grã-Bretanha e Irlanda… do Norte) aparece hoje muito mais desunido do que alguma vez o conhecemos em nossas vidas. Mas é verdade que ainda há menos de um século o poder legal e económico de Londres era visto na “ilha verde” como uma ocupação imperial, fundada em guerras religiosas do passado e responsável pela inacreditável miséria a que o sistema fundiário dos landlords condenara o seu campesinato, que encontrou na emigração maciça para a América a única porta de saída. Quando os irlandeses se levantaram em armas para acabar com essa submissão (vai fazer em breve cem anos), os ingleses foram impiedosos, acusando-os de traição e conluio com a Alemanha, com quem estavam em guerra. Mas, terminada esta, perceberam que tinham de negociar: o Éire Free State e a “partilha”, com a concentração a Norte dos “súbditos de Sua Majestade”, foram o resultado provisório desse confronto, mas que ainda está de pé, depois dos esforços de paz que interromperam a dinâmica dos atentados e das retaliações mas nada resolveram quanto ao futuro e à convivência de duas comunidades profundamente diferentes num mesmo território.
Agora, o governo de Londres enfrenta a pulsão autonomista da Escócia e apostou em conceder-lhe a oportunidade de um referendo, já no próximo Setembro. Aqui não parece haver riscos de radicalização e quase certamente o território irá permanecer fiel a Westminster e à Coroa, e orgulhoso das instituições próprias mais ou menos simbólicas de que já beneficia e de mais algumas larguezas que o governo provavelmente lhe acordará. Mas o procedimento pode abrir a porta a novas reclamações de Gales, ou até agudizar a vontade de decidir do eleitorado inglês acerca do futuro das instituições políticas europeias e da participação dos britânicos nelas. O sector da opinião pública mais nacionalista e euro-céptico já está a assustar as formações partidárias tradicionais.
Em Espanha, a firmeza dos partidos de governo em recusar e combater os métodos violentos da ETA parece ter conseguido levar à razão os sentimentos nacionalistas do povo basco. Mas o problema continua em aberto, à espera de melhor oportunidade. De imediato, é provável que aguardem para ver o resultado do braço-de-ferro entre catalães e o governo de Madrid acerca do referendo que os primeiros convocaram unilateralmente para Novembro deste ano. Mas o Estado de las Nacionalidades pós-franquista vai provavelmente enfrentar enormes problemas nos anos mais próximos, quando se concretizar a sucessão no Palácio Real, sabendo-se que a popularidade da Monarquia não pára de baixar e existe hoje um renovado interesse em importantes camadas da população pelas instituições republicanas. Os ímpetos independentistas de bascos e catalães só poderão ser integrados se houver a clarividência política suficiente para uma renegociação constitucional em direcção a uma solução federal e desde que não surjam pressões excessivas e contraditórias “da rua”, ou derrapagens para a violência. O pior que poderia suceder era que os militares se sentissem de novo chamados a arbitrar um conflito político encurralado, função para a qual não têm competência nem vocação, apesar das más recordações do passado.
Em suma, se na nossa primeira explanação de factos e análises pudemos confirmar a asserção clauzewitziana de que “a guerra é a continuação da política, por outros meios”, este segundo exercício de previsão pode confortar a ideia de que, no fundo, “a política é a continuação da guerra, por outros meios”.
JF / 25.Mar.2014